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Jorge Luis Burruchaga, (muito mais que) o herói da final de 1986

Originalmente publicado no aniversário de 50 anos, em 09-10-2012, revisto, atualizado e ampliado

“Não vi [Jorge] Valdano, nem escutei [Hans-Peter] Briegel, mas sim acredito que foi a corrida mais longa, feliz e difícil da minha vida. Quando fui festejar me ajoelhei, extenuado e o primeiro que vi chegar foi [Sergio] Batista. Chegava cansadíssimo e se ajoelhou na minha frente com essa barba que tinha… sempre digo que foi como ver Jesus”. Assim relatou em primeira pessoa, à matéria “onde você estava na hora o gol de Burruchaga?“, o autor do gol mais importante da seleção argentina – a ponto de a própria matéria sinalizar que foi daqueles momentos em que todo argentino lúcido se recorda do que fazia, vestia e/ou onde estava na hora. Falamos, claro, de Jorge Luis Burruchaga (pronunciado “Burutchaga”, como se houvesse só um R mesmo), que apenas repetiu em uma final de Copa do Mundo um lance já sentido pelos gremistas em uma final de Libertadores. Lance que ofusca outras ações decisivas de Burru (pronunciado “Búru”, não “Burrú”) naquela Copa 1986 e uma carreira gloriosa no Independiente.

No Arsenal: da 2ª divisão à seleção sub-20

Uma das maiores paixões do torcedor argentino é implicar com o Arsenal de Sarandí, sempre visto como o clube da má afamada família de Julio Grondona, chefão da AFA entre 1979 e 2014. Recentemente, o impulso meteórico do clube do atual chefão (Chiqui Tapia) da última à primeira divisão, em partidas “estranhamente” não televisionadas mesmo quando o tal Barracas Central era um dos líderes da segundona – sem que erros clamorosos de arbitragem escapassem dos celulares presentes -, relembrou a inédita subida do Arse à elite, em 2002. Apontaram-se semelhanças inclusive no parco televisionamento, algo mais grave na era pré-smartphone. Mas se há um mérito histórico no Arsenal, foi o de justamente formar Burruchaga, em tempos de terceira divisão do Viaducto.

Nascido em Gualeguay, província de Enter Ríos, Burru teve uma infância humilde. A família, a incluir nada menos que onze outros filhos (oito irmãos e três irmãs) do casal Martín e Catalina, buscou a sorte em Quilmes – exceto a irmã mais velha, Martha, a permanecer na casa dos avós em que o herói de 1986 nascera. Desde cedo precisando contribuir no sustento familiar, ele, dentre outros bicos, chegou a pintar umas das torres de iluminação do Monumental de Núñez e também vendia jornais e sorvetes em Quilmes. Tentou aproveitar essas conexões, mas foi dispensado aos 13 anos dos infantis do River enquanto que no Cervecero ele tentara inscrever-se já fora do prazo. Pensara mesmo em desistir; no mesmo 1977 em que saíra do River, perdera o pai, que era mesmo contra a carreira do filho no futebol. Mas a mãe manteve um incentivo, inclusive econômico. E um certo Sr. Benito, que conhecia Héctor Grondona – irmão de Julio – lhe ofereceu a chance de ir ao Arsenal.

Pelo Arsenal: é o jogador mais à direita na foto, contra o sumido Atlanta

Burruchaga estreou já em 1979 no time adulto da equipe de Sarandí. Com pouco mais de vinte anos de existência formal, o Arsenal já estava na segunda divisão, mas brigando para não cair: ficou a quatro pontos da lanterna naquele 1979 e a três no torneio de 1980, a registrar os primeiros gols de Burruchaga no futebol adulto – no 3-0 sobre o Defensores de Belgrano na 4ª rodada e na derrota de 3-1 para o Deportivo Español na 6ª. Julio Grondona, na época, já presidia a AFA, mas seguia de perto o ambiente do Independiente, do qual era cartola desde os anos 60 em paralelo ao Arsenal. Também em tempos pré-smartphone, haviam mais gente do Independiente que matava tempo assistindo ao Arse. Um deles, o ponta Antonio Alzamendi, recordado por outro gol mundial em 1986 – o do River, em Tóquio.

