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Heleno de Freitas, 100 anos: como foi sua passagem pelo Boca?

A imagem mais famosa de Heleno pelo Boca, em capa da El Gráfico já em 1º de outubro de 1948 – por ironia, ele estava em inatividade por lesão havia mais de um mês

Ontem foi marcado no futebol como centenário de Heleno de Freitas, caso o grande atacante do Botafogo ainda vivesse ao invés de sucumbir às complicações da sífilis ainda no ano de 1959 – a tempo de acompanhar com migalhas de lucidez a conquista brasileira no torneio que lhe escapou, a Copa do Mundo, conforme retratado na cinebiografia Heleno, que Rodrigo Santoro protagonizou. A película não deixa de vesti-lo com a camisa do Boca em parcos segundos, mas com licenças poéticas desmistificadas em consulta na imprensa da época. Vale assim relembrar como foi o semestre xeneize de Heleno, com base no Jornal dos Sports. Tal como pelo resto da carreira e da vida, o astro teve altos, que incluíam uma estreia promissora e cogitação para defender a própria seleção argentina, mas os baixos acabaram prevalecendo.

O filme mostra que Heleno era o oásis em um time limitado que sofria um longo jejum estadual até chegar a uma decisão contra o Fluminense onde o empate era favorável ao adversário. Com o jogo em 2-2, o atacante teria a chance do título em um pênalti que teria desperdiçado. Arrasado, revolta-se contra colegas que aceitaram alegremente o bicho dado pelo empate formal, em arruaça que leva o presidente alvinegro Carlito Rocha a vende-lo ao Boca sem consultar o astro – comunicando-o com o negócio já fechado. A história, porém, não foi bem essa. Inclusive porque a negociação partiu do próprio Heleno. Já a a disputa final com o Fluminense deu-se ainda pelo estadual de 1946, enquanto a ida ao Boca só se deu em junho de 1948. O empate de fato favoreceria os tricolores, que não jogaram com o regulamento sob o braço: venceram por 1-0, gol do reforço midiático Ademir de Menezes, sem que a biografia Nunca houve um homem como Heleno registrasse qualquer perda de pênalti do botafoguense.

Profissionalizado em 1940, Heleno ainda é o maior artilheiro dos duelos entre Botafogo x Fluminense (16 gols) e Botafogo x Flamengo (22, quatro deles em um 6-4 em 1946 e dois no “clássico da sentada” rubro-negra em 1945), mas passou a maior parte da década longe da disputa pelo título: em tempos de estadual em pontos corridos no segundo semestre, o Fogão ficara em um 4º lugar a 16 pontos do Fluminense naquele ano; em um 3º a seis pontos do Fluminense em 1941; em um vice mas a onze pontos do Flamengo em 1942; em um 7º a 14 pontos do Flamengo em 1943, situações que não impediram que ele estreasse pela seleção brasileira em 18 de maio de 1944, em um 4-0 amistoso sobre o Uruguai no Pacaembu, inclusive marcando o segundo gol da goleada. Ao fim de 1944 é que a taça estadual tão perseguida começou a ficar mais próxima: o Botafogo terminou em 3º, mas a dois pontos do Flamengo, e seu atacante se sagraria artilheiro da Copa América realizada no Chile em fevereiro de 1945 (algo destacado no filme, inclusive). O Brasil não evitou que a Argentina, vitoriosa por 3-1, terminasse um ponto à frente e campeã, mas Heleno voltou a ter estrela diante do Uruguai, surrado por 3-0 com dois gols dele. Ao fim de 1945, o Botafogo terminaria vice-campeão a quatro pontos do Vasco, mas o atacante pôde em dezembro gritar campeão: na Copa Roca, a Argentina começou ganhando por 4-3, mas caiu no segundo jogo por um 6-2 que ainda é a maior goleada brasileira no clássico e a segunda derrota mais elástica da história da Albiceleste (era a maior àquela altura).

O saldo não definia ainda a taça, havendo a necessidade de um terceiro jogo, onde Heleno abriu o placar de um 3-1, em tarde de bronca para os visitantes em São Januário, com a fratura de José Battagliero. No início de 1946, na Copa América, o atacante voltou a se destacar contra os uruguaios, anotando o terceiro gol em vitória por 4-3. Mas depois os argentinos teriam seu troco, sagrando-se campeões em clássico marcado por pancadaria generalizada após seu capitão José Salomón também ser fraturado; Heleno, que escapara de ser expulso após chutar a bola no bandeirinha, já vinha sendo sondado pelo Boca na época e a confusão o fez rechaçar a oferta. Sobreveio então o vice estadual para o Fluminense em confronto direto na rodada final do estadual. Em 1947, o Botafogo foi novamente vice carioca, mas a distantes sete pontos do Expresso da Vitória vascaíno – que assegurou o título justamente em um empate no clássico alvinegro, mas um 0-0 ainda na antepenúltima rodada. Houve Copa América, mas sem participação do Brasil; a CBD rompera com a AFA pelos incidentes de 1946, mas encarou o Uruguai pela Copa Rio Branco. Após 0-0 no primeiro jogo, o Brasil faturou a taça com um 3-2. Heleno fez justamente o terceiro – o filme mostraria logo no início o quão ele lamentaria não estar em campo no Maracanaço, confiante de que o evitaria se reencontrasse os fregueses.

