História dos Pumas – Parte V: O primeiro sucesso mundial
O primeiro sucesso da Argentina em Copas do Mundo veio sob um técnico da Nova Zelândia, que é a adversária de logo mais no Quatro Nações – às 20:10 horas deste sábado, os Pumas recebem os All Blacks (que nunca perderam para os argentinos) no estádio Ciudad de La Plata para o quinto compromisso da primeira edição do chamado Rugby Championship. A partida será transmitida ao vivo pelos canais ESPN e ESPN+.
O ano da Copa anterior, 1995, foi marcado por uma das maiores mudanças do rúgbi: a permissão para o profissionalismo. Na Argentina, isto ainda não vigorou entre os jogadores, com o amadorismo ainda sendo obrigatório. Mas a União Argentina de Rúgbi percebeu que precisava, sim, deixar o órgão mais “profissional” – nem de preparador físico a seleção dispunha. Além de um departamento apropriado de recursos humanos, a UAR correu atrás de patrocinadores e contratos televisivos.
Pela última vez, a UAR organizou o campeonato provincial de Buenos Aires, para, a partir do ano seguinte, deixa-lo à cargo da União de Rúgbi regional e focar-se, enfim, no rúgbi nacional e na seleção. Tal mudança foi acompanhada de outras novidades: em 1996, o Hindú sagrou-se pela primeira vez campeão do torneio da URBA – ainda hoje, o mais prestigiado – e do nacional de clubes, do qual atualmente é o maior vencedor. Já o título provincial fora dividido com o Atlético del Rosario, campeão pela primeira vez desde que se religara aos bonaerenses, em 1985 (fora um dos cinco fundadores, em 1899), depois de décadas tendo de ser membro exclusivo da união rosarina.
Naquele ano, o ex-jogador e técnico puma Luis Gradín assumiu a presidência da UAR. Em meio ao desconforto dos conservadores, ele impôs a presença de um técnico estrangeiro para acompanhar o treinador José Luis Imhoff: Alex Wyllie, que dirigira sua terra natal na Copa de 1991. Outro tabu quebrado em 1996 também envolveu o exterior: pela primeira vez, a seleção convocou um jogador que atuava fora do país, mudando a postura antiga de deixar esquecidos os jogadores que estivessem no estrangeiro.
A Argentina havia se despedido melancolicamente da Copa 1995 por conta de dois ex-pumas que, renegados na Itália, passaram a defender os Azzurri: Mario Gerosa e, sobretudo, Diego Domínguez. Freddie Méndez, integrante dos mundiais de 1991 e 1995 como atleta do Mendoza, estava em 1996 no clube sul-africano Natal Sharks, de Durban. Além de primeiro puma “gringo”, ele foi igualmente o primeiro rugbier profissional na seleção. Méndez, naquele ano, foi vice-campeão da primeira edição do Super Rugby, principal torneio interclubes do hemisfério sul (paralelamente, no norte, se encerrou a igualmente primeira edição da Heineken Cup, versão rugbier da Liga dos Campeões da UEFA).
O que não mudou foram os maus resultados, uma constante para a seleção desde 1987. Em 1996, França e África do Sul obtiveram largas vitórias mesmo como visitantes (34 a 27 e 34 a 15 para os Bleus, 46 a 15 e 44 a 21 para os Springboks). Na visita à Inglaterra, a decepção foi por conta de ter perdido um test que se vencia até o final. Seria a primeira vitória sobre a seleção inglesa dentro do templo Twickenham, mas a Rosa terminou vencedora com um 20 a 18.
Até a Copa de 1999, os únicos grandes triunfos ocorreram em 1997, ambos no estádio do Ferro Carril Oeste: 33 a 13 na Inglaterra e 18 a 16 na Austrália. Só que ambos os visitantes também lograram vitórias em suas passagens, e mais largas (respectivamente 46 a 20 e 23 a 15). Além disso, 1997 reservou acachapantes 8 a 93 e 10 a 62 contra os adversários de logo mais, em uma viagem à Nova Zelândia. Os 8 a 93 ainda são a pior derrota dos Pumas.
1998 também foi bem amargo: além de novos reveses para os franceses (18 a 35 e 12 a 37 em Buenos Aires, 14 a 34 em Nantes), derrotas não só também para a Itália (19 a 23 em Piacenza) e Gales (30 a 43 em Llanelli), mas até para o Japão (29 a 44 em Tóquio). O ambiente azedou mais em 1999, após outras derrotas para os galeses, desta vez em Buenos Aires (26 a 36 a 16 a 23): o técnico Imhoff – pai do jogador Juan José Imhoff, da delegação atual – acabaria desligando-se da delegação por conta das desavenças com os jogadores.