Antes de se imortalizar no River, Alzamendi soube ser ídolo também no Rojo e juraria em 2015: “lembro que quando o Grondona estava no Independiente, íamos ver o Arsenal e lhe disse: ‘por que não trazes o camisa 8, que é um fenômeno?’. Talvez o Burru nem saiba, mas eu meti uma ficha muito grande para que fosse ao Independiente”. Pelas voltas da vida, ambos trocariam camisas na Copa 1986, após a Argentina eliminar o Uruguai de Alzamendi. Fato é que em 1981 o Arsenal saltou para um 4º lugar e Burruchaga, somando cinco golzinhos embora ainda se revezasse como líbero ou quarto volante, já se tornava o primeiro jogador do clube chamado para alguma seleção argentina: integrou a equipe sub-20 no Sul-Americano e no Mundial realizados naquele ano. Detentora do título, a Albiceleste dera vexame, perdendo para uma Austrália anfitriã, mas insignificante, a vaga nos mata-matas.

Independiente: na última Libertadores e no último Mundial do Rey de Copas

“Em 1982, apareço no Independiente. Me levaram para testes no torneio de Mar del Plata. O técnico era Miguel Ángel López. Me compraram, e o que sei é que o Independiente pagou meu passe em doze parcelas, cada uma das quais era o equivalente ao que o Arsenal precisava para manter mensalmente seu plantel”, rememoraria Burru à edição pós-título da Argentina em 1986. Com boa memória, ele assim detalhou na mesma matéria os inícios no Rojo:

Na Praça San Martín, que leva o nome do principal herói da independência

“Estive como reserva no primeiro jogo do Nacional de 1982, em Santiago del Estero. Faltando cinco minutos, expulsam [Carlos] Fren e El Zurdo [o técnico López] me faz entrar no lugar do Loco [Carlos] Salinas. Na partida seguinte, foi titular contra o Argentinos Jrs e empataram em 2-2. Nesse dia, Miguel Ángel López foi embora e o substituiu Nito Veiga. Fren voltava, [Néstor] Clausen estava lesionado e Nito me pôs como lateral. Foi no Chateau Carreras de Córdoba, contra o Unión San Vicente. Chutei um pênalti e ganhamos de 3-2. Joguei umas dez partidas de lateral. Nito Veiga depois me escalou de meia-direita e de volante central até que [Ricardo] Bochini se lesiona e durante seis meses joguei de camisa 10. Quando volta El Bocha [Bochini], Nito me posiciona de ponta-esquerda e é quando o Independiente começa a jogar com quatro volantes”.

Ídolo-mor do clube, Bochini era um raríssimo remanescente do título anterior do clube, no Nacional de 1978, e o único a sobrar da conquista anterior na Libertadores, em 1975. Futuros pilares vinham chegando a partir de 1980, casos do volante Ricardo Giusti, do zagueiro Pedro Monzón, do referido lateral Néstor Clausen e do goleiro Carlos Goyén. No mesmo 1982 em que Burru chegou, apareceram o volante Claudio Marangoni, o atacante José Percudani e o lateral Carlos Enrique. Seria com Maragoni, Giusti e Bochini que Burruchaga formaria um dos melhores meios-de-campo do clube e do futebol argentino – deles quatro, apenas Maranga não estaria no mundial de 1986, e não por deficiência técnica e sim por desavenças com o excêntrico treinador Carlos Bilardo, pois era um craque a ponto de ser ídolo e modelo para Fernando Redondo.

Burruchaga, do seu lado, não se restringia à chamada entreala izquierda, com sua raça e versatilidade sendo por vezes aproveitada também tanto na defesa quanto como volante e também no ataque, onde costumava surgir repentinamente: Giusti, visto como quem corria por todos os outros três, exaltaria em 2016 que não era bem assim: “Burru ajudava, hein… uma vez declarei que, para mim, o jogador mais importante que tínhamos era Burruchaga. Bochini era um craque por sua inteligência, mas Burru te ajudava no meio, driblava, tocava bem, tinha velocidade e fazia gols. Completo”. Atributos que lhe renderam já em maio de 1983 a primeira convocação para a seleção, justamente para os primeiros jogos da Era Bilardo. Foi na esteira de um bivice-campeonato (Metropolitano 1982 com Nacional 1983) que já sinalizava que o gigante deixara de adormecer daquela entressafra.

