Há dez anos, o Independiente caía para o São Caetano na Libertadores

O Independiente já não era o mesmo e o São Caetano era um dos mais temidos times no Brasil, mas e daí? Pelo peso das camisas, foi uma das maiores eliminações na Libertadores. Caiu o maior vencedor da competição para um time então com 15 anos de vida, marcado pela falta de torcida (dois mil estavam no Anacleto Campanella para ver aquela partida) e hoje na terceirona.

O maior campeão da Libertadores levantou-a pela última vez há trinta anos, em 1984. Continuou respeitado no resto dos anos 80; em 1989, enquanto o São Caetano era fundado, o Rojo faturava mais um campeonato argentino, sem supor que seria o antepenúltimo da sua galeria. 1994 e 2002 foram os seguintes. O bi na Supercopa 1994-95 e a Sul-Americana 2010 foram taças internacionais que não reluziram tanto a quem se orgulha de ser o recordista heptacampeão de La Copa. Os mais místicos lembravam que o time vencera no continente em 1964, 1974, 1984 (ganhando a Libertadores nesses anos) e 1994 (com a Supercopa). Será que em 2004 seguiria esse ritmo?

Nos últimos anos, os representantes argentinos na Libertadores são definidos pelos melhores de cada torneio semestral do ano anterior. Mas, ali, levava-se em conta a temporada à la europeia finalizada. O Independiente vencera o Apertura 2002 com o ataque mais goleador da década: clique aqui. Mas aquela campanha foi um ponto fora de curva, pois o time não vinha bem antes (nem foi depois). Assim, teve que esperar 2004 para voltar à Libertadores, como um dos campeões da temporada 2002-03. No ano inteiro que se passou entre o título caseiro e esse retorno, houve desmanche.

Dos titulares do jogo do título de 2002, os únicos remanescentes no plantel foram o zagueiro Hernán Franco e o lateral-esquerdo Juan Eluchans, que era reserva na taça – substituiu nas três rodadas finais o fraturado Federico Domínguez. Serrizuela estava no Lanús, Castagno Suárez no Estudiantes e Díaz, de volta ao Colón. Os principais também debandaram: Rolfi Montenegro rumara ao River; o talismã Pusineri e o volantão Guiñazú (sim, o vascaíno ex-Inter), ao russo Saturn; o armador Insúa, ao Málaga; o artilheiro Silvera, ao mexicano Tigres; e o líder-mor Gabriel Milito ao Real Zaragoza. Recuperado da fratura, o lesionado Domínguez pudera estrear em 2003 pela seleção, mas em 2004 já estava no time mexicano do Santos Laguna.

Independiente campeão do Apertura da temporada 2002-03. Para a Libertadores 2004 só seguiam dois, em negrito – Milito, Serrizuela, Franco (autor de um dos gols no São Caetano), Castagno Suárez, Díaz e Guiñazú; Eluchans , Silvera, Montenegro, Insúa e Pusineri

A grande figura da versão 2004 estava no banco de reservas: o técnico José Omar Pastoriza, um dos maiores símbolos rojos. Venceu a Libertadores como jogador (em 1972) e como técnico (a última, em 1984), além de numerosos títulos caseiros. Outra figura mais célebre estava no gol, o quase quarentão Carlos Navarro Montoya, um contraponto a um certo atacante: Sergio Agüero estava no plantel, mas, ainda com QUINZE anos de idade, era reserva e não foi relacionado nem para o banco para aquele duelo; naquela Libertadores, Kun fora limitado aos últimos 21 minutos dos 4-2 contra o Cienciano e nos últimos 15 nos 2-0 sobre El Nacional.

O elenco até que deu para o gasto: se classificou por antecipação, em chave com um Nacional decadente mas longe da campanha de 1 ponto na Libertadores atual e dos 5-0 que levou ontem do Peñarol; o próprio Cienciano havia acabado de faturar a Sul-Americana de 2003 (único peruano campeão continental, e sobre um River ainda temido); e o El Nacional tinha a favor a altitude de Quito. O Rojo avançou, inclusive por antecipação. Mas não necessariamente se garantiu nas oitavas.

Isso porque a Libertadores 2004 implementou uma novidade não mais repetida: nove grupos iniciais em vez de oito. Para haver dezesseis sobreviventes para as oitavas, nem todos os segundos colocados poderiam seguir. Assim, os quatro piores segundo colocados se enfrentariam em uma repescagem de jogo único, na casa dos de campanha menos pior dentre eles: nisso, houve um Barcelona x Maracaibo em duelo único em Guayaquil… e São Caetano x Independiente no ABC paulista.

Todos esses quatro clubes tinham somado oito pontos. Só que o Barcelona tinha 3 gols de saldo. Brasileiros e argentinos tinham 2 gols de saldo, mas o São Caetano tinha mais gols pró. O Maracaibo, por sua vez, só tinha 1 gol de saldo. Incrível: um gol a mais de saldo e o Independiente teria decidido em casa… ou nem estaria passando por aquilo se, empatando em 2-2 com o Cienciano fora de casa na última rodada, já classificado, não levasse mais um gol a dez minutos do fim – e, com essa derrota por 3-2 para os peruanos, perdesse um precioso ponto.

