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Há cem anos, o San Lorenzo chegava à elite

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O presidente Scaramusso, De Campo, J.Coll e A.Coll; J.Monti, F. Monti e Calcagno; Perazzo, Romero, Xarau, Silva e Gianella

Dos cinco grandes, grupelho que forma desde os anos 30 com Boca, River, Racing e Independiente, o San Lorenzo foi o último a se garantir na elite – todos foram fundados no século XX e tiveram que começar nas divisões inferiores, criadas ainda em 1899. O acesso, obtido no primeiro dia de 1915, consolidou um clube que vinha ameaçado de desmanche e que atualmente é um dos mais queridos em todo o país.

O San Lorenzo fora fundado em 1908 por integrantes de um time chamado Forzosos de Almagro. “O que pôs o nome de Forzosos foi Luisito Manara, um garoto muito bom, que ia a todos as partes conosco e que morreu em seguida, aos 16 anos, de tifo. Quando discutimos o nome não tínhamos nem a bola. Luisito dizia que o quadro tinha que se chamar Forzosos de México, porque éramos quase todos dessa rua”, explicou o fundador Luis Gianella em janeiro de 1973 ao escritor Osvaldo Soriano. Falamos aqui dos primórdios. Gianella seria o único dos fundadores a jogar no primeiro título na elite, em 1923.

Bem antes, em 1912, as atividades foram interrompidas: a prefeitura os desalojou do campo que usavam no bairro de Parque Chacabuco, vizinho aos de Almagro, onde moravam, e Boedo (é o bairro que separa Boedo de Flores, bairro atual do clube), onde se sedimentariam. Já contamos no mês passado o que se sucedeu – como o San Lorenzo ainda não saíra de jogos entre times paroquiais da Liga Don Bosco e não participava dos campeonatos da associação argentina, os jogadores debandaram para outros clubes. A maioria acabou indo ao Vélez, já federado, sem imaginarem que um século depois as duas entidades teriam uma rivalidade desenvolvida. Clique aqui para saber mais.

A ida ao Vélez, então na segunda divisão (que equivalia à terceira, na verdade – a divisão logo abaixo da elite se chamava de intermedia), fez bem àqueles dissidentes. O clube foi vice-campeão, mas garantiu o acesso à intermedia, pois o vencedor foi um time de B de clube já presente na divisão superior, o Tigre. O Vélez quase saltou outro ano depois, em 1913, à primeira divisão: foi novamente vice, mas dessa vez não para um time B, e sim para a equipe principal do Floresta, que assim ficou com a única vaga.

“Se nesse ano o Vélez Sarsfield tivesse subido à primeira, o San Lorenzo não existiria”, declarou Luis Gianella cerca de sessenta anos depois, no depoimento a Osvaldo Soriano. Em 1973, Gianella e outro atacante, Francisco Xarau, eram os últimos remanescentes vivos dos fundadores azulgranas. Ambos estavam no Vélez e, junto com os demais dissidentes, resolveram retomar o antigo clube. Assim, em 1914 o San Lorenzo enfim se afiliou na associação argentina, não sem contratempos.

A inscrição custou 120 pesos, todos do bolso de Federico Monti, líder daqueles garotos e quem havia feito questão que o bairro de Almagro integrasse o nome completo do clube, desde os tempos de Forzosos. Sem fundos, aqueles amadores adolescentes procuraram realizar um festival artístico, que foi um fracasso. Mas a persistência prevaleceu a isso e também em relação ao campo que conseguiram, na cidade de Martínez. Era necessário caminhada e trem desde a estação Olivos para ir e voltar dos jogos. No seu grupo, fez boas partidas, com direito a um 14-1 no obscuro Sage Rovers e um 6-0 no time B do River Plate. Na segunda (terceira) divisão, o San Lorenzo ficaria no vice-campeonato para o Unión Excursionistas. Então a sorte mudou pela primeira vez.

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Fair play: jogadores do San Lorenzo e do Honor y Patria posam juntos antes do jogo de cem anos atrás. Na fileira superior, ao centro, o padre Lorenzo Massa, homenageado no nome do clube do Papa

O clube Sportman resolveu se dissolver durante o certame, fazendo com que os pontos que haviam conseguido passassem aos adversários com quem havia jogado.Inicialmente, porém, os cuervos não se deram conta disso. Foi o atacante Mariano Perazzo quem notou que, recuperando o ponto que haviam perdido em um 0-0 com o Sportman, se igualariam ao líder. E ele tomou iniciativa de consultar o secretário da liga, que lhe recomendou a elaborar uma nota ao conselho da associação argentina.