O gol do título na Libertadores 1984 e apavorando com Bochini o Liverpool no Mundial

Na seleção, Burruchaga chamou a atenção primeiramente na Copa América de 1983, na qual a Argentina encerrara seu mais longo jejum contra a seleção brasileira – treze anos. Ainda assim, o Brasil avançou no grupo, um triangular em que o incipiente Equador se mostrou o fiel da balança: os hermanos ficaram em dois 2-2 contra os tricolores e acabaram eliminados, embora Burru fizesse a sua parte; foram dele três dos quatro gols argentinos nesses empates, incluindo um petardo de falta no Monumental. Pois a ressaca da queda precoce foi curada no Torneio Metropolitano, a encerrar um jejum então significativo de cinco anos do Independiente. E de um jeito dos mais festejados até hoje: a taça se assegurou em pleno Clásico de Avellaneda diante de um rebaixado arquirrival Racing. Aliás, no dérbi do primeiro turno, o meia deixou o dele em triunfo de 3-1.

Burruchaga seguiu figura cativa na seleção de Bilardo, o que incluiu até mesmo uma primeira partida da Albiceleste na Ásia: vitória de 1-0 com gol dele, em Calcutá, sobre a Romênia, já em 12 de janeiro de 1984 – ano que terminou ainda mais recordado em Avellaneda. Não pela queda precoce no Torneio Nacional, mas, primeiramente, pelo sétimo e ainda último troféu do Rey de Copas original. Onde Burruchaga seria a grande revelação, seja como artilheiro do elenco campeão, seja pelo autor do gol do título. Só não esteve em uma partida, na revanche contra o Sportivo Luqueño ainda pela primeira fase; fora inclusive dele o gol que valeu o 1-0 na casa adversária no jogo de ida, para desespero de um jovem José Luis Chilavert, o arqueiro vazado no lance. O gol seguinte foi de craque, encobrindo o goleiro do Estudiantes para virar um placar que terminaria em 4-1.

Em um regulamento duríssimo, somente o líder avançava de fase e o grande concorrente foi o Olimpia, que vencia dentro de Avellaneda por 2-1 até Burru converter um pênalti e reanimar o Rojo, que soube virar para 3-2 e garantir-se nas semifinais – na época, uma segunda fase de grupos. Dali em diante, e missão foi cumprida sem maiores sobressaltos: segurando empates fora de casa contra Nacional e Universidad Católica, o Rojo triturou-os em Avellaneda, sempre com gols de Burruchaga (2-1 nos chilenos, 1-0 nos uruguaios), a ponto de o jogo final do grupo, um duelo direto entre os dois concorrentes, acabar cancelado. A decisão foi ganha praticamente no jogo de ida: mesmo em Porto Alegre, os argentinos tiveram performance tal que muitos ganharam nota 10 nos jornais, em um enganoso 1-0 que merecia ser goleada no velho Olímpico.

Com os troféus do Mundial e da Toyota, em Tóquio: só ficaria mais um semestre no Independiente

E coube a Burruchaga marcar o gol que bastou, vencendo a corrida contra Hugo de León para aproveitar um dos tantos passes açucarados de Bochini ao tocar com categoria na saída de João Marcos, ainda aos 24 minutos do primeiro tempo. Depois, foi a vez de isolar o Independiente como maior campeão mundial no futebol argentino, à frente das taças de Racing, Estudiantes e Boca. Outro condimento extra é que o duelo com o Liverpool seria um dos primeiros encontros pós-Malvinas entre o futebol argentino e o britânico. Percudani seria o eternizado da vez ao anotar único gol, mas Burru não causou menos pânico em Tóquio na defesa inglesa; a jogada do gol nasceu mesmo em uma típica tabelinha entre ele e Bochini, até o classudo Marangoni executar um passe em profundidade ao garoto Percudani.

E faltou pouco para o próprio Burruchaga aparecer no placar também: sem esperar uma falha tão gritante de Gary Gillespie, ele se apressou na conclusão após interceptar um passe errado do escocês – e o goleiro Bruce Grobbelaar ainda assim salvou de modo heterodoxo, segurando entre as próprias pernas a bola que valeria um segundo gol.

Seleção: salvando a Argentina no México… desde bem antes da Copa

Em estado de graça, Burruchaga também mostrou-se já um talismã pela seleção para a própria viagem argentina ao México ser possível. A Albiceleste se encaminhava para a repescagem a dez minutos do fim, quando os peruanos revisitavam o fantasma que soltaram na Bombonera em 1969, vencendo de virada por 2-1 dentro do Monumental e se garantindo no lugar de Maradona e colegas.

