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Héctor de Bourgoing, pela Argentina e pela França

Com galo no peito, em 1962

Gonzalo Higuaín e David Trezeguet nasceram na França, cresceram na terra dos pais, a Argentina, e divergiram nas seleções que escolheram: El Pipita quis a Albiceleste, enquanto Trezegol virou Bleu. Não tão conhecido como eles, outro atacante, Héctor Adolfo de Bourgoing (a pronúncia francesa correta dessa palavra é “Burgoã”, mas o sobrenome virou “Burgôin” nas narrações dos hermanos), não precisou ser indeciso, pois conseguiu jogar pelas duas nações. Nos 20 anos de sua morte, falaremos sobre ele – que, como os outros dois, também passou pelo River Plate.

Nasceu em 23 de julho de 1934 em Posadas, capital da província de Misiones – da qual seria seu primeiro representante em uma Copa do Mundo, ainda que não pela Argentina. Era filho da uruguaia Sixta Maciel com o francês Philippe-Adolphe de Bourgoing (naturalizado como Adolfo), descendente de uma família ilustre que remontava de prefeitos a embaixadores nos tempos napoleônicos, e contemplado ainda no século XIX com uma plantation de erva-mate naquela região fronteiriça ao Paraguai e aos três Estados do sul brasileiro. Héctor começou em um dos principais times de Posadas, o Guaraní Antonio Franco, então restrito ao torneio municipal; o campeonato argentino, apesar do nome, ainda era oficialmente restrito à Grande Buenos Aires, La Plata, Rosario e Santa Fe.

Da liga de Posadas, Héctor foi pinçado inicialmente pelo River, em 1952, mas acabou desaprovado na peneira. Recém-regressado da segunda divisão para 1954, o Tigre seria mais atento e o contratou naquele ano. E o reforço, mesmo na ponta-direita e não como centroavante, foi o artilheiro dos rubroazuis, deixando 12 gols (um deles logo na estreia, 2-0 no Racing) em 29 aparições no campeonato de 1954, além de cinco assistências – e contribuição decisiva também em outro gol, em pleno Clásico de la Zona Norte com o Platense, com o 2-2 inaugurado por um colega a partir de um rebote da trave a um cabeceio do ponta. Destacando-se pela velocidade e habilidade, De Bourgoing fez boa dupla com Ernesto Cucchiaroni (ele próprio também um misionero e posadeño, ficando um natural mentor ao novato), logo ídolo de Boca, Milan e Sampdoria.

No Tigre. À esquerda, time de 1956 (primeiro agachado; a seu lado, o antigo goleador “Tucho” Méndez)

Em 1955, foram oito tentos e duas assistências diretas em 25 jogos na melhor campanha tigrense no século XX (6º lugar, só superado pelos vices alcançados em 2008 e 2012), além de gerar outro gol a partir de um pênalti cavado para um colega converter. Foi aquela a campanha que rendeu o apelido de Matador à equipe, que chegou mesmo a liderar o certame no início. Em 1956, foram dez gols e oito assistências do franco-argentino. Os últimos gols chamaram atenção especial: o penúltimo foi em derrota honrosa de 2-1 para o futuro campeão River, na antepenúltima rodada; o outro, na última, ajudou o Tigre a empatar com o Gimnasia em 2-2 e escapar do rebaixamento.

Mesmo na ponta-direita e em uma equipe que também tinha Llamil Simes e Norberto Tucho Méndez, ambos ídolos históricos de Huracán e Racing (e, no caso de Méndez, também da seleção – é o maior artilheiro da Copa América, com 17 gols), o artilheiro do plantel do clube de Victoria em 1956 foi novamente ele, De Bourgoing. Que, na reta final do torneio de 1956, acabaria ganhando chances do técnico Guillermo Stábile na seleção argentina. Primeiramente, em um curioso amistoso não-oficial contra o Grêmio (sim! O Tricolor Gaúcho recebeu no antigo Olímpico Monumental os hermanos em 20 de setembro e soube ficar no 0-0). Depois, em dois duelos contra o Uruguai por troféus binacionais, em 10 de outubro pela Copa Newton e em 14 de novembro pela Copa Lipton. De Bourgoing realizou outros três jogos pela Argentina, no início de 1957.

Na seleção, ele foi titular somente contra os gremistas; em todos as suas outras cinco partidas, veio do banco para substituir o titularíssimo Omar Corbatta, um Garrincha argentino que brilhava no Racing (falamos dele aqui). De Bourgoing integrou o elenco campeão da Copa América daquele ano, no Peru, onde atuou apenas na partida contra o Equador. Também enfrentou o próprio Peru, em amistoso, e sua última partida foi outra diante dos uruguaios, pela Copa Newton. Em 1957, o ponta enfim teve o gosto de ser reconhecido pelo River, que necessitava de um substituto para Santiago Vernazza, recém-vendido ao futebol italiano. O Millo, reparando o equívoco cometido anos antes, enfim contratou o ponta.