A quatro meses da Copa de 1999, Héctor Méndez foi recrutado para ser a nova dupla de Wyllie, mas El Pipo também se retiraria em choque com os atletas, após tentar realizar mudanças na convocação que Imhoff listara para o mundial. Com isso, o neozelandês ficou como treinador único. Unido, o grupo conseguiu em agosto a primeira vitória da Argentina contra uma seleção britânica no Reino Unido: 31 a 22 na Escócia, no Murrayfield de Edimburgo, no dia 21 de agosto. Uma semana depois, no último test antes do torneio, derrota de 24 a 32 para a Irlanda – resultado que logo teria seu troco.
Na lista de jogadores, Newman, SIC e Hindú foram os clubes mais presentes na convocação, de cada um partindo cinco: Agustín Canalda, Martín Scelzo e os gêmeos Felipe e Manuel Contepomi, do primeiro; Diego Albanese, José Cilley, Gonzalo Longo e Rolando Martín, do segundo; Lucas Ostiglia, Gonzalo Quesada e outros irmãos, Juan e Nicolás Fernández Miranda, do terceiro.
Atlético del Rosario (Octavio Bartolucci e José Orengo), CUBA (Ignacio Corleto e Fernando Díaz Alberdi), Curupaytí (Mario Ledesma e Pedro Sporleder) e Liceo Naval (Ignacio Fernández Lobbe e Eduardo Simone), por sua vez, enviaram duplas. Alejandro Allub (Jockey Club de Córdoba), Gonzalo Camardón (Alumni), Raúl Pérez (Duendes de Rosario), o atual técnico puma Santiago Phelan (CASI) e Miguel Ruiz (Mendoza) foram os demais saídos do rúgbi nacional.
Por fim, completaram a lista cinco jogadores “estrangeiros”: o capitão Lisandro Arbizu (Brives-FRA), ex-Belgrano Athletic; Roberto Grau (Saracens-ING), ex-Mendoza; Omar Hasan (Agen-FRA), ex-Natación y Gimnasia de Tucumán; Agustín Pichot (Bristol-ING), ex-CASI; e Mauricio Reggiardo (Castres Olympique-FRA), ex-Pueyrredón de Mar del Plata.
A Copa de 1999 teve os mesmos anfitriões de 1991, agora com o País de Gales sendo a sede principal (oito anos antes, fora a Inglaterra). Outra diferença foi no número de participantes, subindo de 16 para 20, ocasionando três estreantes: a Namíbia, nove anos após tornar-se independente da África do Sul; e duas nações hispânicas, uma sendo a própria Espanha e a outra, o Uruguai, o segundo sul-americano a marcar presença no torneio. Um dos rugbiers uruguaios, curiosamente, chamava-se Diego Aguirre. Falamos aqui de um xará seu no futebol, também uruguaio.
Outra novidade trazida pela quarta Copa de Rúgbi foi o do primeiro caso de irmãos se enfrentando, na primeira fase, onze anos antes de isso ocorrer pela primeira vez também em uma de futebol (com Jérôme e Kevin-Prince Boateng, respectivamente alemão e ganês em 2010). No rúgbi, os “pioneiros” foram os neozelandeses Graeme e Stephen Bachop. Já haviam competido por países diferentes na de 1991: Graeme jogara pela terra natal naquele mundial e no de 1995, e defenderia o Japão em 1999. Já Stephen, como em 1991, competiria pela Samoa das raízes. E ambos seriam adversários também dos argentinos na fase inicial de 1999.
Outra dupla fraterna separada, igualmente neozelandesa, foi a de Mike e Tana Umaga, com o primeiro também integrando o plantel samoano e o segundo, sendo All Black. Além de Graeme Bachop, outros “vira-casacas” mundialistas da ocasião foram Va’aiga Tuigamala (neozelandês em 1991, samoano em 1999), Jamie Joseph (neozelandês em 1991 e 1995, japonês em 1999) e Adrian Garvey (zimbabuano em 1991, sul-africano em 1999).
Ao contrário das Copas seguintes, em que vêm havendo quatro grupos de cinco, para a de 1999 a divisão foi cinco grupos de quatro, cada um tendo um anfitrião: além de Gales, também França, Inglaterra, Escócia e Irlanda (cuja chave teve jogos na República e na Irlanda do Norte, que no rúgbi são unidas em uma única seleção). Os líderes de cada iriam diretamente às quartas-de-final. Já os cinco segundos colocados e o melhor terceiro se pegariam em play-offs para definir as demais três vagas.