O empate salvador foi garantido por (ironia histórica!) Ricardo Gareca em um lance que também consagrou Daniel Passarella: é que o zagueirão arrematou a bola, que acertou a trave, mas sobrou livre e limpa para Gareca apenas completar sem goleiro. Mas Burru teve muito a ver, tendo executado para Passarella um cruzamento que tirou da jogada os adversários José Velásquez e Juan Carlos Oblitas – praticamente uma assistência. Ele logo rumou ao futebol francês, estreando já em julho de 1985 pelo Nantes, então vice-campeão nacional e já um clube marcado por diversas panelinhas argentinas em sua história. Não no caso dele, que precisou se virar sozinho após um período inicial acompanhado da mãe e de dois irmãos.

Com o reforço amadurecendo rápido, Les Canaris também foram vice-campeões da Ligue 1 na temporada 1985-86, por três pontos de diferença para o Paris Saint-Germain (campeão francês pela primeira vez, aliás). Ele, que já havia participado de toda a campanha nas eliminatórias, assim se garantiu na lista de Carlos Bilardo para o mundial do México. Muito por conta das complicadas eliminatórias, os argentinos haviam chegado em silêncio à Copa, após a decepção de 1982 – mesmo Maradona ainda era contestado. Com o velho colega Giusti e também o meia-direita Héctor Enrique e o volante Julio Olarticoechea, Burru foi um dos importantes coadjuvantes do meio-de-campo maradoniano no caminho à final.

Os outros gols de Burruchaga em Copas além “daquele”: Bulgária em 1986, URSS em 1990

Curiosamente, Burruchaga não começou tão bem: levou da revista El Gráfico uma nota 6 no 3-1 sobre a Coreia do Sul, outra nota 6 no 1-1 contra a Itália (quando uma mão sua na bola inclusive rendeu o gol de pênalti da Azzurra) e ao fim da primeira fase conseguiu levar nota 4 até mesmo quando marcou gol, no 2-0 sobre a nada badalada Bulgária. Nas oitavas-de-final, mais um 6, no 1-0 sobre o Uruguai, no clássico em que trocou camisas com o “padrinho” Alzamendi ao fim de um exibição em que já se via uma crescente.

De fato, ele levou um 7 “naquele jogo” com a Inglaterra nas quartas-de-final: “em momentos, sinalizou ser o excelente jogador que nos consta que é. Em momentos, diretamente conseguiu. Inteligente para se mostrar, mais seguro de suas possibilidades, se alternou com Maradona na tarefa de armar e quando pôde se somou na área rival. Outra levantada que todos esperávamos” e “eixo do movimento harmônico do quadro argentino durante 70 minutos da luta para assegurar o controle do meio-campo” foram as descrições de sua exibição na edição pós-jogo. Nas semis, só um Maradona talvez ainda mais incrível do que contra os ingleses ofuscou a nota 8 de Burru, autor de “um passe magistral” que serviu de assistência para o primeiro gol nos 2-0 sobre uma forte Bélgica – cujo idioma francês tão utilizado pelos adversários ele já dominava após uma temporada de Nantes.

E então teve contra a Alemanha Ocidental “a sua tarde, seu momento, sua final, essa que sonhou no campinho do Arsenal de Sarandí, onde estreou apenas completados os 16 anos”, suspiraria a El Gráfico. A Albiceleste, enfrentando uma forte torcida contra – a plateia mexicana, em maioria, preferiu apoiar a Alemanha Ocidental -, furou a eficiência germânica da equipe do técnico Franz Beckenbauer, abrindo 2-0. Burruchaga já começaria a ser decisivo desde o início, com a assistência ao primeiro gol ao cobrar uma falta: “é preciso dizer que o cruzamento de Burru foi perfeito”, destacaria em 2011 o saudoso José Luis Brown, que converteu ali seu único gol pela seleção.

Valdano, no início do segundo tempo, ampliaria em chute rasteiro. Burruchaga fazia a sua parte também ao desfilar pela defesa adversária; desde os 29 minutos de jogo se notava que ele assumia a batuta de Maradona, que se anulava mutuamente com Lothar Matthäus. Em outro lance notável, com o jogo ainda em 2-0, a 22 minutos do fim, ele enviou cruzamento que quase resultou no terceiro, mas o bandeirinha constarriquenho Berny Ulloa assinalou um impedimento inexistente do habilitado Héctor Enrique. Três minutos depois, quase Burruchaga faz o terceiro, mas um defensor afastou antes a bola cruzada por El Negro Enrique. Então veio o empate-relâmpago da Mannschaft, com um Karl-Heinz Rummenigge de muletas e um jovem Rudi Völler igualando tudo a nove minutos do fim. O que poderia levar pânico aos jogadores sul-americanos, acabou rapidamente assimilado por eles. No reinício após o segundo gol, Maradona tratou de tranquilizar o colega: “veja que estão mortos, Burru. Vamos movimentar a bola que os derrotaremos antes da prorrogação”.