Pela seleção (ainda em tempo de camisa branca) com Leônidas da Silva no 6-2 sobre a Argentina em 1945, maior goleada do Brasil no clássico. Fez o quinto gol

No início de 1948, Heleno seguia normalmente no Botafogo, a ponto de realizar em 4 de abril o abril seu último jogo pela seleção, novamente pela Copa Rio Branco, em 1-1 com o Uruguai no Centenário, sem participar da derrota de 4-2 para a Celeste sete dias mais tarde. Com o estadual agendado apenas a partir de julho, os clubes cariocas travaram no primeiro semestre um torneio municipal preparatório. Nele, de fato, Fluminense e Botafogo se enfrentaram na rodada final, que terminou empatada – mas em 1-1, com os alvinegros já sem chances de taça (enquanto o Tricolor terminou co-líder, forçando jogo-extra com o Vasco, no qual se sagraria campeão) e com seu astro já tendo àquela altura estreado pelo Boca: o clássico se deu em 20 de junho, ao passo que Heleno já pudera estrear na Argentina ainda no dia 6 de junho. Atuara naquele torneio municipal até o sexto dos dez jogos, no 4-2 sobre o Canto do Rio em 26 de maio (seis dias após abrir o placar em um 3-1 amistoso no Southampton, que havia assustado ao aplicar um 4-0 no Fluminense outros quatro dias antes), e ainda fez-se presente em um amistoso em 0-0 contra o Athletico Paranaense três dias depois. Foi sua última partida como alvinegro; naquele mesmo 29 de maio, o Jornal dos Sports, que já vinha noticiando há dias a negociação travada com o Boca (os argentinos ofertaram inicialmente 100 mil pesos, mas os cariocas queriam o dobro, que equivaleria a 600 mil cruzeiros – valor que terminaria acatado), deu a versão de Heleno.

Segundo o craque, as conversas teriam começado “ultimamente, há coisas de duas semanas, por intermédio de um rotariano argentino”. Heleno prosseguiu sobre o emissário: “jamais o vi, estava apenas credenciado pelo Boca para colocar-me em contato com a diretoria desse clube. Claro que eu aceitei. Porque achei que já em tempo de tratar de meu futuro. O Botafogo está sendo consultado. Quero ir para o Boca, mas isso não depende de mim só. O Botafogo é também senhor do meu destino. Por mim, irei com o maior prazer. Acho que o Botafogo está exigindo muito, pois em oito anos de atuação no alvinegro não recebi 400 contos. Estive revendo meus contratos e fazendo as contas direitinho”. Na mesma conversa, Heleno especificou que na própria véspera havia passado duas horas e cinquenta minutos ao telefone com emissários auriazuis, mas que ainda se considerava alvinegro e disposto a atuar no amistoso com o Athletico. Na véspera, o mesmo Jornal dos Sports inseriu uma crônica de José Lins do Rego, lamentando a operação: “apesar de tudo, o rapaz ainda é o melhor do Brasil. Reclamando, enfezado, irritando até as traves dos goals, ainda é ele o melhor, o mais eficiente, o de mais classe, o mais capaz. Outros poderão vir, mas, por enquanto, ninguém se aproxima dele. Depois que Leônidas se foi ou melhor, depois que acabou o football de Leônidas, o que existe por aí é o football de Heleno. Por tudo isto, é que lastimo que ele se vá com destino a Buenos Aires”.

Já a edição de 29 de maio também contou com a impressão de Vargas Netto: “para o Botafogo, a transação é conveniente por vários motivos. Apesar de o Heleno ter sido criado dentro do Botafogo e ser um jogador partidário do clube, seiscentos mil cruzeiros são seiscentos mil cruzeiros… o Botafogo não está em campanha de campeonato, porque se estivesse, seiscentos mil não seriam nada. Acrescente-se a isso que dificilmente o Heleno permaneceria no seu atual clube nesses dois anos que ainda pretende jogar, pois o seu passe custa apenas a módica quantia de quarenta e cinco mil cruzeiros. O contrato atual do jogador com a associação referida terminaria em abril de 1949, o que significa menos de um ano de contrato, e, assim sendo, ou o Botafogo o venderia agora por seiscentos mil cruzeiros ou daqui a dez meses por quarenta e cinco mil, sem ter colhido utilidade dessa retenção do atleta”. Os 600 mil cruzeiros, vale contextualizar, significavam a contratação mais cara do continente até então.

Já a edição de 30 de maio conteve tanto uma descrição simbólica sobre a atuação de Heleno no amistoso contra os paranaenses (“armou boas jogadas que não foram aproveitadas por seus companheiros”) como uma espirituosa coluna de Zé de Januário: “O Botafogo de Football e Regatas vai fazer o maior negócio do mundo. Vai vender por seiscentos mil cruzeiros o ‘passe’ de Heleno para o Boca Juniors. Se o Heleno quando joga fechasse a boca, o Botafogo não teria necessidade de fechar negócio com o Boca. A questão é que o Heleno vive de boca aberta em campo. Briga com Deus e todo mundo! Como o Heleno abre a boca, o Botafogo foi só abrir a boca para receber seiscentos mil cruzeiros do Boca. Todas nós ficamos de boca aberta ao saber que o Botafogo tinha vendido o ‘passe’ do patrão do team e dono do grêmio alvinegro. Felizmente, o Botafogo fechou-nos a boca mostrando-nos um cheque de seiscentos mil cruzeiros que, afinal de contas, dá para qualquer um ficar de boca ao lado ou com água na boca. Eu não sei se o Botafogo fez negócio de boca ou preto no branco. Aliás, com o Boca não há negócios de boca, é tudo preto no branco para as coisas ficarem alvinegras”. Só que além da humorada, tal coluna terminaria profética:

