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Héctor Scotta, o maior artilheiro de uma só temporada argentina: 60 gols em 1975

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Mais um gol no clássico, na casa rival: contra o Huracán, Scotta fez 8 de seus 140 gols pelo San Lorenzo

Há exatos 40 anos, em um 28 de dezembro, ocorria a rodada final do ano de 1975. O San Lorenzo bateu o Gimnasia de Jujuy por 3-0, com dois gols de Héctor Horacio Daniel Scotta Guigo. Ali ele encerrava um recorde absoluto de gols em uma só temporada para o futebol argentino, mote para relembrarmos hoje o goleador excepcional que foi El Gringo, que está no Top 5 dos maiores artilheiros do clube do Papa – e apenas um gol abaixo do quarto (Rodolfo Fischer) e a dois do terceiro (Rinaldo Martino); que tem uma das melhores médias também na seleção argentina; e que nomeia setores dos estádios Nuevo Gasómetro e Ramón Sánchez-Pizjuán, respectivas casas do San Lorenzo e do Sevilla, outro clube onde brilhou.

No Brasil, o sobrenome Scotta remete a um argentino que, pelo Grêmio, teria feito o primeiro gol do Brasileirão para aqueles que se opõem à unificação com os torneios pré-1971 canetada pela CBF há alguns anos. Trata-se de Néstor Scotta, La Tola, irmão de Héctor, El Gringo. Um dos erros da Wikipédia é por vezes informar que Héctor também teria sido gremista, o que na realidade não ocorreu. Se um dos irmãos é célebre no Brasil, o outro tem prestígio tamanho na Argentina que até gerou equívoco na produção do oscarizado filme O Segredo de seus Olhos: a narração da antológica cena no estádio menciona El Gringo Scotta como um dos atacantes do Racing, onde apenas Néstor jogou. Falamos aqui.

Héctor não era exatamente habilidoso. Tinha uma técnica um tanto rudimentar, sem sutilezas ou maiores elegâncias. Sem medo do ridículo, tentava e tentava até conseguir um gol, não se importando e fazê-lo de joelho, coxa, ou outra via possível. Mas era rápido. Sua principal característica eram os arremates potentes, os scottazos, por vezes surpreendendo de longa distância. Gerou lenda de que, a cada três chutes, dois rompiam as redes ou as placas de publicidade. Modesto, afirmou que “é certo que às vezes rompia as redes, mas um pouco era pela minha potência e também porque nessa época não as tiravam das traves durante a semana e se apodreciam pela chuva”.

Nascidos na cidade santafesina de San Justo, os irmãos Scotta começaram no Unión, uma das principais equipes da capital Santa Fe. Néstor, o mais velho, estreou no Tatengue em 1967. Héctor veio em 1969, do Colón de San Justo – time que, curiosamente, tem o mesmo nome do arquirrival unionista. O caçula estrearia no ano seguinte, logo demonstrando o faro de gol independente da qualidade dos colegas: o Unión foi rebaixado, mas aquele jovem ponta-direita se salvou. Ainda como jogador de meio-campo, fez 9 gols em 23 jogos, incluindo um nos 3-1 fora de casa no clásico santafesino com o Colón, sendo o artilheiro do elenco alvirrubro. O desempenho levou Scotta ao San Lorenzo.

Mesmo se adaptando à ponta, foi o artilheiro do plantel azulgrana em 1971, ano em que o atacante integrou a seleção argentina juvenil em Toulon. Já pelo novo clube, fez 11 gols em 23 jogos no Torneio Metropolitano. No Torneio Nacional, a média foi ainda mais alta, com 9 gols em 11 partidas, um deles na final com o Rosario Central, que ganhou por 2-1. Mas o Sanloré, vivendo período dourado, não tardaria a alegrar a torcida: em 1972, ganhou tanto o Metropolitano como o Nacional, sendo o primeiro clube a faturar os dois torneios na mesma temporada: saiba mais.

