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Há meio século, a seleção brasileira foi no dia da independência treinada por um argentino

O argentino Filpo Núñez é o sexto em pé, de óculos escuros

Trata-se de Nelson Ernesto Filpo Núñez, El Bandoneón. A ocasião foi por festividades da inauguração do Mineirão, então ainda difundido como “Estádio Minas Gerais” e estreado na antevéspera contra outros argentinos, os do River. Filpo Núñez havia chegado há dez anos ao Brasil para treinar justamente um clube mineiro, o Cruzeiro. Naquele 7 de setembro de 1965, era técnico do Palmeiras, que vestiu-se de seleção brasileira para enfrentar o Uruguai. E pensar que apenas três dias antes a Academia apenas empatava com o XV de Piracicaba…

Há 50 anos, algumas manchetes soariam atuais. O TSE estava na mídia por causa dos mineiros, aliás. Em vez de Dilma e Aécio, se envolvia em julgar a candidatura de Paes de Almeida, impugnada exatamente na véspera daquela partida após recurso da UDN contra decisão do TRE local. O então governador Magalhães Pinto, que batiza oficialmente o Mineirão, comemorou: “a justiça tem agido em consonância com os ideais da Revolução”, segundo o Jornal do Brasil.

O TSE já havia impedido dias antes a candidatura do Marechal Henrique Teixeira Lott ao governo da Guanabara por não residir tempo suficiente lá, mas autorizou a de Etelvino Lins ao de Pernambuco embora este residisse justamente na ex-capital federal. Quem governava a Guanabara era Carlos Lacerda. Que naqueles dias escreveu ao Jornal do Brasil para criticar ferozmente Roberto Marinho: “não contente de caluniar no próprio jornal, usa agora um jornal sério para reproduzir sua nova imagem, a do valente”.

Voltando ao futebol, o JB assinalou outro fato que parece atual. Reportar que aquele jogo de meio século deveria ter menos renda que o da inauguração, no dia 5 (entre o River e a seleção mineira). Dentre os fatores, o fato de não envolver clubes mineiros, de não ser a efetiva inauguração e de nem todos terem renda para assistir a todos os quatro jogos festivos das inaugurações: dias depois, a seleção mineira voltaria a ser usada e contra os festejados Botafogo e Santos da época.

Mas também haveria outro problema: “muita gente ficou desiludida com as dificuldades que encontrou para voltar do estádio no domingo, quando filas extensas se formaram e os ônibus especiais demoraram, o que acabou causando confusão com a polícia intervindo até mesmo para baixar o cassetete”, segundo o jornal após o jogo do dia 5. Que foi descrito como pobre tecnicamente. O River voltava cansado de excursão à Europa, onde ficou o técnico Renato Cesarini. Desinteressado, foi treinado pelo assistente, José Curti. O único gol, de Buglê (grafado na época pelo seu sobrenome francês real, Bougleux), veio de pixotada do goleiro do River, Hugo Gatti.

Gatti se notabilizaria justo no arquirrival Boca anos mais tarde, vencendo as primeiras duas Libertadores auriazuis (na primeira, sendo herói nas cobranças de pênalti contra o Cruzeiro, por sinal) e como um irreverente goleiro que saía da grande área para atuar quase como líbero: recolhia as mãos para atrás das costas, em jogada batizada de la de Dios. Não à toa, Gatti foi apelidado de El Loco. Ainda mais sóbrio nos tempos de River, Gatti tentou cortar exatamente com os pés cruzamento de Tostão. Furou e Dirceu Lopes repassou a Buglê.

Quem foi ao jogo de meio século atrás, porém, não se arrependeu. Afinada, a Academia do Palmeiras maravilhou o público presente em uma das incontáveis “vinganças” contra o Uruguai pela perda da Copa de 1950, cerca de quinze anos antes: o técnico celeste era o mesmo do Maracanazo, Juan López Fontana, e o zagueiro Luis Varela era sobrinho do lendário Obdulio. Foi só ao entrar em campo que o público notou que o Uruguaio enfrentaria canarinhos e não alviverdes. Os jornais vinham tratando aquela partida como se fosse entre Uruguai e Palmeiras mesmo. Mesmo os letreiros do placar do estádio estava configurado para uma partida entre seleção uruguaia e o clube paulista.

A classe dos comandados de Filpo Núñez se mostrou antes mesmo do primeiro gol. Eram 20 minutos do primeiro tempo quando Djalma Santos deslumbrou ao recuperar bola na grande área. Em vez de dar um chutão, o lateral simplesmente aplicou um chapéu no atacante em Víctor Espárrago e saiu jogando com embaixadas com a cabeça, no mesmo palco em que Kerlon popularizaria jogada parecida. Cinco minutos depois, veio o primeiro gol. Julinho Botelho, que já vinha sendo aplaudido, cruzou para a área. Héctor Cincunegui, que anos depois brilharia no Atlético, cortou com a mão ao disputar com Tupãzinho. De pênalti, Rinaldo abriu o marcador.