Registro da estreia espetacular de Heleno, contra o Banfield: dois gols e participação em outro em 3-0 fora de casa

“O Boca Juniors tem no seu pavilhão o azul do céu e o ouro das estrelas. Cada campeonato ganho é representado em sua bandeira, na flâmula e escudo por uma estrela. Não faltam estrelas no pavilhão boquense. Uma estrela solitária pouco alterará a sua constelação. No Boca, quando o jogador abre a boca, não vê mais o azul do céu nem o ouro das estrelas. As multas deixam o jogador no inferno e carregam o ouro para os cofres do Boca. Daqui a seis meses o Heleno estará arrependido de ter deixado o Botafogo, verdadeira pensão de D. Estela, autêntica Amélia do esporte”. E ainda houve espaço para que em 2 de junho o Jornal dos Sports transcrevesse uma conversa de Heleno e Carlito Rocha, em tom bem distante do filme, onde o jogador é quem teria pressionado o clube: “necessito melhorar minhas condições econômicas. Parto convencido de que não podia fazer senão isso. Os dias de football passam, é preciso a gente aproveitar todas essas oportunidades que são raras e nunca se repetem”. O dirigente teria lamentado: “pois é, Heleno, eu só pedi os 600 contos porque estava convicto de que o Boca não chegaria a tanto. Mas ele chegou. Agora não há outra saída”. Impressão corroborada pela coluna de Vargas Netto no dia seguinte:

“A transferência de Heleno para o Boca Juniors não atendeu um interesse financeiro do Botafogo, mas do próprio jogador. Ele pretende jogar apenas mais dois anos, pois está caminhando para os vinte e nove anos e tenciona parar aos trinta”. O que os jornais não explicavam pode ser visto no filme: o atacante já vinha sofrendo com estágios iniciais da sífilis, mas não queria tratar-se, receoso de ficar impotente nos gramados, perdendo credenciais de jogar a Copa de 1950, e nos lençóis. O jornal, através de seu correspondente em Buenos Aires, detalhou bastante a ótima impressão inicial que os argentinos tiveram do brasileiro: “na realidade, não tivemos jogador mais cobiçado nesses últimos dez anos. Aqui e no estrangeiro. Muito mais no estrangeiro. É longa a lista dos clubes platinos que desejaram Heleno. Nacional, Peñarol, River, Boca, Racing, San Lorenzo, Huracán e Newell’s Old Boys foram os mais persistentes. O Boca insistiu sempre, e por isso levou a melhor. Heleno de Freitas, com 29 anos de idade, transformou-se, assim, da noite para o dia, no jogador mais caro da América. Nem [Isidro] Lángara, nem [Ángel] Zubieta, nem [Adolfo] Pedernera, nem [José Manuel] Moreno, nem [Severino] Varela, nem [José] Soriano valeram tanto!”, exaltava.

Vale apresentar quem eram os jogadores mencionados: os dois primeiros eram astros espanhóis que viraram ídolos no San Lorenzo; dois seguintes são astros do River normalmente descritos como melhores jogadores argentinos da primeira metade do século XX, com Pedernera negociado ao Atlanta em 1947 e Moreno indo ao México em 1944 e voltando em 1946; sem parentesco com Obdulio, Severino Varela foi o uruguaio marcado pelos gols que fizeram o Boca ser bi seguido em 1943-44 sobre a própria La Máquina do River; e Soriano era o goleirão peruano do River campeão de 1945, cujas saídas arrojadas a gol teriam inspirado seu celebrado sucessor Amadeo Carrizo. Em seu primeiro treino, Heleno marcou dois gols, mas inicialmente foi noticiado que seria poupado do jogo contra o Banfield até ambientar-se por mais alguns dias. Mas em 6 de junho ele já estava em campo contra os alviverdes. E teve uma das estreias mais auspiciosas que o Boca já viu, marcando dois gols em triunfo fora de casa por 3-0. O Jornal dos Sports registrou inclusive que as notícias de sua atuação foram anunciadas em jogo no Pacaembu, emocionando a plateia mais patriótica. E publicou a descrição dada pelo correspondente Geraldo Romualdo da Silva:

“Heleno era a atração. O estádio do Banfield se tornou pequeno para conter os que queriam ver o famoso crack brasileiro debutando em canchas argentinas. Para muitos, perder o primeiro jogo do astro máximo do football do Brasil, como diz a imprensa de Buenos Aires, seria deixar fugir a oportunidade de ver o ‘Messias’ do Boca Juniors, o player que veio como o príncipe encantado dos contos de fadas, para, num toque de mágica, afastar o azar dos auriazuis, trazendo, em troca, uma era de tranquilidade numa catadupa de vitórias. Por isso se quebrou o record de renda no campo do Banfield, por isso a torcida boquense gritou o nome de Heleno como um queremista gritaria o de Getúlio num comício do ex-presidente da República”. Afinal, desde o bi sob Severino Varela em 1943-44 o Boca amargara um trivice seguido. E em 1948 vinha péssimo, derrotado por 4-1 pelo Racing (em casa, encerrando 33 jogos e três anos de invencibilidade na Bombonera), por 5-1 pelo Chacarita, por 2-1 em casa pelo Rosario Central e por 2-1 também em casa pelo então líder, mas modesto Platense. Quanto à atuação, o correspondente detalhou que Heleno, entendendo-se bem com os meias Yeso Amalfi (também brasileiro, reforçara o Boca no início do ano) e Juan José Negri (depois jogador de São Paulo, onde fez gol na final estadual de 1953, e Santos, onde teve o adolescente Pelé como pupilo), teve participação já na abertura do placar.