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No início, no Unión; com o irmão Néstor, ex-Grêmio; com o velho Arsenio Erico, que detinha desde 1937 o recorde quebrado em 1975; e na seleção em 1976

Mas 1972 foi agridoce ao atacante: quebrou a tíbia contra o Estudiantes, ainda pelo Metropolitano, onde deixou seis gols. Não pôde atuar na campanha do Nacional: “estive três meses na cama sem mover a perna. Logo passei três meses caminhando com muletas. A recuperação me levou um ano. Ia ao estádio e o povo me dizia que não voltava mais”. Mas os torcedores eram gratos, incluindo-o na música-tema daquele bicampeonato: “Con Irusta y Glaria/con Espósito y Rosl/El recuerdo de Fischer también estará/Rezza, Telch, Chazarreta/Ayala y Heredia/con García Ameijenda, Cocco, Scotta/Y otros más”.

Após um 1973 irregular, enfim explodiu em 1974. O San Lorenzo somou no Nacional seu terceiro título em três anos, encerrando um período glorioso em um torneio onde havia começado muito mal: retratamos neste outro Especial. Scotta foi fundamental, com 17 gols em 20 partidas, incluindo um na última rodada do octagonal final: o Ferro Carril Oeste havia aberto o marcador e El Gringo empatou com uma bomba de falta, abrindo caminho para virada por 3-1 que se encerraria em 3-2. O outro único que ainda tinha chances de título era o Rosario Central (de Mario Kempes), deixado um ponto atrás e assim levando o troco por 1971. Individualmente, porém, a melhor temporada de Scotta foi a seguinte.

O San Lorenzo foi só o 11º colocado no Metropolitano de 1975, mas o atacante foi artilheiro do torneio, com 32 gols em 38 rodadas. Também foi o artilheiro do Nacional, com incríveis 28 gols em 23 partidas – lá, os azulgranas ficaram em terceiro no octagonal final, ainda que já não tivessem chances de título na rodada derradeira. Os 60 gols no ano pulverizaram os 47 gols da lenda Arsenio Erico (maior artilheiro do Argentinão) pelo Independiente em 1937, até então os números recordista em uma só temporada no país. “Devo muitos ao Negro (Oscar) Ortiz”,  declarou, referindo-se aos cruzamentos precisos do habilidoso ponta titular da Argentina campeã da Copa de 1978 (e ex-Grêmio, por sinal).

Ele não acredita que perderá o recorde: “o futebol de agora é muito defensivo. Há outra ideia futebolística. Antes se jogava com cinco atacantes, depois se passou a usar três e agora às vezes jogam só com um. Havia muito jogo de rua. No meu povoado, creio que até tijolo chutávamos”. E ele conseguiu a marca sem necessitar concentrar-se com os colegas. Teve permissão especial para dormir em casa e juntar-se a eles com algumas horas de antecedência, em mimo do técnico Alberto Rendo, que tivera o mesmo benefício como jogador do elenco campeão invicto de 1968 e sabia que o atacante se cuidava. El Gringo recebeu, com justiça, o Olimpia de Plata como melhor jogador argentino do ano.

O técnico da seleção, César Menotti, que em 1975 havia se dedicado a testar jogadores do interior, não teve escolha e Scotta estreou na seleção adulta em 25 de fevereiro de 1976. Auspicioso foi pouco: fez os três gols da vitória por 3-2 sobre o Paraguai em plena Assunção, em jogo válido tanto pela Copa Bogado (troféu entre os dois países) como pela Taça do Atlântico (competição travada entre eles, Uruguai e Brasil). A partida mais famosa, porém, foi por motivos tristes: em 24 de março, fez nos 2-1 sobre a forte Polônia, também fora de casa. No mesmo dia, houve golpe de Estado na Argentina. Scotta foi um dos jogadores que, a princípio, lutaram para que a partida não se realizasse. Os militares, cuidadosos, suspenderam toda a programação televisiva daquela data, menos o jogo da seleção. Saiba mais.