Isso foi feito e o conselho emitiu resolução favorável, ocasionando um jogo-desempate com o Excursionistas, a quem já haviam goleado por 6-0. O primeiro jogo ficou no 1-1 e nova final foi necessária. Dessa vez deu San Lorenzo por 5-0. Os vencedores de cada grupo se cruzariam em semifinais e final em jogos únicos. Na semi, o San Lorenzo venceu por 1-0 o Sportivo Buenos Aires. E na final bateu o Germinal por 5-2. Xarau marcou dois no primeiro tempo, virando jogo perdido por 1-0. No segundo, Perazzo e Gianella ampliaram para 4-1. O Germinal diminuiu, mas Guillermo Romero assinalou o quinto.

Essa final foi em 27 de dezembro de 1914 e àquela altura a sorte continuava favorável ao San Lorenzo. Ao invés de garantir simplesmente um lugar na intermedia, aquele jogo manteria chances dos azulgranas se encaminharem diretamente à elite. Isso porque a Associação resolvera que o novo representante na elite sairia de um tira-teima entre o vencedor da segunda divisão e o vencedor da intermedia, o Honor y Patria (curiosamente, clube do bairro de Almagro onde o tal Federico Monti havia jogado enquanto seus colegas praticavam no Vélez).

Assim, em 1 de janeiro de 1915 houve uma nova final. O árbitro foi um entusiasta da disseminação do futebol na Argentina, o irlandês Paddy MacCarthy, o mesmo que apitara o primeiro Boca x River por campeonatos argentinos, em 1913 (falamos aqui). No estádio do Ferro Carril Oeste, o San Lorenzo ganhou de 3-0, com gols de Perazzo e dois gols contra do adversário em desvios de arremates daqueles dois últimos sobreviventes, Xarau e Gianella. Estes foram exatamente os artilheiros da campanha culminada há cem anos, com 8 e 9 gols respectivamente. 58 anos depois, foram localizados por Osvaldo Soriano, que assim relatou os rumos da dupla já sem o controle da obra cada vez mais grandiosa:

“Entre os torcedores do San Lorenzo de Almagro que festejavam alvoraçados a conquista dos títulos de 1972, caminhava um homem de 79 anos (…) No bolso traseiro da calça, guardava uma carteira de couro gasto, abrigo de 200 pesos, um carnê de sócio vitalício do San Lorenzo e uma medalha de ouro. Ninguém o reconheceu, ninguém o agradeceu nada. Na euforia do triunfo, poucos sabiam que dois daqueles garotos que integravam a equipe dos Forzosos, quando se fundou, em 1907, e quando ascendeu, em 1915, estão vivos e abandonados pelo filho presunçoso”. Os títulos de 1972 foram históricos – foi a primeira vez que um clube venceu os dois campeonatos argentinos do ano. Relatamos aqui.

“Xarau vive na pobreza de um quarto. Gianella, de 77 anos, está cego, surdo e só pode mover suas pernas. Quase todos os dias, como há 65 anos, os dois muchachos (assim se nomeiam eles) se juntam na casa de Gianella – que vive cuidado por uma filha e tem outro filho varão – para lembrar daquela época que já parece uma alucinação. (…) Tudo o que lhes deixou o San Lorenzo foi um carnê para entrar gratuitamente no clube e uma medalha de ouro. O velho centroavante opôs resistência a contar a história dos Forzosos: ‘já está escrita, os investigadores a fizeram; nós a vivemos, não podemos modifica-la”.

FICHA TÉCNICA – San Lorenzo: J.Coll; A.Coll e De Campo; J.Monti, F.Monti e Calcagno; Perazzo, Romero, Xarau, Silva e Gianella. Honor y Patria: Paganini; Pizzicaro e Jacobini; J.M. Braña, Mondotte e Cabigoia; A.Braña, Leal Zunino, J.Maidana, Cavattorta e Ayala Gols: Braña, contra (29/1º), Perazzo (26/2º) e Mandotte, contra (43/2º). Árbitro: Paddy MacCarthy.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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