Brown ergue a bola aos céus após abrir o placar na final: a assistência foi de Burruchaga, que comemora com ele

Apenas três minutos depois do empate, Diego conseguiu uma folga de Matthäus e deu um açucarado passe para Burruchaga correr por quarenta metros mais que o tanque Briegel e usar a ponta do pé para fazer a bola passar entre as pernas de Toni Schumacher. “Não há nada pior do que um homem falhando em seus sonhos, seus fantasmas, ignorando as vozes interiores que o empurram para a glória. Burru não falhou, não poderia falhar. Ele terminou a jogada como o exímio finalizador que é, cirúrgico, preciso, mortal para a Alemanha, vital para a Argentina. A rede se moveu e 30 milhões de gritos de gol varreram as polêmicas e as análises rebuscadas. Argentina foi bicampeã mundial” foi o relato poético tecido quatro anos depois pela El Gráfico. Ainda foi útil para gastar tempo: Bilardo o substituiu aos 44 minutos para a entrada do habilidoso Marcelo Trobbiani esfriar alguma reação germânica.

Se a Copa foi de Maradona, a única nota 10 da El Gráfico naquela partida foi a Burruchaga: “atuação consagradora. No nível do melhor Burru que conhecemos, só que foi em uma final de Copa do Mundo. Um pequeno detalha extra… quando advertiu que os alemães destinavam dois homens e um a mais na espera para tapar Maradona, Jorge empunhou o bastão de mando e se fez condutor. Lhe mandaram um marcador (Norbert Eder) e o deixou perdido em algum rincão do campo. Manobrou os fios do ataque alviceleste e lhe sobrou qualidade para se meter no fundo, explodindo um belo passe de Maradona e definir a taça com um toque preciso no segundo pau”. O herói relembraria assim, à edição pós-jogo: “quando fiz o terceiro nos alemães, olhei ao céu e pisquei um olho a meu pai… eu sei que ele teria gostado, que seria feliz por tudo o que lutou… seu filho campeão! E que riria com minha mãe…”.

Incrivelmente, a “sociedade” entre ele e Maradona se resumia aos jogos, pois nem se falavam fora de campo – ainda que não fossem desafetos, e sim pela timidez de Burru. A mesma El Gráfico trouxe em 1999 essa curiosidade à tona: “inclusive, terminou a Copa e o único que haviam compartido foi o festejo da final. Era tanta a frieza entre ambos que, em poucos meses, o Napoli quis comprar Burruchaga, mas a negociação se freou de repente”. A matéria relata que ele teria mesmo desabafado com Valdano por pensar que Maradona teria brecado a operação e que, embora aconselhado a telefonar-lhe para esclarecer a história, preferiu deixa-la para lá (“se não falei com ele nunca não vou telefona-lo por isso”).

Sequência da imagem que abre essa matéria

Burruchaga ficou tão marcado pelo gol que fora da Argentina é comum se esquece do que fez depois. Não sem muita razão, pois a carreira dele tornou-se mais errática ao não ir para o auge do Napoli maradoniano…

O Burruchaga jogador depois de 1986

Duas lesões nos gramados franceses o deixaram um bom tempo parado, enquanto o próprio Nantes decaía das primeiras colocações, apesar de nomes célebres: Olarticoechea, Marcel Desailly, Didier Deschamps, Antoine Kombouaré. Nos três anos seguintes à partida do título mundial, jogou uma única vez pela Argentina, em amistoso de dezembro de 1987 contra a própria Alemanha Ocidental, em Buenos Aires – 1-0, e novamente com a vitória vindo dos pés dele. Havia perdido a Copa América que seu país sediara, naquele mesmo ano, mas esteve na edição de 1989, quando voltou a ter regularidade com Bilardo.

Uma operação no joelho na virada de 1989 para 1990 deixou alguma dúvida sobre seu estado físico a ponto de emissários da seleção passarem duas semanas com ele, mas Burruchaga seria titularíssimo na Itália. Mesmo em estado físico aquém, foi um dos raros nomes mantidos para o segundo jogo depois da zebra camaronesa na estreia: ele e Maradona, ambos com notas 6 para a El Gráfico, foram os menores piores em campo entre os derrotados, exibindo ambos boas tabelas. Bilardo mudou então meio time para o duelo decisivo com a União Soviética, para o qual Burru sossegou a nação ao marcar o segundo gol nos 2-0 após uma série de bates-rebates. Curiosamente, o resultado encerrou também uma histórica série negativa de sete jogos seguidos sem triunfos contra seleções europeias, pendente desde aquela partida em que ele deu a vitória sobre a Alemanha Ocidental em 1987.

