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Há 70 anos: quando o Vélez foi campeão da segundona

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Elenco de 1943 do Vélez Sarsfield

Tão acostumado a taças de primeira linha nos últimos 20 anos, o Vélez celebrou anteontem os 70 de quando ganhou a 2ª divisão. Não sem razão: os caminhos tortuosos do descenso desembocariam em uma gestão histórica, conforme pregou Victorio Spinetto, símbolo do clube e técnico naquela conquista. E foi ali que o clube mudou-se ao bairro do qual viraria símbolo. Além disso, La V segue na elite desde então: só o Boca, até hoje o único que nunca caiu, está há mais tempo ininterrupto nela.

O outro que estava há mais tempo na elite era o Independiente, rebaixado pela primeira vez neste 2013. O Rojo foi visto justamente como “o culpado” pela queda velezana, em 1940. O time de Avellaneda era bicampeão e lutava contra o Boca por um inédito tri. Contra o Vélez, chegou a ficar quatro vezes atrás no placar e empatar todas até sofrer o 5º gol. Ficou no 5-4 e há quem diga que os derrotados prometeram vingança. Se foi realmente assim, ela ocorreu na última rodada. O Vélez pegaria o San Lorenzo. O Atlanta, o concorrente contra o descenso, pegaria o Independiente, já sem chances de taça.

Spinetto ainda jogava e foi um dos derrotados por 2-0 pelo Sanloré, na sua melancólica despedida como jogador velezano: o Atlanta no primeiro tempo já vencia por 6-0. O Independiente fez grande reação no segundo, ficando no 6-4. Mas, ao comprar no ano seguinte José Battagliero, o melhor jogador do Atlanta, o Rojo reforçou as suspeitas de que havia se entregado. “E, neste torneio [de 2013], o Vélez venceu Argentinos Jrs, San Martín e Quilmes. [Temos] grandeza”, ressaltou o jornalista (e historiador velezano) Esteban Bekerman, em alusão aos concorrentes do Independiente ao rebaixamento.

Em 1940, não foi “só” um rebaixamento. O Vélez ficou sem campo, endividado e com pouquíssimos sócios: seu aluguel no campo do bairro de Villa Luro, onde foi erguido o primeiro Fortín, apelido do estádio do clube, vencia naquele mesmo ano e não seria renovado. Tanto que desde 1935 já existia uma subcomissão para encontrar um novo terreno. Até que, em 1939, a oficina de terras do Ferro Carril Oeste, ironicamente a ferrovia dona do clube homônimo que é o tradicional rival do Vélez (clique aqui), ofereceu um de 35 mil m² no bairro de Liniers. Não era exatamente convidativo a um estádio.

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O presidente José Amalfitani, homem que não por acaso dá nome oficial ao Fortín de Liniers; e o técnico Victorio Spinetto, símbolo não só por ter as mesmas iniciais do clube

Eram pastos inundáveis e pântanos. E tudo desnivelado. Nada complicado ao dirigente que assumiu a presidência fortinera em 1941, em um time sem campo e com 3.300 sócios (penúltimo número entre os clubes da elite): José Amalfitani, que já havia presidido entre 1923-25. Don Pepe é considerado o maior dirigente esportivo do futebol argentino, descrito com uma tremenda honestidade e retidão moral e incansavelmente obcecado pelo clube, fora a experiência em administrar finanças.

Sabia como adequar o clube aonde iria se meter: era empresário da construção civil. Assumiu com o discurso “Senhores, eu não vim ao funeral do Vélez Sarsfield. Que me importa a segunda divisão ou a terceira, se o Vélez passeou sua divisa triunfal por todo um continente! Enquanto haja 10 sócios, o clube segue de pé”, em alusão ao estatuto que previa esse mínimo de 10 sócios para que o Vélez existisse e a uma excursão de sucesso que o clube fizera pelas três Américas no início dos anos 30. Visionário, teve uma presidência marcada por investir as rendas do time no aprimoramento de suas instalações do Vélez como um clube social e polidesportivo e não só como um time de futebol.

Tanto que convidava os que pediam-lhe “menos ladrilhos e mais campeonatos” a irem torcer pelo Boca. Mais do que torcedores, queria sócios. Daí que, em vez de comprar grandes estrelas e assim ter de pagar-lhes salários altos, optava por pratas-de-casa ou encostados de outros clubes, um modelo ainda praticado ali. Do time campeão, Heisecke e Osvaldo Bottini foram cedidos desinteressadamente pelo San Lorenzo; Cuenya, do Banfield; Curutchet, do Central Córdoba; Simón Fredotovitch, do San Pablo de Tucumán; Fernández, do Racing de Montevidéu. Os destaques Rugilo e Ferraro, da base.

O time não conseguiu o acesso logo: em 1941, ficou a 18 pontos (lembrando que a vitória valia 2 na época) do campeão Chacarita, que tinha ali o zagueiro Blas Angrisano, outro reforço bom e barato na campanha velezana de 1943. Em 1942, a 12 do campeão Rosario Central. Mas já em 1943, em abril, a nova casa estava inaugurada, em um 2-2 amistoso com o River. Um estádio dos mais belos e modernos do continente e não por acaso sede da Copa de 1978 mesmo com Buenos Aires já fornecendo também o Monumental. Seriam 500 pesos mensais de aluguel com compromisso de compra em dez anos.

