Ia ser drama, foi epopeia: 40 anos da mais emocionante final argentina, Independiente x Talleres

Ainda com a Sul-Americana de 2017 fresca, o Independiente hoje celebra outra de suas tantas glórias. Ou outras, no plural. Em meio ao seu recorde de troféus da Libertadores (sete, tendo igual recorde de obtê-la quatro vezes seguidas), na Supercopa (duas), na própria Sul-Americana (duas) e ouros dois Mundiais e uma Recopa, nenhuma taça foi saboreado tão dramaticamente como um dos 16 campeonatos argentinos já levantados pelo Rey de Copas. Hoje, a conquista em questão completa 40 anos. Tendo como herói justamente quem faz aniversário nesse mesmo dia: o maior ídolo do clube, Ricardo Bochini.

O Rojo iniciara os anos 70 na fase mais brilhante de sua história, com o mencionado tetra seguido na Libertadores, entre 1972 e 1975, ciclo encerrado com a queda nas semifinais de 1976. Emblemas daquele período já haviam saído: os goleiros Santoro e Carlos Gay, os defensores Commisso, Garisto, Sá (maior campeão da Libertadores: venceu também as duas primeiras do Boca), Miguel López e Pavoni, os meias Raimondo, Saggioratto e Semenewicz e os atacantes Maglioni, Balbuena e Percy Rojas. Os remanescentes dos anos dourados eram o ex-meia Pastoriza (agora técnico) e os jovens Rubén Galván, Bochini e Bertoni. Os dois últimos, uma dupla das mais celebradas do futebol argentino.

A dupla funcionava com o primeiro fornecia cirurgicamente passes para os gols do segundo – por conta de Bochini, jogadas de grande precisão na Argentina eram apelidadas de bochinescas. Das caras novas, se destacariam a dupla de zaga, Trossero e Villaverde (entrosados desde os tempos de Colón), o lateral-direito Pagnanini, o meia Larrosa e o atacante Outes, ainda que nem todos fossem devidamente valorizados pela torcida na época – “corre, Doña Rosa”, chegou a lembrar Larrosa ano passado à saudosa revista El Gráfico lembrando dos xingamentos que ouvia. “Fomos (ao estádio) um pouco antes para entrarmos e campo e nos acostumarmos aos insultos. ‘Fique tranquilo que já estou acostumado’, disse ao Pato“, gargalhou o meia, referindo-se ao técnico Pastoriza.

Bem, o título foi pelo torneio nacional válido pelo ano de 1977, só encerrado em 25 de janeiro de 1978. Em 1977, os Rojos já haviam ficado no vice do torneio metropolitano, faturado por um River com dois pontos de vantagem. Havia dez anos que o calendário doméstico argentino para as principais equipes se dividira no torneio metropolitano, restrito aos clubes de Rosario, Santa Fe, La Plata e da Grande Buenos Aires; e no nacional, em que os melhores colocados do metropolitano enfrentavam os melhores das ligas do interior. O metropolitano de 1977 já havia consumido quase o ano todo, só se encerrando em novembro. Uma semana depois de sua rodada final, a bola já era chutada no certame nacional.

O sucesso dos rivais cordobeses Belgrano e Talleres em capa de El Gráfico da época; Valencia e Bochini em edição da véspera da segunda final

Os times do nacional de 1977 foram divididos em quatro chaves de oito cada. Apenas os primeiros colocados seguiam adiante, para as semifinais. Os de Avellaneda não tiveram tanto trabalho nessa fase: sem maiores sustos, venceram 10 dos 12 primeiros compromissos, com adversários que incluíam o ainda forte Huracán da época e o Argentinos Jrs de Maradona, e empataram outro, diante do Unión. O segundo colocado, porém, foi o Belgrano, de Córdoba. O nacional permitia um lugar ao sol a grandes equipes do interior, especialmente as cordobesas, com muitos de seus atletas conseguindo vitrine e chegando à seleção (Osvaldo Ardiles e Mario Kempes, meses depois campeões mundiais, por exemplo, receberam as primeiras convocações vindos do Instituto) e/ou clubes mais prestigiados.