Outra curiosidade é que aquele gol não impediu que a El Gráfico lhe tascasse nota 5. Contra a Romênia, levou um 4 no empate em 1-1 que bastou para classificar os campeões do mundo. Ele seguiu apenas regular; 5 contra o Brasil, 5 contra a Iugoslávia – contra quem até tentou emplacar sua própria “mão de Deus”, sem sucesso, embora servisse três jogadas dignas de assistência no segundo tempo da prorrogação: no primeiro minuto, deixou Gustavo Dezotti na cara do gol e aos 9 deixou Caniggia, que acabou parado por uma bandeira incorreta de impedimento; aos 14, foi a vez de servir José Basualdo pouco antes de outro gol anulado. Ao fim, não comprometeu na decisão por pênaltis complicada aos batedores argentinos, em tarde que vira Sergio Goycochea compensar os erros de Pedro Troglio (o outro herói contra os soviéticos) e de Maradona.

O Olympique de Marselha era o todo-poderoso francês na época de Burruchaga: registros por Nantes e Valeciennes

Burru teria mesmo sua grande partida na Itália nas semifinais, contra os anfitriões em atuação descrita na El Gráfico como a de alguém “renascido das cinzas”. Levou um 7, inferior apenas ao 10 do talismã Goycochea: “com um Maradona pela metade, a ele toca a missão de duplicar a criação de jogo ofensivo. Teve momentos brilhantes, passes que clarificaram jogadas, que levaram desconcerto e uma defesa tão bem plantada como a italiana”. Mas, na decisão, novamente diante da Alemanha Ocidental, fez sua pior partida na Copa: “impreciso com a bola, lento, sem arranque, havia feito tudo de regular para baixo” foi o complemento à nota 4 que levou da El Gráfico. Saiu aos 9 do segundo tempo, para a entrada de Gabriel Calderón – e não escondeu sua bronca, mesmo sem saber que seria seu último jogo pela seleção, embora ainda tivesse 28 anos.

Alfio Basile, novo técnico, optou por manteve pouquíssimos remanescentes de 1990 para a vitoriosa Copa América de 1991 e a má fase do Nantes tampouco ajudava Burruchaga. Ao fim da temporada 1991-92, ele rumou ao pequeno Valenciennes. Ali, até foi bem individualmente, com dez gols em uma temporada, seus melhores números na França. O problema é que, além do time terminar em antepenúltimo e cair, envolveu-se na temporada 1992-93 em suborno do campeão Olympique de Marselha – na confusão que faria os marselheses perderem o título nacional e serem punidos com um rebaixamento e a desclassificação ao Mundial Interclubes; o suborno visava justamente facilitar-lhes a tarefa na Ligue 1 para focarem-se em cheio na vitoriosa final da Liga dos Campeões.

Após dezoito meses de suspensão, Burruchaga reestreou no futebol em pleno Clásico de Avellaneda amistoso, um 0-0 com ares festivos em Mar del Plata em 14 de janeiro: enquanto ele voltava ao Independiente, o rival Racing promovia a estreia de ninguém menos que Maradona como novo treinador. A El Gráfico foi elogios à “amostra grátis” do veterano: “toque de bola e inteligência intactas, uma explosão física menor”. De fato, ele passaria a jogar mais recuado, como volante, revezando-se com Hugo Pérez ou com José Serrizuela. Naquele verão, o time faturou a amistosa Copa Mendoza, sobre o River. Mas em pouco tempo já viria uma taça oficial, na Recopa travada com o Vélez, em abril, com Burruchaga atuando no primeiro tempo. Os velezanos, contudo, teriam troco na Libertadores, eliminando semanas depois nas oitavas-de-final o pessoal de Avellaneda.