Tentativa de bicicleta contra o Newell’s: não evitou derrota de 1-0 dentro da Bombonera

No lance, aos 22 minutos, a falta cobrada por Natalio Pescia teria entrado em providencial dividida do brasileiro com o goleiro banfileño. Aos 36 minutos, saiu enfim o gol aguardado: recebeu de Carlos Sosa e sofreu falta de Juan José Pizzuti. Alberto Castelani cobrou o tiro e o brasileiro recebeu, colocando-se entre dois zagueiros e concluindo com um curto arremate. Então, “no segundo tempo, com a vitória assegurada, o Boca Juniors atuou com uma elegância e superioridade que lhe eram desconhecidas há tempos. Heleno, convertido num perfeito timoneiro da nave boquense, realizava avanços pela ponta ou pelo centro, evidenciando notável domínio da bola. Culminou a atuação do brasileiro em um segundo goal aos quarenta minutos do jogo, sendo premiado com uma ovação monumental. Heleno tem o seu êxito assegurado e, como o rival de hoje é considerado de pouca força, espera-se que reedite sua extraordinária performance ante o San Lorenzo, no próximo domingo. Com a atuação de Heleno, o campeonato argentino adquiriu enorme interesse”; no lance, desferiu chute forte para aproveitar cruzamento recuado do astro Mario Boyé. A revista Mundo Boquense, empolgada, escreveu que “a chegada de Heleno de Freitas na última quinta-feira foi um dos pontos altos do ano, primeiramente porque isso significa que o Boca possui um dos mais valorizados jogadores do Brasil nos anos recentes e, em segundo lugar, porque sua chegada ao Boca Juniors tornou-se um dos momentos mais especiais da história do nosso clube”.

Em 11 de junho, a coluna de Vargas Netto registrava que “até os jornais o disputaram para colaborador, e o Clarín levou a melhor, pagando quinhentos cruzeiros por crônica que Heleno escrever. A repercussão popular foi de tal monta que o pequeno estádio do Banfield quase arrebentou com as quarenta cinco mil pessoas que desejavam ver a estreia do novo astro do Boca! Heleno é a vitória do football brasileiro. Mas a vitória definitiva e incontestável. A chegada dele a Buenos Aires aproximou mais a Argentina e o Brasil do que várias missões diplomáticas, econômicas ou parlamentares, porque estas não fazem a argamassa dos povos, a compreensão do homem anônimo, do cidadão comum, da gente da rua, que representa o verdadeiro sentimento das cidades”. Ainda sob aquela euforia, as edições seguintes registravam boatos de que, por sugestão de Heleno, o Boca iria atrás do são-paulino Rui e do vascaíno Danilo. Em 12 de junho, ainda na véspera da partida seguinte, porém, já havia um alerta do Jornal dos Sports, na chamada “cuidado, Heleno!”: “na realidade, nunca nenhum jogador brasileiro viveu dias de maior fastígio no estrangeiro. Já não são apenas as fotografias, as recepções, as manifestações públicas e os ‘bichos’. Com efeito, a diretoria do vice-campeão portenho não sabe mais o que fazer para agradar a Heleno”.

O texto seguia: “bastou Heleno revelar que não se encontrava bem num hotel e que breve necessitará de um apartamento, pois contrairá matrimônio dentro de um mês, para que todo o clube saísse a buscar um local onde venha a encontrar-se a gosto, mais do que presentemente, embora hóspede de um excelente hotel, localizado em plena ‘calle’ Florida… até o automóvel que ele deixou no Rio parece fadado a ser transportado a Buenos Aires. Flores, agrado, presentes, gratificações superiores a cinco mil cruzeiros coroam a sua atuação de estreia. Assim é o Boca, foi sempre assim. Quando há vitória e goals como sucedeu domingo, tudo ganha aparência feliz. Mas ai deles quando não há goals e quando volta a fase ruim das derrotas!”. Em casa, o Boca não saiu do 1-1 com o San Lorenzo. Heleno não reeditou “a mesma brilhante atuação de seu jogo de estreia”, mas ainda foi poupado: “constatou-se então que Heleno sofreu uma distensão do ligamento lateral da rótula direita, em primeiro grau, sendo o jogador submetido imediatamente a um tratamento de massagens e radioterapia. Heleno teve instruções para ficar em repouso até sexta-feira, quando voltará a ser examinado”.

Uma semana depois, o time foi derrotado em La Bombonera pelo Newell’s por 1-0 e a euforia inicial já dava lugar ao azedado “mar revolto”, segundo a nota do Jornal dos Sports: “findo o cotejo, todos eles foram demoradamente apupados ao portão de saída. Diante do sucedido e dos comentários de que tem sido alvo, também Heleno vem se mostrando aborrecido. Está verdadeiramente muito pesaroso com o insucesso de seu clube por ocasião da peleja com o Newell’s Old Boys. Indagado sobre como se encontrava e como encarava todos os fatos relacionados com esse revés, declarou-nos: ‘noto que o ambiente footballístico deste país é excessivamente carregado… quando as coisas não saem como os clubes esperam…’. Impressiona nas palavras do famoso center-forward sua preocupação pelo destino do quadro, dos companheiros reservas, inclusive o dele próprio”. Mas o alvo brasileiro de críticas seria um inoperante Yeso, com Heleno ainda tendo créditos: “não cumpriu má atuação. A crônica esportiva local acentua que Heleno foi domingo passado frente ao Old Boys muito bem policiado pelo centro médio adversário, que realizou uma excelente partida, não permitindo ao atacante brasileiro uma chance para desenvolver o seu jogo costumeiro e habilitar os seus companheiros, que também não produziram o que deles se podia esperar. Ainda assim, Heleno mostrou-se muito ativo e enérgico nas suas intervenções”.