Dez minutos depois, Julinho repetiu a jogada. Dessa vez, a disputa aérea envolveu Varela e Servílio. Nenhum ganhou e ambos caíram no chão, mas a bola sobrou para Tupãzinho, de bico, ampliar. Os uruguaios, que chegavam na véspera, estavam mortos em campo. Poderiam ter levado o terceiro apenas outros dois minutos depois, mas o árbitro não assinalou suposto pênalti de Omar Caetano em Ademir.

“O time do Palmeiras suou duas vezes mais com a camisa amarela da CBD, mas, ainda assim, todos os jogadores ficaram entusiasmados com a perfeição do campo, cuja grama, irrepreensível, permitiu-lhes uma exibição de técnica individual que o público mineiro não vai esquecer jamais”, escreveu Armando Nogueira no JB. “Se a seleção brasileira de futebol quiser treinar com a sensação de estar pisando em gramados da Inglaterra, não deixe de programar alguns jogos preparatórios de 66 no Estádio Minas Gerais, cujo terreno, muito fofo, lembrou ao médico Hilton Gosling os campos de Manchester, Sunderland, Londres etc”.

Em matéria da Placar em 1986, segurando imagem que abre a matéria. Orgulhava-se de ter treinado por um dia o Brasil

Nogueira também fez uma declaração lamentável aos olhos de hoje embora natural para os costumes da época: “está jogando cada vez melhor graças ao técnico Filpo Nunes [sic], que estaria conseguindo enfiar na zonza cabeça do crioulinho a advertência de que a ponta esquerda da seleção está disponível com um pouco de juízo”. Referia-se a Germano, irmão de Fio Maravilha. No segundo tempo, os palmeirenses também haviam se cansado e a qualidade da partida diminuiu. O terceiro gol foi obra exatamente de dois reservas: de Dário que entrou no lugar de Rinaldo, e do próprio Germano, no de Julinho.

Foi aos 32 minutos. Dário, em jogada individual, foi derrubado por Varela perto da grande área. Mas, mesmo caído, passou a bola a Germano, que vinha pela ponta e de canhota marcou um belo gol. A seleção uruguaia pouco assustou o gol de Valdir Joaquim de Moraes, mas sua participação foi considerada digna e correta pelo JB – com ressalvas a Jorge Manicera, descrito como bastante técnico com a bola mas muito violento sem ela, e ao próprio Varela, que, como se seguisse os passos do tio ilustre, procurava intimidar o árbitro.

Um último empréstimo das notas de época do JB é que o jornal acertou em cheio em uma “profecia”. Em nota naqueles dias, classificou que o “estádio novo é solução para futebol de Minas sobreviver”, lembrando os diversos ídolos locais que brilharam mais longe dali, mencionando desde os irmãos Fantoni (Ninão, Nininho e Niginho) na Lazio dos anos 30 até ex-jogadores do hoje modesto Villa Nova (Zezé Procópio e Perácio). Apenas um ano depois, o Cruzeiro seria campeão nacional sobre o Santos, emergindo continentalmente na década seguinte assim como o Atlético chegava às cabeças do Brasileirão.

E Filpo Núñez? Ironicamente, dali a um mês ele já não treinava o Palmeiras que foi seleção. Mas foi exatamente em função daquele resultado sonoro. Por causa dos 3-0, ele teria sido sondado para treinar o Uruguai e rescindiu o contrato com o Verdão. Mas a operação com a Celeste não se concretizou. Ao argentino restou treinar o Corinthians ainda naquele 1965. Chegou a liderar o Estadual de 1966 pelo arquirrival, mas a taça ficou exatamente com os ex-comandados. Teve novas passagens pela dupla nos anos 70.

Na terra natal, onde quem ficou ilustre foi um sobrinho dele, o ex-volante Eduardo Coudet (bem recordado nos anos 90 por Platense, Rosario Central, San Lorenzo e River), o clube mais expressivo pelo qual passou Filpo Núñez foi o Vélez, em 1974. Trilhou quase toda a carreira no Brasil, sempre carregando com orgulho o fato de ser o único estrangeiro a treinar a canarinho (algo não exatamente verdadeiro, pois a seleção chegou a ser dirigida nos anos 20 pelo uruguaio Ramón Platero e nos anos 40 pelo português Joreca). Mas não administrou bem o sucesso e faleceu em 1999 morando de favor nas dependências do projeto social que desempenhava no bairro paulistano de Heliópolis, onde um centro esportivo na Rua Freire Brayner leva seu nome.

Clique aqui para conferir outros argentinos que já passaram pelo Palmeiras. E aqui sobre os do Corinthians.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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