E foi diante do Belgrano que a vaga foi selada, em um 3-0 na Doble Visera quatro dias depois do ano-novo. A única derrota inicial do campeão havia sido exatamente diante dos celestes, 2-1. Após a classificação, diablos reservas perderam os dois jogos que restavam, contra o Atlético Ledesma de Jujuy e o Argentinos Jrs. Dez dias depois de vencer o Pirata, os vermelhos disputaram a primeira semifinal, diante do Estudiantes, arrancando um empate em 1-1 em La Plata (Outes e Carlos López). O escore da ida se repetiu quatro dias depois em Avellaneda, com Pérez para os mandantes e Alejandro Onnis para os platenses. Na prorrogação, os locais fizeram valer o poder territorial e impuseram um 3-1, com Trossero e Bochini fechando o placar. Três dias depois, receberiam o adversário da final, outro cordobês. o

O Talleres, arquirrival do Belgrano, eliminara o Newell’s nas semifinais após deixar para trás os grandes Racing e River, além do Vélez, na fase de grupos. La T não fugia da grande safra que o futebol argentino teve nos anos 70, uma das últimas realmente douradas do país: três jogadores seus iriam à Copa do Mundo que os hermanos receberiam em meses – o zagueiro Luis Galván, que seria titular, e os meias Valencia e Miguel Oviedo. Humberto Bravo poderia ser outro; foi um dos três últimos pré-convocados cortados, ao lado de Víctor Bottaniz e Maradona. Segundo Larrosa, “a ida havia sido 1-1 em Avellaneda, parelha, calma, eles jogaram muito bem e de fato tinham quatro jogadores na seleção. No dia em que chegamos a Córdoba, a rota do aeroporto ao hotel estava repleta de bandeirinhas azul e branco. O jogo poderia ter sido ganho por qualquer um dos dois”.

Mas, além do bom time, o clube de Córdoba contaria com forte fator extracampo: a pressão do governador da província, general Luciano Menéndez, da ala mais dura e violenta da ditadura argentina e ansioso pelos bons frutos que um inédito título local poderiam render-lhe. A ida foi na Doble Visera e um gol de pênalti para cada lado (Trossero e Ricardo Cherini) sacramentou empate em 1×1. Para os diablos, restava então vencer ou conseguir empates a partir de 2-2 – havia critério de gols fora de casa, uma novidade para a época. E naquela 25 de janeiro foi o quadro de Avellaneda quem pôs-se inicialmente em vantagem. 

Outes comemora seu gol, e a declaração com ares de mito do técnico Pastoriza

Em tiro livre, Larrosa mandou o chuveirinho à área e Trossero, de cabeça, conectou a bola para outro cabeceio, esse definido de modo certeiro pelo artilheiro Outes rumo ao gol, aos 29 minutos. A polêmica começaria na segunda etapa, dando margens a fortes suposições de pressão na arbitragem durante o intervalo. Aos 15 minutos, em pênalti duvidoso assinalado para os mandantes, após a bola resvalar na mão de um defensor rojo, Cherini empatou. 14 minutos depois, veio um favorecimento ainda mais explícito: Roberto Barreiro validou gol de mão de Bocanelli.

“Tenho dois filhos e isso me dá vergonha. Expulse-me, expulse-me”, bradou o Galván do Independiente, Rubén (também na Copa 1978), ao árbitro, que lhe “atendeu”. Barreiro, que nunca mais apitaria, mostrou o vermelho ainda a Trossero (suspenso por 135 dias por ficar a um passo das vias de fato com o juiz) e Larrosa: “isto é uma usurpação”, comentara este, “por que não me expulsam também?”. Em 2017, ele lembraria que uma vez expulsos, “ficamos na porta do túnel. Depois das expulsões, poderiam nos ter metido 3 ou 4 gols a mais, mas Bocanelli, veja como Deus o castigou, chegou na área com um companheiro para dar-lhe um passe recuado e quis meter o gol ele mesmo, e nas três vezes pegou na rede pelo lado de fora”. 

Trossero, em 2016, também teceu comentários similares do drama à El Gráfico: “houve muitos protestos de forma veemente, mas nunca insultei. Entrou Pastoriza a nos acalmar, porque nós queríamos retirar o time. Dizem que desceu também Julio Grondona para evitar. Tivemos que ir ao vestiário e tratávamos de ver pela janela. Ao entrar no vestiário, El Negro Galván deu um soco na porta de vidro a machucou toda a mão. Foi raro, porque o Talleres tinha um timaço, eram 11 contra 8, e perderam vários gols, porque um queria brilhar mais que o outro”. Grondona ainda era presidente do Independiente na época, passando a presidir a AFA em 1979. Aquele título teria sido decisivo para lhe dar predicados.