A Argentina ficou na chave galesa, e, contra a sede principal, abriu o evento, no Millenium Stadium de Cardiff. Gonzalo Quesada demonstrou já ali que seria a peça principal dos sul-americanos. Sempre de penal, marcou todos os pontos argentinos, que chegaram a estar à frente no placar no primeiro tempo. Mas, assim que conseguiu a dianteira, Gales soube preservá-la e confirmou a constante superioridade que vinha exercendo recentemente sobre os argentinos. Ainda assim, venceu só por 23 a 18.
O adversário seguinte seria Samoa. Ainda como Samoa Ocidental (o país reduziu o nome em 1997), fora seguidamente uma carrasca nas Copas de 1991 e 1995. Nesta última, perdia por 12 a 26 até os últimos dezoito minutos, quando iniciaram uma virada para 36 a 26. Ao fim do primeiro tempo, conseguia impor um terceiro revés seguido, indo para os vestiários do Stradey Park, em Llanelli, com uma vantagem de 16 a 3.
Quesada e a sua pontaria certeira seriam as grandes figuras de uma mudança espetacular após o intervalo. Aos 24 da segunda etapa, ele, que de penal fizera os pontos argentinos da primeira, já havia colocado 18 a 16 no escore após acertar outros quatro penais e um drop goal. A vitória foi garantida com um try de Alejandro Allub e mais três penais de Quesada, um destes do meio-de-campo. Os argentinos voltavam a conseguir uma vitória em Copas depois de doze anos.
Aquela ainda é o único triunfo em quatro jogos já realizados contra os samoanos (que venceriam em Buenos Aires um amistoso de 2005), a única nação do pelotão intermediário a ter retrospecto favorável diante dos Pumas. O pequeno arquipélago da Oceania foi representado por Silao Leaegailesolo, Afato So’oalo, George Leaupepe, Va’aiga Tuigamala, Brian Lima, Stephen Bachop (Tanner Vili), Steven So’oalo, Pat Lam, Junior Paramore, Sene Ta’ala, Lama Tone (Kalolo Toleafoa), Opeta Palepoi (Ohenunga Matauiau), Robbie Ale, Trevor Leota (Isaac Feau’nati, que interpretou Jonah Lomu no filme Invictus) e Brendan Reidy (Mike Mika).
Já a primeira vitória mundialista puma desde 1987 foi alcançada por Manuel Contepomi, Bartolucci, Simone, Arbizu, Albanese, Quesada, Pichot, Longo, Martín, Phelan, Fernández Lobbe, Allub, Hasan, Ledesma e Reggiardo na formação inicial. Scelzo, Camardón e Ruiz também fariam parte, entrando no decorrer da partida nos respectivos lugares de Hasan, Bartolucci e Longo.
Contra o já eliminado Japão, a ter perdido por 9 a 43 para os samoanos e por 15 a 64 para os galeses, a Argentina precisava vencer por 69 pontos de diferença para se garantir logo nas quartas-de-final, como líder da chave. De volta ao Millenium Stadium, venceu “apenas” por 33 a 12, a derrota menos elástica dos orientais, restando aos Pumas somente a terceira colocação. Quesada demonstrou sua importância: se os 21 pontos que marcou (todos de penais) fossem retirados, o jogo teria terminado empatado.
Os argentinos, justamente os melhores terceiros colocados, conseguiram ao menos passar, pela primeira vez, de fase. Pelo sorteio, pegariam os irlandeses no Stade Félix Bollaert, em Lens. O jogo opôs dois grandes chutadores, em um duelo de Quesada contra David Humphreys. O primeiro tempo encerrou-se em 15 a 9 para os de Trevo no peito, com os pontos marcados de penais pelo artilheiro de cada equipe.
No começo do segundo tempo, Humphreys acertou novo penal e também um drop goal, colocando os europeus na frente com 21 a 9. Queso respondeu com dois penais, mas o goleador irlandês acertou mais um, ficando em parcial de 24 a 15, diminuído para 24 a 18 após novo penal acertado pelo abertura argentino. A oito minutos do fim, então, os Pumas ganharam cinco metros de terreno em um scrum.