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No início de San Lorenzo, no Sevilla, Boca e Deportivo Armenio. Só no Boca não rendeu

Scotta deixou o país naquele mesmo ano, acertando com o Sevilla – o irmão Néstor também foi ao exterior, ao Deportivo Cali (onde foi artilheiro das Libertadores de 1977 e 1978, onde foi vice). Foi a contratação mais cara dos andaluzes até então. Mas na época, ir ao estrangeiro mais atrapalhava do que ajudava a manter-se na seleção. Menotti só levaria um jogador de fora para a Copa de 1978: Mario Kempes, outro que saíra em 1976, levando toda a família consigo ao Valencia por temer represálias em razão dos vínculos familiares com o peronismo. Ao todo, foram apenas sete jogos pela Albiceleste, mas com cinco scottazos certeiros.

Kempes não pôde ser ignorado por Menotti pois emendara duas artilharias no Espanholzão pelo Valencia. Scotta tampouco foi mal. Arrancou imediatamente a idolatria ao estrear marcando gol em clássico com o Real Betis por um torneio municipal. Na liga espanhola, conseguiu meio gol por jogo por um Sevilla modesto, que não passava do oitavo lugar. Scotta ainda é bastante prestigiado na Andaluzia, onde radicou-se uma filha sua, Cinthia, cujo filho Valentino está atualmente nos juvenis sevillistas. O ex-clube, quando excursionou pela Argentina em 2015, tratou de convidar seu velho artilheiro para acompanhar tudo, em nota divulgada na mídia espanhola (clique aqui).

Voltou ao futebol argentino no ascendente Ferro Carril Oeste em 1980, onde pouco jogou. Em 1981, regressou ao San Lorenzo, mas nem o clube nem o atacante eram mais os mesmos. Scotta fez na antepenúltima rodada seu último jogo pelo Ciclón, em um 2-1 contra o River. Como não poderia deixar de ser, El Gringo marcou. Mas o clube, adiante, tornaria-se o primeiro dos cinco grandes argentinos a ser rebaixado. Ao todo, foram 140 gols em 226 partidas pelos azulgranas, marcando oito vezes no clássico com o Huracán. Grande carrasco do Boca (foi marcando duas vezes nele em um 5-3, um deles a 40 metros de distância no ângulo, que Scotta ultrapassou o recorde de Erico, em novembro de 1975), arriscou seu prestígio entre os sanlorencista ao juntar-se em 1982 aos auriazuis.

Começou bem, entrando nos quinze minutos finais para dez minutos depois marcar no 1-1 contra o Rosario Central, fora de casa. Mas o novo manto não lhe caiu bem, só marcando outra vez nas outras 16 partidas que fez pelos xeneizes. A partir de 1983, passou a trotar pela segunda divisão, onde seu nível ainda servia: naquele ano, foi artilheiro, com 17 gols, do elenco do Deportivo Armenio (apenas o 7º de um grupo de 11), estando a seis gols do artilheiro da Primera B, Carlos Seppaquercia. Em 1985, Scotta foi vice-artilheiro da segundona pelo All Boys, apenas o 15º colocado.

Passou ao rival Nueva Chicago em 1986, arrancando dessa vez a artilharia de um torneio fatal: a segundona, então restrita a clubes da Grande Buenos Aires, La Plata e Rosario, seria nacionalizada a partir do segundo semestre, onde começaria uma temporada que se encerraria na metade do ano seguinte, nos moldes europeus. No primeiro semestre, houve um torneio de transição no qual só os quatro primeiros dos dois grupos participariam da nova Primera B Nacional. O Chicago foi só o 8º em um grupo de dez e assim foi colocado na temporada 1986-87 na Primera B Metropolitana, a terceira divisão. Ainda passaria por San Miguel, Estudiantes de Buenos Aires e Villa Dálmine, dentre outros, somando 92 gols no mundo ascenso. Atualmente, o goleador reside na cidade de Martínez.

Atualização em 08-01-2016: publicamos um especial também sobre Néstor Scotta, cujo falecimento completou quinze anos neste dia – clique aqui.

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Em foto recente com troféu de artilheiro e nos clubes onde conseguiu: no San Lorenzo de 1975, no Nueva Chicago de 1986

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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