Assim como Larrosa, Bochini também admitiu, em 2009, que “era mais provável que fizessem 3 ou 4 do que empatarmos”. O armador foi outro a pensar em sair. “Vamos, Bocha, que somos homens”, chegou a lhe tentar Larrosa. Mas para o técnico Pastoriza, com alguma serenidade mantida, ser homem era permanecer e jogar, demovendo nesse sentido os oito restantes da ideia. “Obrigado, senhor Pastoriza. Por esse nacional 1977 que me deu a oportunidade de dar a última volta olímpica com meu velho, enquanto ele dava os últimos dribles na morte”, dedicou-lhe o escritor Eduardo Sacheri, autor do conto que inspirou o oscarizado filme O Segredo de Seus Olhos. A improvável igualdade viria a 7 minutos do fim, dos pés do aniversariante, naquele que Pastoriza, técnico das vitoriosas Libertadores e Mundial em 1984, considerou o gol que mais comemorou em toda a vida.

O aniversariante Bochini rugindo após marcar o gol do título

O milagroso empate viera após tabela de Bochini com o amigo Bertoni (que, recuperando-se de lesão, entrara após a virada no lugar de Magallanes), desta vez com o Bocha concluindo, a exemplo do que ocorrera na decisão da primeira Intercontinental do clube, em 1973. O forte chute no alto das metas adversárias há 35 anos, na opinião do próprio Bochini, chegou a superar o daquela final contra a Juventus dentro da própria Itália como o momento mais alegre da carreira: “isto supera. Se juntam muitas coisas. Meu aniversário, a primeira vez que saio campeão (argentino) com o Independiente, porque até agora havia ganhado somente Copas. E tudo o que envolveu a partida”.

“Eu nem cheguei a ver o gol”, confessou Trossero, um dos mais vibrantes nas comemorações e que ironicamente torcia pelo rival Racing na infância, sentimento que já não persistiria à altura de 2016: “isso vai embora quando viras profissional. Veja que quando eu jogava no Nantes, a equipe que mais oferecia grana para me trazer à Argentina era o Racing e eu preferi voltar ao Independiente. Aí termina. Disse alguma vez [que era racinguista] e não tive problemas, eram outros tempos. Hoje (…) sofro muito quando vai mal o Independiente. Sempre desejo sorte ao Rojo. Me doeu que perdesse a final da liguilla [em 2015] para o Racing”.

“Faltavam menos de dez minutos, eu queria me meter no campo para cortar, que se gastasse tempo, qualquer coisa. Se fizesse, em vez de vinte rodadas teriam me dado dez anos de suspensão. Não dormimos nada nessa noite, ficamos festejando o título e o aniversário do Bocha”, concluiu Larrosa, que, por ir à Copa do Mundo quase não foi afetado pela sanção – já em fevereiro os pré-convocados iniciaram uma longa concentração, desligando-se provisoriamente de seus clubes, sendo aquela final inclusive a última partida de Bertoni (transferido ao Sevilla após a Copa) pelo clube. “Eles [Larrosa e Galván] se safaram porque foram treinar com a seleção. Eu estava no grupo de 40 pré-selecionados e fiquei fora. Foi muito triste, 153 dias sem jogar, mais de cinco meses”, resmungou Trossero.

Bochini, incrivelmente, também não iria à Copa de 1978. Mas não se queixa: “foi um dos dias mais felizes da minha vida. Não é comum conseguir empatar uma partida com três homens a menos, faltando tão poucos minutos e em um campo tão difícil quanto o do Talleres”, também declarou ele, calando os cânticos de vitória dos hinchas cordobeses (que reconheceram o mérito dos campeões, aplaudindo a volta olímpica) e a própria torcida roja, que vinha entoando “Ladrones, Ladrones, así salen campeones”. Como bem sintetizou a saudosa El Gráfico: “ia ser drama. Foi epopeia”.

A conquista em relatos da época

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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