No 4-1 sobre o Estudiantes dentro de La Plata

O jogo seguinte, em 27 de junho, deu alguma paz ao Boca, com um 4-1 em La Plata sobre o Estudiantes, embora o brasileiro chegasse ao terceiro jogo seguido sem gols. Em 1º de julho, o jornal então publicou uma longa entrevista com o astro e os obstáculos que não escondia na adaptação: “muitos. Três, no entanto impenitentes, que foram a responsabilidade colocada sobre meus ombros, o frio e a marcação cerrada, quase pessoal, que todos os adversários fazem sobre mim. O meu ingresso no Boca chegou a representar para torcedores do clube, críticos e adversários a salvação do quadro. Eu teria que fazer tudo, como seja, jogar bem e marcar goals, o que não é pouco para quem vem de fora e para quem nunca foi um fenômeno… o clima, ah, meu Deus!, que medo do clima. No princípio, o frio ainda se mostrou camarada. Cheguei a iludir-me e a achar que se exagerava demais o frio portenho. Mas, à maneira que os dias iam passando, verificava que aqui fazia realmente um frio de doer os ossos! Muitas saudades, saudades que refletem cá dentro e arrebentam o coração da gente. A saudade bem que poderia ser classificada como o meu inimigo maior, mas se eu falasse mais sem chegar às outras coisas decerto que alguém iria achar que eu estava forjando desculpas para possíveis fracassos”.

Em 4 de julho, o torneio foi suspenso provisoriamente pela AFA e o brasileiro obteve folga para vir ao Brasil casar-se no dia 8. A edição de 6 de julho continha assim uma entrevista com a estrela brevemente regressada ao Rio, onde não escondia problemas, mas “nem por isso, conforme adiantou, lamenta haver dado o passo que deu: ‘O Boca é um grande clube, clube de dirigentes amigos, e seus jogadores, excelentes profissionais, impressionam também como bons camaradas. Comigo, pelo menos, têm sido cavalheiros em todos os sentidos”. Àquela altura, o torneio vinha se sacudindo por uma greve dos jogadores (que levara à suspensão provisória pela AFA) e Heleno foi convidado a opinar: “há muito de precipitação no movimento. Mas, também, existe intransigências que estão levando a questão para um terreno perigoso. Lamentavelmente, as partes se desentenderam gravemente, e aí está o mal de tudo”. Indagado sobre seu posicionamento, respondeu: “a de mero espectador. Sou estrangeiro, não tenho direito a promover barulho na terra dos outros. No máximo, solidarizar-me com os colegas. Solidariedade de caráter moral, sem objetivos dissolventes.  Vim porque tinha que vir. E estou exultante em rever minha terra. Caso-me a 8, se Deus quiser, e embarco a 13. Possivelmente em companhia de minha querida mãe, que muita falta me faz fora do Brasil…”.

A importância materna, de fato, foi bastante destacada no filme, embora sua mãe não chegue a ser interpretada – ao passo que o casamento mostra-se outra incorreção, ao insinuar-se que deu-se antes da transferência. A cerimônia, para a qual Heleno precisou entrar pelos fundos da igreja tamanha a comoção nos portões (noticiou-se também que Carlito Rocha comparecera como convidado), dividia espaço no jornal juntamente com notas sobre a visita do “Grande Torino” ao Brasil. Na partida seguinte, o Boca novamente goleou por 4-1, agora sobre o Tigre. Heleno novamente não marcou, embora se notasse uma assistência de cabeça para o primeiro gol, de Jaime Sarlanga. Mas terminou protagonista involuntário do jogo seguinte, uma vitória fora de casa por 1-0 sobre o Vélez em 25 de julho: “grave incidente ocorreu ontem por ocasião do jogo entre o Vélez Sarsfield e o Boca Juniors, em consequência do qual o crack brasileiro Heleno ficou contundido, determinando o juiz inglês, Cox, a expulsão de um jogador boquense – Brattina – e dois do Vélez – Heisecke e Huss. Huss, negando-se a retirar-se do gramado, motivou a intervenção da polícia para tornar efetiva a ordem do juiz”, registrou o Jornal dos Sports. A lesão não impediu que Heleno disputasse a rodada seguinte, nada menos que o Superclásico. Justamente ali, o River venceu pela primeira vez em La Bombonera, inaugurada em 1940, em placar de 2-1 em 1º de agosto.