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O Fortín em construção em Liniers. Uma googlada por “Estadio José Amalfitani” revela como está hoje

Amalfitani conseguiu créditos (que quitaria) e, já em 1945, a compra junto ao Ferro foi feita. Antes, em 1942, o clube voltou a contratar Spinetto, agora como técnico. Maior zagueiro-artilheiro da Argentina na época (49 gols), seu estilo era baseado no jogo combativo, aplicado e de força. Não era o estilo dominante de então, mas com o tempo virou sinônimo do próprio futebol argentino: o técnico mais relacionado a essa forma, Carlos Bilardo, campeão mundial em 1986, era discípulo de Osvaldo Zubeldía, seu técnico no Estudiantes nos anos 60. Já Zubeldía era discípulo de Spinetto, seu técnico no Vélez no fim dos anos 40, pois Don Victorio seguiria comandando ininterruptamente até 1956.

O incrível é que Spinetto é um dos técnicos mais bem recordados do rival Ferro Carril Oeste, que sob ele chegou às fases decisivas em 1974. Mas no Vélez é um emblema, abaixo somente de Amalfitani e, talvez, de Carlos Bianchi. Em uma época em que treinadores eram mais comedidos no gramado, gritava e gesticulava energicamente em instruções e protestos, não raramente sendo expulso.

Dos outros personagens do acesso, se destacaram mais o goleiro Miguel Rugilo, o meia Armando Ovide e o centroavante Juan José Ferraro. Rugilo seria o “Leão de Wembley”, após um Argentina-Inglaterra em 1951 no então principal templo do futebol mundial. Os ingleses só venceriam nos últimos 9 minutos, após tentarem 52 arremates no goleiro argentino, que nos anos 50 jogou ainda no Palmeiras. “Rugilo era o melhor goleiro que havia então. Quando saía das três traves, a bola era dele”, declarou anteontem seu reserva Pedro Perrote, único sobrevivente do título da segundona.

Já o temperamental Ovide (por isso, um dos favoritos de Spinetto) e Ferraro seguiram um bom tempo no Vélez: dez anos depois, em 1953, ainda com Spinetto, seriam vice na elite, maior resultado do clube até então. Ferraro, na época, era o maior artilheiro fortinero (157 em 306 jogos), só sendo superado por Carlos Bianchi. Um ano após o retorno à elite, venceu a Copa América de 1945, chegando a sair do banco nos últimos minutos contra a Colômbia e marcar 2 vezes. Na seleção, El Duque detém o recorde de maior hiato entre um jogo e outro: depois de 1945, voltou a ser chamado em 1956.

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Rugilo e Ferraro

Ferraro foi ainda o autor do primeiro gol do Fortín de Liniers e também o artilheiro da campanha de 70 anos atrás, com 26 gols. “Era espetacular, um craque. O melhor que tínhamos neste acesso. Era tudo na linha ofensiva”, segundo o mesmo depoimento de Perrote. Do restante do elenco, outro atacante, Marco Aurellio (com dois L mesmo), faria o gol 1000 do Barcelona no campeonato espanhol, em 1950. Já o zagueiro-central Alfredo Costa seria um dos primeiros argentinos na seleção mexicana.

Aquela segundona contou com vários clubes conhecidos da elite atual e passadas: Tigre, All Boys, Unión, Quilmes, Argentinos Jrs e os também tradicionais Nueva Chicago, Almagro, Defensores de Belgrano, Excursionistas e Estudiantes de Buenos Aires, dentre outros. No início, eram Quilmes e Argentinos os líderes. Foi só na 11ª rodada que o Vélez os alcançou, mas já na 13ª, ao vencer o próprio Argentinos, se isolou e da liderança não saiu mais: foi o time que mais venceu (24), menos perdeu (3), de melhor defesa (34 gols em 34 jogos) e segundo melhor ataque (81).

Fora algumas goleadas (4-1 no Tigre, 4-0 no Central Córdoba, 6-3 no Talleres de Remedios de Escalada, 4-1 no Argentinos Jrs e 5-2 no Estudiantes de Buenos Aires), o Vélez emendou 9 vitórias seguidas, maior série de triunfos nos cem primeiros anos do clube. Foi também quem mais arrecadou na segundona, em torno de 62 mil pesos, o dobro do segundo nisso, o Quilmes. Por isso, o Dock Sud (de quem falamos anteontem: clique aqui), ao qual visitaria para o jogo do título, resolveu mandá-lo no estádio do vizinho velezano Ferro Carril Oeste: 5-2 e acesso garantido a três rodadas do fim.

A escalação fortinera do técnico Spinetto naquele 20 de novembro de 1943 foi Miguel Rugilo, Víctor Curutchet, Alfredo Costa; Héctor Cuenya, Horacio Herrero, Armando Ovide; Eduardo Heisecke, Marco Aurellio, Juan José Ferraro, Alfredo Bermúdez e Ángel Fernández. José Amalfitani seria presidente até morrer, em 14 de maio de 1969, data que a AFA instituiu como “dia do dirigente”. Uma das últimas homenagens em vida veio-lhe justamente seis meses antes de partir, quando o time foi enfim campeão pela primeira vez da elite, em 1968. Saga que contaremos ainda neste fim de ano.

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Crônica da partida que garantiu o acesso. Clique para vê-la ampliada

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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