São Caetano campeão estadual naquele 2004: Serginho, Gilberto, Anderson Lima, Gustavo, Dininho, Luiz, Thiago, Sílvio Luiz e Lúcio Flávio; Fabrício Carvalho, Euller, Marcinho, Triguinho, Somália, Fábio Santos, Warley, Marcelo Mattos e Mineiro

Já o São Caetano, se não tinha prestígio nas arquibancadas, tinha dos oponentes. Bivice nacional em 2000 e 2001 e vice na Libertadores 2002, enfim faturara uma taça: o Paulistão 2004, sob o técnico Muricy Ramalho. Sílvio Luiz, Dininho, Serginho, Somália e Anailson, do ciclo dos vices, recebiam companhia de Gilberto, Mineiro (ambos futuros membros da seleção na Copa do Mundo de 2006, ainda que já empregados por outros clubes), Anderson Lima e Euller. Havia ainda Marcinho, Triguinho, Marcelo Mattos, Fabrício Carvalho, o ex-seleção Warley…

Poucos elencos do futebol brasileiro superexportador e bem pouco importador da época eram tão completos – chegaria a liderar o Brasileirão no fim de junho. E sua ida à repescagem viera de forma emocionante na última rodada: 2-0 na altitude de La Paz sobre o The Strongest. O gol da classificação, de Warley, veio a cinco minutos do fim: ali conseguiu-se um gol a mais no saldo em relação ao… Peñarol, também com 8 pontos e que ficou em terceiro e desclassificado no grupo 1, sendo o primeiro gigante abatido pelo Azulão.

Há dez anos, aos 2 minutos e aos 5, Somália e Triguinho arriscaram bons chutes de longe, que o Rojo respondeu aos 6: em contra-ataque, o colombiano Jairo Castillo dominou bola recebida na esquerda e chutou cruzado sem chances a Sílvio Luiz. O início logo demonstrava a boa técnica daquele São Caetano, mas também um copeirismo que o Independiente ainda conservava. Logo aos 7, empate: Anderson Lima, à queima-roupa após jogada do habilidoso Marcinho, que aos 30 virou em pênalti que Fabrício Carvalho sofreu de Navarro Montoya em uma disputa de rebote.

O conjunto mais técnico dos brasileiros, ainda que com altos erros de passes (e uma furada de Somália sem goleiro no início do segundo tempo), prevaleceu até meados do segundo tempo. O lado copeiro voltou a ter vez. Pressão e pressão recompensada com gol chorado de Franco em confusão na área após falha de Sílvio Luiz em escanteio. Mas o excesso de garra culminaria na expulsão de Quinteros, que nem amarelo tinha, após falta violenta em Anailson, aos 83 minutos. O atacante Rivas, que entrara aos 62 e melhorara o rendimento rojo, foi logo sacado para a defesa ser reforçada.

Festejo rojo pelo gol “quase salvador” de Franco, e o contraste dos pênaltis

Os calejados hermanos souberam se fechar nos minutos que restavam. Nos pênaltis, já não foram tão oportunistas. Losada acertou o primeiro para eles, mas enquanto o São Caetano ia convertendo os seus, o Independiente errou no segundo: Sílvio Luiz pegou a cobrança de Morales. No quarto, Giménez (naturalizado há um ano pela seleção mexicana) acertou a trave. A eliminação diabla foi sacramentada em seguida, após Gilberto acertar o quarto. O vencedor, ironicamente, seria eliminado no mesmo Anacleto Campanella justo nos pênaltis para outro argentino, o super Boca da época, a quem deu trabalho nas quartas – não perdeu na Argentina. Quem sorriria no ABC seria o rival Santo André, surpreendente campeão em julho na Copa do Brasil.

Curiosamente, o jogo contra o Boca serviria para o São Caetano conhecer a Avellaneda que o regulamento permitira evitar contra o Rojo, pois Tévez e colegas usaram o campo do Racing. Por fim, em comum aos oponentes de dez anos atrás, além do rebaixamento no ano passado, tragédias já naquele 2004: o treinador Pastoriza, verdadeiro emblema rojo, faleceu subitamente em agosto ainda como técnico por lá – três semanas após a chegada do brasileiro Sérgio Manoel, de contratação bancada por El Pato e que, sem ser bancado pelo sucessor Daniel Bertoni, acabaria jogando pouquíssimo.

A torcida já havia chorado em fevereiro pelo assassinato de outro ídolo local, o colombiano Alveiro Usuriaga (falamos dele ontem: clique aqui). Em novembro, mais luto: o goleiro reserva Lucas Molina, com apenas 21 anos, faleceria por um infarto enquanto dormia. Qualquer clima que ainda restasse para a festa oficial do centenário que o clube celebraria em 1º de janeiro de 2005 acabou de vez na antevéspera, diante da comoção nacional pela catástrofe da Cromañón, similar à da Boate Kiss em Santa Maria; o Independiente, de fato, adiaria para março a comemoração dos 100 anos.

O trauma do São Caetano rodou mais o mundo: o zagueiro Serginho (entre Giménez e Manso na imagem que abre a matéria, foto onde também se vê Somália ao fundo) morreu em campo, em outubro, quando o time do ABC paulista visitava o São Paulo pelo Brasileirão. O Azulão, que ainda por cima perdeu nada menos que 24 pontos no STJD por ter sido considerado negligente com o problema cardíaco do seu zagueiro, jamais foi o mesmo e despediu-se da elite em 2006.

Independiente em álbum de figurinhas para a temporada pós-Libertadores, com o elenco já apresentando a curiosa mistura do brasileiro Sérgio Manoel (canto inferior esquerdo) a um adolescente Sergio Agüero (figurinha superior esquerda da página direita)
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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