River Plate campeão de 1957. De Bourgoing é novamente o primeiro agachado

Na primeira temporada, o misionero foi bem: em 22 jogos, contribuiu com 12 gols, quatro assistências e um pênalti cavado que um colega converteu. A equipe de Núñez vinha tendo grande década; se nos anos 40 era conhecida como La Máquina, a dos 50 não deixou por menos: La Maquinita já havia ganho quatro campeonatos, incluindo os dois últimos. Mas foi em 1957 que, com o quinteto ofensivo De Bourgoing, Eliseo Prado, Norberto Menéndez, Ángel Labruna e Roberto Zárate, o River teve o ataque mais goleador da década (75 gols em 30 rodadas). O primeiro tri riverplatense seguido, naturalmente, acabou vindo naquele 1957.

O ano de 1958, porém, já não foi tão bom, tanto para o clube como para De Bourgoing: Stábile preferiu chamar apenas Corbatta para a posição de ponta-direita na Copa da Suécia, compensando com quatro centroavantes (o titular Menéndez, do River; Ricardo Infante, do Estudiantes; José Sanfilippo, do San Lorenzo; e Alfredo Rojas, do Lanús) em vez de três ou dois, ocupando assim a vaga na reserva que poderia ser do franco-argentino. E a Albiceleste caiu traumaticamente ainda na primeira fase, o que afetou em muito os jogadores millonarios, que compunham a base do selecionado: muito vaiados no regresso, os tricampeões ficaram apenas em sexto no campeonato daquele ano, o primeiro dos 18 anos que a instituição teria de fila. De Bourgoing só teve uma assistência registrada, ainda que marcasse oito gols em 21 jogos. Seria devolvido ao Tigre.

Sem ele, o antigo clube havia caído para a segundona. Mas não ficaria muito tempo de volta ao Matador: ainda em 1959, foi à terra das raízes, contratado pelo Nice, encerrando sua trajetória no futebol argentino; havia sido recomendado por Gabriel Hanot, nome histórico do futebol francês – ex-jogador e ex-técnico da seleção, era jornalista do L’Équipe e esteve por trás da introdução da liga profissional no país; da Copa dos Campeões Europeus, atual Liga dos Campeões da UEFA; bem como da Bola de Ouro da revista France Football para o melhor jogador da Europa.

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Nice de 1962, com três franco-argentinos: Héctor Maison (terceiro em pé), Osvaldo Dandru (segundo agachado) e De Bourgoing (terceiro agachado)

Na França, De Bourgoing deixou a ponta e tornou-se mais goleador: foram 74 em 131 jogos pelo modesto clube da Côte d’Azur (que normalmente ficava no meio da tabela), onde ficaria até 1963. No ínterim, jogou duas vezes pela seleção francesa, em abril e maio de 1962, em derrotas amistosas para Polônia (3-1, no Parc des Princes) e Itália (2-1, em Florença). Marcou na estreia, aproveitando passe de Raymond Kopa. Os dois jogos contaram com outros argentinos: contra os poloneses, teve como colega de ataque Ángel Rambert, do Lyon, e pai de Sebastián Rambert, ídolo do Independiente nos anos 90 e de rápida passagem pela seleção argentina. Já contra os italianos, enfrentou os ex-colegas Omar Sívori e Humberto Maschio, titulares daquela Copa América de 1957.

A França já estava não-classificada à Copa do Mundo de 1962, usada pela FIFA como marco final de tolerância para troca de seleções – por isso os próprios Sívori e Maschio não voltariam a defender a Itália após o Mundial, assim como Di Stéfano e Puskás pararam de jogar como espanhóis. Com isso, De Bourgoing, inicialmente, acabaria restrito nos Bleus àqueles dois jogos. Em 1964, já com 30 anos, foi ao Bordeaux, da cidade onde se radicaria e faleceria há exatamente duas décadas, de câncer. Foi bivice seguido em suas duas primeiras temporadas, ambas vencidas pelo Nantes. Ficou cinco anos nos girondins, onde deixou 72 gols em 159 partidas. Não chegaria a ser campeão francês: o reinado do Nantes foi sucedido pela fase áurea do hoje decadente Saint-Étienne, ainda o maior vencedor da Ligue 1. Mas o argentino acabou contemplado com vaga na Copa de 1966, sob vista grossa da FIFA.

No mundial da Inglaterra, houve outro argentino entre os franceses: Néstor Combin, natural da santafesina Las Rosas e que fez toda a sua carreira adulta já na Europa, incluindo os rivais Juventus e Torino. Na Copa, De Bourgoing, que já jogava mais recuado (como meia, inclusive sendo o camisa 10) atuou pela terceira e última vez pela França. Agora, diante de velhos conhecidos: foi na segunda rodada, contra o Uruguai. Vazou de pênalti as redes de Ladislao Mazurkiewicz, mas os celestes viraram ainda no primeiro tempo e se fecharam na defesa. O revés praticamente eliminou os franceses, que precisariam vencer – e eliminar – a anfitriã Inglaterra para seguir adiante. Os britânicos ganharam por 2-0 e os gauleses terminaram melancolicamente em último.

De Bourgoing parou de jogar em 1970, após uma temporada no Racing Paris – clube que inspirara o nome do Racing argentino, de Avellaneda.

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Pela Argentina em 1957. E vazando o Uruguai (curiosamente, o país de sua mãe) nove anos depois, na Copa de 1966

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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