Ele enfim voltou a marcar na partida posterior, abrindo de cabeça a virada de 3-1 fora de casa no Lanús no dia 8. Assim, o Jornal dos Sports noticiou no dia 12 que ele poderia ser requisitado pela seleção – mas a da Argentina mesmo. Ela enfrentaria o Uruguai pela Copa Lipton, troféu binacional que permitia participação de estrangeiros. Eis o relato do correspondente do Jornal dos Sports a respeito: “ora, bem, bem, ele não vai. Mas, mal de todo também não. De fato, Heleno ainda não se encontrou, integralmente, dentro das condições que possui. Continua com aqueles mesmíssimos defeitos tão nossos conhecidos de reclamar, de não conceber que os companheiros errem, e quando erra, alega que a falta veio de mais atrás… coisas dele e que duram 90 minutos. Apesar disso – é curioso -, continua chefiando a ofensiva xeneize e muito dificilmente será desalojado dali. Por quê? Ora, porque dirigentes e hinchas boquenses, tal como sucedia aqui, estão sempre esperando o melhor de Heleno. Seja como for, a verdade é a seguinte: o nome de Heleno de Freitas figura desde agora na lista dos possíveis convocados para a Lipton de 48. A despeito de Stábile poder contar com Di Stéfano e Di Stéfano ser ainda um grande center-forward; a despeito de Bravo crescer dia a dia e Pontoni não haver caído um décimo sequer em sua produção de todos os domingos. Quer dizer, assim, que tudo depende dele mesmo. De Heleno só”.

O quinteto ofensivo do Boca de 1948: Mario Boyé, Juan Negri, Heleno, Yeso (tambem brasileiro) e Gregorio Pin

Curiosamente, o tal Rubén Bravo depois defenderia o Botafogo nos anos 50. René Pontoni, por sua vez, era o ídolo de infância do Papa Francisco no San Lorenzo e passaria pela Portuguesa. Adiante, o Boca soube vencer em Avellaneda o líder Racing por 1-0 no dia 15 de agosto, embora 48 horas depois tenha sido sacolejado por 5-1 em Superclásico amistoso. Mas em 22 de agosto o brasileiro voltou a contundir-se, no 1-1 com o Huracán. Ficaria sem jogar por mais de um mês. Eis o relato do Jornal dos Sports: “apenas má sorte. Com efeito, transcorriam já 30 minutos do primeiro tempo e o Boca dominava completamente o campo, tendo já conseguido 1 tento. Heleno e Durán disputavam a pelota quando, repentinamente, o brasileiro caiu com a perna direita machucada. Foi logo suspenso o jogo, porém, Heleno foi obrigado a sair de campo, continuando o Boca com 10 homens apenas até o fim do primeiro tempo. Nesse ínterim, o Huracán conseguiu empatar. No segundo tempo, o brasileiro voltou a jogar. Via-se, porém, que não passava de uma figura decorativa, pois mal podia correr e, quando mais, usar de sua tão conhecida agilidade. Apesar de tudo, entretanto, o Boca teve uma atuação impressionante e o próprio Heleno esteve a ponto de fazer duas vezes o goal que seria o da vitória, não conseguindo atravessar o arco apenas por descuido. Não se sabe ainda a gravidade ou não do acidente com Heleno, nem quanto tempo ficará impossibilitado de jogar”.

A lesão foi especialmente inoportuna porque o Boca viria ao Rio de Janeiro jogar um amistoso com o Vasco em 1º de setembro. Apesar da gravidade, Heleno veio junto, sob expectativa de que seria empregado por alguns minutos, mas já rendendo boatos de uma volta ao Botafogo também – algo rechaçado pelo presidente xeneize Daniel Gil na edição de 31 de agosto: “absurdo. Não poderíamos fazer semelhante coisa. Heleno vem produzindo no meu clube à altura das necessidades. Não é possível exigir mais, quando se sabe que o nosso quadro até então vinha atravessando uma fase técnica adversa. O Boca Juniors está satisfeito com Heleno e não o negociará em hipótese alguma”. O brasileiro fora autorizado a embarcar antes a seu país e concedeu longa entrevista publicada ainda na edição do dia 29, onde lamentara o Superclásico no início do mês: “em tudo na vida, há sempre verdades que devem permanecer conosco. Enfim, para cúmulo dos cúmulos, das dificuldades naturais, dos conflitos internos, jamais atuei com sorte. Várias vezes a chance rondou meu caminho. Primeiramente, contra o San Lorenzo, meu segundo match, quando ao apagar das luzes do encontro tive o goal aberto à minha frente e não marquei. Depois, enfrentando o River Plate, teria conquistado o tento da vitória senão andasse tão pesado. Recebi uma bola no meio do campo, driblei Ramos, driblei Rossi, ganhei a grande área, passei por Vaghi, ganhei a pequena área, derivei para a esquerda a fim de melhor deslocar o arqueiro Carrizo, que pegava tudo e, caindo para a esquerda, chutei com a esquerda mesmo, mas em direção ao canto oposto da meta. O estádio esperou de pé o goal salvador, mas o goal não veio. E não veio porque o poste evitou sua consumação. Se eu fizesse aquele goal, podia arrumar as malas e gozar um mês de férias no brasil!”.

Além da má sorte, Heleno também justificava o desempenho aquém do esperado a um recuo de posicionamento: “eu já falei em verdades secretas. Essa história da minha pouca eficiência como finalizador tem profunda relação com outros acontecimentos. Uma coisa posso garantir: tive que adaptar-me a determinadas circunstâncias. Comecei por transformar-me, de perseguir goals a mero construtor. Estou irreconhecível. Jogo atrasado. O feitiço virou contra o feiticeiro”. Mas também exaltava os líderes Racing e River: “são, de fato, os teams melhores. O River levando certa vantagem sobre o Racing, pela homogeneidade. O Racing possui uma linha constituída por valores individuais de recursos excepcionais. Em compensação, não se lhe nota o mesmo equilíbrio na retaguarda. Ganha jogos, alguns por alta contagem, graças às virtudes de Salvini, Méndez, Bravo, Simes e Sued – um quinteto impressionante – todos controladores perfeitos e todos bons artilheiros. A meu ver, a grande sensação do five é Simes, o jovem insider esquerdo comprado ao Huracán”. O tal Méndez, inclusive, fora o jogador que dividira com Heleno a artilharia da Copa América em 1945; depois, viraria o maior artilheiro da história da competição.