Avellaneda em festa em 14 de janeiro de 1995: Maradona estreia como técnico do Racing, Burruchaga volta a jogar pelo Independiente. No fim do ano, só Burru e o Rojo sorriram, campeões na Supercopa, em pleno Maracanã

Um Independiente caracterizado pelo jogo vistoso em 1994 vinha mesmo sob desmanche, com a maioria dos titulares dali não permanecendo após patinarem também no Clausura. No plano pessoal, o segundo semestre começou ainda mais terrível para Burru: Laura, sua esposa, faleceu em julho em um acidente de carro. O veterano daria às lágrimas sua volta olímpica seguinte: fora do páreo no Apertura, o Rojo centrou foco na Supercopa. Gustavo López, raro titular da conquista de 1994 nesse torneio a permanecer para o bicampeonato, exaltaria: “este grupo é bárbaro, sem conversa fiada. Por exemplo, tem um cara como Burru, que ganhou coisas importantíssimas, que vai ao banco de reservas e que sempre se aproxima para dar um conselho. Quando dávamos a volta olímpica, ele ficou um pouco recuado. Ia caminhando com Clausen. Eu lhe disse que para mim era maravilhoso compartilhar essa volta com ele, um verdadeiro orgulho”.

Na campanha, Burruchaga só não esteve em uma partida, no jogo de ida contra o Atlético Nacional nas quartas-de-final, ainda que fosse titular somente em outra – no jogo da volta contra o Santos, pelas oitavas. Nela, abriu os trabalhos nas decisões por pênaltis; converteria o seu em outra também, nas semifinais contra o River, mesmo totalmente frio: substituíra já aos 43 minutos do segundo tempo o compadre Néstor Clausen, outro remanescente dos anos 80. Ambas as decisões por pênaltis foram comemoradas em plenas casas adversárias, e o Maracanã foi igualmente tomado sem maiores sobressaltos, apesar de 100 mil vozes apoiando um Flamengo sedento por um troféu no centenário. O treinador, aliás, era o mesmíssimo Miguel Ángel López que lhe recebera anônimo em 1982. Em paralelo, o agora volante se deu ao gosto de marcar no Clásico de Avellaneda válido pelo Apertura, um 2-2.

Aquela Supercopa 1995 seria o troféu final de uma carreira vitoriosíssima, ao menos entre as taças oficiais. O Independiente venceria ainda dois torneios de verão em 1996 (Copa Ouro e Copa Cervejaria Quilmes, ambas em Mar del Plata, sobre o Boca), mas sentiu o troco do Grêmio na Recopa. Burru seria uma das referências na razoável temporada 1996-97, em que o time superou o troco flamenguista na primeira fase da Supercopa com um vice do Apertura, títulos animadores nos amistosos de pré-temporada (Copa Ouro, sobre o Boca, e Copa Inverno, sobre a Universidad Católica) e pinta de campeão no Clausura, quando liderava a quatro rodadas do final.

Em sua última Libertadores, em 1995, encara o Peñarol de Oscar Aguirregaray (camisa 4) e Diego Dorta. À direita, os últimos troféus: taças amistosas de verão, com José Luis Calderón e César Menotti

Mas a pausa para a Copa América esfriou o ímpeto de um elenco que se viu órfão do treinador César Menotti, que não recusara a Sampdoria naquela pausa. Até o segundo lugar e a vaga direta na Libertadores acabou perdido na rodada final. O time teve uma temporada 1997-98 medíocre (7º no Apertura, 10º no Clausura, queda na fase de grupos da Supercopa), a marcar também a saída antecipada do ídolo: seu contrato vencia e terminou não renovado depois de derrota de 3-0 na 10ª rodada do Clausura contra o campeão Vélez.

“Não me aposentei como merecia. O melhor teria sido que me dissessem que não ia jogar mais. Mas não se deu assim e foi duríssimo ter saído quando terminou meu contrato, sem que ninguém me dissesse tchau nem obrigado”, resmungava ele em 2003, quando declarou-se também disposto a ter seguido a carreira como zagueiro caso o contrato fosse prolongado; ao todo, desconsiderando amistosos, foram 269 partidas e 81 gols pelo Rojo, dois deles no dérbi com o Racing. Teria outros retornos, mas sempre saindo novamente pelos fundos, infelizmente.

Como treinador, colocou o Arsenal na elite

Burru não tardou em lançar-se como treinador, inicialmente em equipes do sul da Grande Buenos Aires – primeiramente, em tempos mais modestos do Defensa y Justicia, em 1999, e depois no Los Andes, onde foi um bombeiro na vã tentativa do time de Lomas de Zamora contra o rebaixamento em 2001 (última temporada das Milrayitas na elite). A volta ao México, quinze anos depois de 1986, também foi pouco gloriosa, no Jaguares de Chiapas. Sem trabalho, foi acolhido ainda em 2001 no mesmo Arsenal que lhe lançara como jogador – em um contrato de risco, onde só receberia em caso de acesso.