O half-scrum Pichot habilitou a bola para Felipe Contepomi, que a repassou para o ponta-direito Camardón. Este último entregou-a para o outro ponta, Albanese, galgar rapidamente pela esquerda e conseguir um try. Quesada entrou novamente em ação, marcando no chute de conversão e colocando os alvicelestes, enfim, na frente: 25 a 24. No penúltimo minuto, Quesada acertou novo penal, dando números finais à histórica classificação argentina para as quartas-de-final. Conta-se que o hoje técnico puma Phelan (curiosamente, descendente de irlandeses), esgotado, precisava perguntar a colegas onde estavam os de verde para que pudesse interceptá-los.
Os dramaticamente derrotados por 24 a 28 foram Conor O’Shea, Justin Bishop, Brian O’Driscoll, Kevin Maggs, Matt Mostyn, David Humphreys, Tom Tierney, Dion O’Cuinneagain, Kieron Dawson, Andy Ward, Malcolm O’Kelly, Jeremy Davidson, Paul Wallace, Keith Wood e Reggie Corrigan. Os classificados estavam alinhados com praticamente o mesmo conjunto que vencera Samoa, com Corleto e Camardón escolhidos nos lugares originais de Manuel Contepomi e Bartolucci. No meio do cotejo, Felipe Contepomi entraria no lugar de Corleto e Scelzo, no de Hasan.
Depois de vencerem a Irlanda na França, seria a vez de medir forças com a França na Irlanda, no Lansdowne Road de Dublin. Os franceses começaram frenéticos, conseguindo um 17 a 0 ainda aos dez minutos. A primeira etapa terminou reequilibrada com um 27 a 20 para os europeus, com o onipresente Quesada acertando um penal e os chutes de conversão dos tries argentinos, alcançados por Pichot e Arbizu.
A desvantagem de sete pontos permaneceu até os 33 minutos, agora em um 33 a 26, com Speedy Gonzalo somando seu 102º ponto na Copa ao acertar um penal e Felipe Contepomi, outro. Os Bleus, porém, também tinham seu pé calibrado: Christophe Lamaison. Este já havia acertado quatro penais e três chutes de conversão na partida. Aos 33 e aos 39 da segunda etapa, então, pontuou com outras duas conversões, após os desequilibrantes tries de Philippe Bernat-Salles e Xavier Garbajosa.
Naquele 24 de outubro, os Pumas repetiram quase toda a escalação que funcionara diante da Irlanda, desta vez com Roberto Grau iniciando no lugar de Hasan. O intenso decorrer do jogo obrigou Wyllie e realizar diversas outras substituições: Manuel Contepomi no lugar de Simone, Felipe Contepomi no do artilheiro Quesada, Nicolás Fernández Miranda no de Pichot, Ostiglia no de Phelan, Ruiz no de Fernández Lobbe, Scelzo no de Reggiardo e Canalda no de Ledesma.
Os Bleus, que eliminariam ainda a favorita Nova Zelândia do superastro Jonah Lomu em sua última Copa (em espetacular virada de 10 a 24 para 43 a 24), venceram por 47 a 26 com Xavier Garbajosa, Philippe Bernat-Salles, Richard Dourthe, Christophe Dominici, Émile Ntamack, Christophe Lamaison, Fabien Galthié, Christophe Juillet, Olivier Magne, Olivier Brouzet, Abdelatif Benazzi, Marc Lièvremont, Franck Tournaire, Raphaël Ibañez e Cédric Soulette. Mas também tiveram de realizar várias trocas: Ugo Mola, Stéphane Glas, Stéphane Castaignède, Arnaud Costes, Michel Auradou, Marc Dal Maso e Pieter de Villiers substituíram Garbajosa, Dourthe, Galthié, Juillet, Benazzi, Ibañez e Soulette, respectivamente.
Gonzalo Quesada terminou como goleador do mundial. Quando Marc Lièvremont, enfrentado por ele nas quartas-de-final, assumiu o comando técnico da seleção francesa, recrutou-o para treinar os chutadores gauleses. Queso, maior símbolo da primeira grande campanha argentina em um mundial de rúgbi, acabaria eleito o esportista do ano no país em 1999. Foi o terceiro e ainda último rugbier a receber o chamado Olimpia de Oro, coroando ainda mais o ano em que a União Argentina de Rúgbi completou o seu centenário.
Os antecessores de Quesada na premiação foram os capitães Aitor Otaño em 1965, ano em que a seleção tornou-se puma após vencer os Junior Springboks (o presidente Luis Gradín era seu colega ali); e Hugo Porta em 1985, quando este, eleito ali também o melhor rugbier do mundo, fora o principal homem por trás da primeira vitória sobre a França e da única não-derrota contra a Nova Zelândia – o próximo oponente no Quatro Nações.
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