Heleno também se deslumbrara com o afamado Moreno: “estava cometendo uma grave injustiça ao maior de todos os atacantes argentinos. Apesar dos anos de football, Moreno ainda supera a quantos estão se destacando. Ele é a linha do River. Destrói, constrói e finaliza com a mesma elegância e igual sentido de oportunidade. Eu era jogador não definido e Moreno já atuava na primeira divisão do River Plate. Depois disso se disse que estava em decadência. Foi para o México, atuou lá duas temporadas e retornou ao River, para continuar sendo no River a mola mestra, o cérebro do conjunto. Não acredito que a Argentina haja tido alguém superior. Em coisa alguma. Estou propenso a admitir que nem Sastre foi melhor do que ele”, concluía, em referência ao polifuncional ídolo são-paulino que teria ensinado os brasileiros a jogar futebol, na opinião de Osvaldo Brandão. Em paralelo, sua lesão se agravou para uma infecção nos tornozelos, segundo a edição de 20 de setembro. Heleno só voltaria a campo em outubro, mas, apesar da lesão da vez ser mais grave, já não era poupado de críticas – a edição de 30 de setembro já indagava onde ele estaria em 1949, com o correspondente registrando que o próprio Heleno teria-lhe dito que “casado, serei outro Heleno. Serei tolerante. Pode estar certo que vou mudar”, o que não vinha sendo cumprido. As tais “verdades secretas” escondidas pelo atacante também poderiam estar implícitas na mesma nota, que divulgava que ele assustou os argentinos ao não poupar o compatriota Yeso de críticas na derrota para o San Lorenzo.

Rodrigo Santoro interpretando o xeneize Heleno no filme de mesmo nome, em cena onde bate o pé para treinar de sobretudo: o Heleno real calhou de transferir-se à Argentina na época do inverno e não escondeu suas agruras com o frio

Segundo a mesma nota, os hermanos, gradualmente, começaram a preferir que o posto fosse retomado pelo veterano ídolo Sarlanga (quarto jogador com mais gols pelo clube), uns por verem-no como superior e outros já por “pura pirraça”. Também não teria agradado ao recusar-se a jogar o amistoso contra o Vasco e por não sequer ter guiado os colegas em passeios pelo Rio. Além disso, Yeso vinha saindo de uma má fase. Curiosamente, foi nessa época que Heleno enfim apareceu na capa da prestigiada revista El Gráfico, na edição de 1º de outubro. Ele enfim reestreou em 18 de outubro, curiosamente um reencontro com o Banfield. Com direito a assistência do brasileiro Yeso, tocou na saída do goleiro para abrir o placar no 3-2, e cavou o pênalti (convertido por Carlos Sosa) que a dois minutos do fim assegurou o triunfo. E enfim pôde marcar pelo segundo jogo seguido, anotando o sexto de um 6-2 no Ferro Carril Oeste três dias depois – só que em jogo amistoso. Outros três dias mais tarde, foi derrotado pelo San Lorenzo, mas elogiado pelo Jornal dos Sports: “Heleno e Yeso foram os que puseram maior entusiasmo na luta da equipe boquense, juntamente com Vacca”. Em seguida, o time saiu de Rosario com um 1-1 contra o Newell’s no dia 31. A ligeira melhora, porém, já não convencia Ángel Zubieta, astro do San Lorenzo. Ainda hoje o jogador mais jovem a estrear pela seleção espanhola, ele depôs assim sobre Heleno para a edição de 7 de novembro do Jornal dos Sports:

“Um grande jogador que se perdeu por culpa própria. Não vi até hoje ninguém ser mais festejadamente recebido no estrangeiro. Cedo, porém, decepcionou seus companheiros e torcedores. Isso de reclamar e levantar os braços em demasia não convence ao argentino que joga e assiste football. Vítima da própria impaciência e de um nervosismo perturbador, cedo desiludiu”. Heleno jogaria em mais quatro partidas e marcou três vezes, mas o inchamento dos gols foi enganoso: em novembro, a greve dos jogadores entrou na fase mais aguda. Se naquele 1-1 com o Newell’s eles simbolicamente não se movimentaram no primeiro minuto de jogo, generalizaram ainda mais para a rodada seguinte. Seria no dia 7 e terminou adiada para o 14, quando os cartolas, sem querer conversa, só usaram juvenis. Como não estavam sindicalizados, Heleno e outros estrangeiros (Yeso e o peruano Carlos Gómez Sánchez, também do Boca; o paraguaio José Ocampo, do Racing) foram liberados pelos colegas para atuarem nos jogos seguintes, ao passo que só o racinguista Manuel Graneros e os riverplatenses Carrizo e José Ramos furaram a greve dentre os argentinos.