Embora sob aquelas polêmicas similares que rodearam o acesso do Barracas Central, o Arse subiu ao fim da temporada 2001-02 pela primeira vez à elite argentina. Mas os holofotes mostraram que a chegada não se devia apenas a algum apito amigo: intrometendo regularmente nas redondezas do pódio uma equipe de veteranos mesclados a refugos ou pratas-de-casa anônimos, Burruchaga chegou mesmo a ser um dos nomes sondados para substituir Marcelo Bielsa na seleção argentina – a ponto do ex-colega Nery Pumpido, campeão da Libertadores 2002 com o Olimpia, não polemizar por não estar no mesmo altar e declarar em 2005 que Burru seria simplesmente o melhor técnico em atividade no futebol argentino, juntamente a ninguém menos que Carlos Bianchi.

No seu melhor trabalho como treinador: o Arsenal que subiu e se manteve bem na primeira divisão, entre 2001-05

O Arsenal não chegou a pisar exatamente no pódio, mas, após garantir a permanência contra os promedios na temporada da estreia, ficou a seis pontos disso no Apertura 2003 e no Clausura 2004 (rendendo a primeira classificação rubroceleste a um torneio da Conmebol, para a Sul-Americana 2004… onde eliminou o River e parou só nas quartas-de-final, para um Bolívar finalista); enquanto que no Clausura 2005 terminou a três pontos do vice-campeonato. Assim, Burruchaga acabou contratado por um Estudiantes já emergente, classificado de antemão à Libertadores 2006. Calhou de larga-lo justamente na pausa que o torneio fez nas quartas-de-final, por conta da Copa do Mundo.

“Foi ridículo isso de jogar a ida antes da Copa do Mundo e a revanche dois meses depois. Porque se a revanche fosse jogada antes da Copa e nós passássemos às semis, não sei se Burru saía”, resmungaria já em 2008 um dos ícones do Pincha, o atacante José Luis Calderón, ex-colega do próprio Burruchaga jogador no Independiente. O Estudiantes cairia para o São Paulo no jogo da volta, mas deixar La Plata acabou inoportuno rapidamente: reforçados com Juan Sebastián Verón para o segundo semestre, os pupilos, sob um Diego Simeone ainda iniciante como técnico, seriam imediatamente campeões, encerrando jejum de 23 anos. Burruchaga, em paralelo, assumia o Independiente. Mas dessa vez o retorno à velha casa foi sem qualquer glória: seu trabalho no Clausura 2007 rendeu um dos piores inícios de campeonato do Rojo.

O trabalho seguinte foi no Banfield, curiosamente o tradicional rival do Los Andes. O Taladro vinha de um bronze no Clausura 2008, mas na temporada 2008-09 despencou para dos torneios abaixo do 10º lugar. O filme de 2006 se repetiu: tão logo ele deixou o clube da vez, os ex-comandados trataram de ser campeões, no único título argentino dos alviverdes na elite. Para a temporada 2009-10, Burruchaga voltou ao Arsenal e ainda emendou trabalhos no Libertad paraguaio (2011-12) e no Atlético de Rafaela (2012-13). No máximo, pôde comemorar a salvação do Rafaela do rebaixamento em 2013, época em que um diagnóstico da El Gráfico já dizia que a carreira promissora parecia passado: “não se destacou particularmente. Suas equipes não puderam ter um perfil que refletissem o majestoso jogador que foi, nem ter identidade inequívoca. É justo dizer também que o Independiente foi a única equipe grande que dirigiu; no geral, lhe toca administrar carências. Sua gestão em seu clube de sempre foi discreta”.

Seus trabalhos seguintes como treinador foram em 2016. E também foram os últimos, sem evitar campanhas pobres, ainda que não rebaixadas de imediato, do próprio Rafaela e também do Sarmiento. Os empregos seguintes viriam como manager, tanto na seleção (2017-18) como em nova passagem no Independiente (2019-21). Novamente, sem a mesma estrela: a desorganização interna da seleção ficou escancarada na Rússia e ele saiu atirando do velho clube. Mas ambos trataram, claro, de homenagear do mesmo jeito quem segue eternizado por aquela corrida no estádio Azteca a cinco minutos do fim de uma das mais dramáticas decisões de Copa do Mundo: em 2021, nas comemorações dos cinco anos da inédita Copa Davis, o tenista Federico Delbonis – representante argentino na partida decisiva da melhor de cinco contra a delegação croata – gabou-se como “o Burruchaga do tênis”.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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