Nisso, Heleno abriu o placar no 1-1 com o Tigre em 21 de novembro (em potente chute com a ponta do pé) e no 3-2 sobre o Vélez (em chute rasteiro cruzado, com assistência do brasileiro Yeso) no dia 28, ambos jogos em casa; esteve no 1-1 em Superclásico esvaziado no Monumental no dia 8 de dezembro; e por fim anotou em belo voleio o segundo gol de movimentado 3-3 com o Lanús na rodada final: os grenás chegaram a virar um 2-0 para 3-2 até sofrerem o empate. Àquela altura, os principais jogadores da liga mantinham-se em atividade com amistosos informais país adentro que atraíam mais público que os jogos oficiais, onde a reduzida plateia não se inibia em vaiar os espetáculos pobres que assistiam. Na data seguinte ao fim do campeonato, a edição de 9 de dezembro do Jornal do Brasil descrevia um Heleno abatido e com seis quilos a menos e que já manifestava desejo em voltar logo ao Rio, embora possuísse mais um ano de contrato com o Boca: ironicamente, sem ele, bem reposto por Pirillo, o Botafogo enfim foi campeão estadual – desfazendo em 12 de dezembro um jejum de treze anos. A decepção clube-jogador estava mútua: a edição do dia 16 o colocava como presente na lista de dispensáveis do Boca, o que se agravou com sua ausência no treino no dia seguinte (sendo multado em cem pesos).

A primeira edição do ano de 1949 reiterou a condição de dispensável do brasileiro. Mas Heleno, já na edição de 9 de janeiro, dizia-se disposto em cumprir todo o contrato, atribuindo essas notícias ao candidato às eleições presidenciais boquense derrotado. Autorizado a passar férias no Rio, ele participou do treino do Botafogo no dia 21. O filme exibe, porém, que o elenco já estava fechado. E os jornais da época também: Heleno chegou a admitir falta de espaço na velha casa e passou a frequentar treinos do Flamengo na Gávea. A cada dia no Rio, seu desejo em permanecer crescia e a edição de 1º de fevereiro publicava que, no depender do astro, nem amarrado ele voltaria à Argentina, embora uma portaria da CBD impedisse que brasileiros com contratos no exterior se regularizassem no Brasil antes de dois anos de cumprimento do contrato – confiante de que obteria uma permissão especial, Heleno voltou a Buenos Aires apenas para solucionar sua revenda, segundo a edição do dia 16. Não houve um pomposo jogo de despedida, ao contrário do informado no filme.

Heleno com dois argentinos no Botafogo: José Santamaría (em pé, à esquerda) e Alfredo González (agachado à direita, ao lado de Heleno). E como coadjuvante no Expresso da Vitória – Chico tinha uma avó argentina

Sem querer sair no prejuízo, o Boca pedia 250 mil pesos ao Flamengo, conforme a edição do dia 22. O negócio não saiu, mas o atacante teve a autorização para férias no Rio renovada e inclusive reforçou o time B do Botafogo em jogo-treino contra a seleção chilena em 29 de março: o Chile se preparava para a Copa América que seria sediada no Brasil e venceu por 5-2 sobre os aspirantes botafoguenses, sendo exatamente de Heleno os dois gols de honra. Mas as portas ao time principal continuaram fechadas. A do Vasco, não: em 19 de abril, as negociações do Boca com os cruzmaltinos começaram a ser divulgadas. O time da Colina, porém, só estava disposto a pagar 100 mil pesos, segundo a edição do dia 23. E a vontade vascaína prevaleceu, em nome da boa relação que os clubes tinham desde as negociações por Domingos da Guia e pela posterior resolução de imbróglio com Bernardo Gandulla e Raúl Emeal (jogadores que o Ferro Carril Oeste vendera aos auriazuis em 1939, quando debandaram sem autorização ao Vasco, que pudera então combinar o repasse da dupla ao Boca para 1940).

Já no dia 24, o negócio foi anunciado como fechado, com a contrapartida exigida pelos argentinos se limitando que o Boca tivesse preferência para o primeiro amistoso internacional que o Vasco agendasse para si (embora um duelo só viesse a ocorrer já em 1951). O resto foi bem retratado no filme: foi no novo clube que Heleno enfim sagrou-se campeão carioca, embora com menos gols que Ademir (artilheiro do torneio, com 30), Maneca (14) e Ipojucan (12). Curiosamente, embora Rodrigo Santoro seja notório torcedor vascaíno, só vestiu a camisa do coração para fotografias pregadas na parede do quarto de manicômio onde Heleno viveria seus últimos anos, sem cenas de jogo, ao menos na edição final. Apesar do título invicto e do clube servir de base para a seleção, as rusgas com o técnico Flávio Costa, especialmente após o atacante ameaçar-lhe com um revólver, não o recolocaram na equipe nacional, também treinada por Costa. Sem esperanças de ir à Copa, em 1950 ele reforçou o Junior de Barranquilla no Eldorado Colombiano – destino de muitos argentinos desgostosos com aquela greve de 1948 não ter colhido êxito, enquanto o líder do movimento, Oscar Basso, reforçaria justamente o Botafogo em 1950.

Na Colômbia, Heleno pôde encantar o torcedor Gabriel García Márquez, embora o filme preferia resumir sua passagem por lá às bebedeiras e alguma outras notas de jornais pregadas no quarto. Não foi exibido nada do atacante pelo Santos e sim sua decadência acentuada em seu retorno ao Rio, para defender o America. Quanto ao Boca, foram dezoito jogos e oito gols, considerando-se aí aquele amistoso com o Ferro. A média próxima de meio gol por jogo era considerada insatisfatória a um centroavante para a época. O site estatístico Historia de Boca não esconde a impressão infeliz deixada pelo brasileiro: “tinha um estilo elegante, técnico e de bom cabeceio, no Boca não pôde mostrar todas as suas condições”.

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

One thought on “Heleno de Freitas, 100 anos: como foi sua passagem pelo Boca?

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