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Há 65 anos, River x Vasco em final sul-americana

Juan Carlos Muñoz, que entraria no lugar de Reyes, em lance com Jorge, observados de perto por Moreno

O River x Vasco mais lembrado é o empate em 1-1 no Monumental de Núñez pelas semifinais da Libertadores de 1998, alcançado perto do fim pelo recordado gol de Juninho Pernambucano, que virou até cântico cruzmaltino. A competição, a ser vencida pelos cariocas, teve raízes em um torneio decidido pelos dois meio século antes, em partida que completa 65 anos hoje, também favorável à Colina.

O torneio em questão colocou em disputa clubes também de Uruguai, Chile, Bolívia, Peru e Equador. Exceto o Emelec, representante deste último e que veio sob convite, os demais chegaram por critério técnico a partir das edições de 1947 dos torneios mais prestigiados de seus países.

Foram reunidos o campeão carioca (Vasco; o representante veio do Rio de Janeiro porque a seleção fluminense vencera o campeonato de seleções estaduais de 1946), o argentino (River; ver aqui), o uruguaio (Nacional), o chileno (Colo Colo), o de La Paz (Litoral) e o vice peruano (Municipal; o campeão, Atlético Chalaco, se recusara). A Colômbia estava de fora da jurisdição da FIFA por conta de sua liga pirata (que atrairia muitos do River) e a Venezuela só fincaria maior presença nas competições da confederação sul-americana a partir de meados dos anos 60, restando a ausência paraguaia.

Ainda assim, a Conmebol reconheceria em 1996 o valor do Sul-Americano de 1948 de Clubes Campeões, equiparando-o à Libertadores – cuja primeira edição, em 1960, também só contou com sete participantes; a diferença foi a inclusão de um paraguaio e um colombiano nos lugares de um peruano e um equatoriano. Em 1997, o Vasco, que ainda não havia vencido a Libertadores, foi admitido na Supercopa Libertadores, em sua última edição. Era um torneio a reunir apenas campeões da Libertadores e, curiosamente, seria ali vencido pelo River, no último troféu internacional dele (ver aqui).

Apesar das limitações em 1948, com a ausência de campeonatos verdadeiramente nacionais para alguns países representados, a seleção foi mais criteriosa até do que a da primeira edição da Liga dos Campeões, na temporada europeia de 1955-56, cuja boa parte dos participantes foram definidos sem levar em conta sua performance na temporada anterior. Tal característica do Sul-Americano de 65 anos atrás, ao reunir ainda bom número de representantes do continente, também o diferenciou de diversos torneios ocasionais da época, hoje tidos como não-oficiais ou mesmo amistosos.

Yácono, Vaghi, Grisetti, Luis Ferreyra, Ramos, o técnico Minella e Rossi; Reyes, Moreno, Di Stéfano, Labruna e Loustau. Os campeões de 1947. Rodríguez seria usado no lugar de Ferreyra

O River do técnico José María Minella, ex-ídolo como jogador, fora a base da Argentina que, em dezembro do ano anterior, sagrara-se tricampeã seguida da Copa América, ainda um recorde exclusivo da Albiceleste (do qual já falamos, aqui). Norberto Yácono, Néstor Rossi, Félix Labruna, José Manuel Moreno e a revelação Alfredo Di Stéfano, quase meio time titular dos millonarios, estiveram na seleção recém-campeã. O ponta Juan Carlos Muñoz participara do título da Copa América de 1945.

Outros três, Eduardo Rodríguez, José Ramos e Ángel Labruna, haviam sido campeões na Copa América de 1946. Loustau estivera nas três do ciclo. Apenas o goleiro Héctor Grisetti, o zagueiro Ricardo Vaghi e o ponta Hugo Reyes não jogaram pela Argentina. Por conta disso, o time de Núñez era considerado favoritíssimo. A seguir, o representante do respeitadíssimo futebol uruguaio, o Nacional.

Foi justamente no embate platino que a banda roja começou a ver o título naufragar para a nau vascaína. O adversário tinha jogadores de respeito – Schubert Gambetta e Eusebio Tejera seriam titulares no Maracanazo, em 1950; o jovem José Santamaría defenderia o Uruguai na Copa de 1954 e a Espanha na de 1962, sendo titular no Real Madrid de Di Stéfano; Walter Gómez seria um dos maiores ídolos do próprio River, e o argentino Atilio García, que jogava pelo Uruguai, é o maior artilheiro da história do clube, do clássico com o Peñarol e do futebol uruguaio.

O Nacional venceu por 3-0, no único revés riverplatense. Os argentinos já haviam vencido o Emelec por 4-0 e o Municipal por 2-0 e, após a derrota, demonstraram boa recuperação: 5-1 no Litoral, maior goleada do torneio. O Vasco, por sua vez a base da seleção brasileira, seguia invicto, mas o empate em 1-1 com o Colo Colo lhe obrigara a não perder para o River. Seria o último compromisso dos brasileiros, então com 9 pontos, na competição. La Máquina contra “O Expresso da Vitória”.

O River tinha então 6 pontos e, como ainda enfrentaria o mesmo Colo Colo, ainda tinha chances, caso vencesse os dois compromissos – na época, a vitória valia 2 pontos e não 3. Por outro lado, o empate daria o título aos cariocas. A escalação do técnico Flávio Costa estava consciente disso: BarbosaAugusto e Wilson (no lugar do argentino Ramón Rafagnello, ex-River e conhecido no Brasil como Rafagnelli ou Rafanelli); ElyDanilo e Jorge; Djalma, ManecaFriaça, Ismael e Chico atuaram para não perder para Grisetti; Vaghi e Rodríguez; Yácono, Rossi e Ramos; Reyes, Moreno, Di Stéfano, Labruna e Loustau. Em negrito, vice-campeões mundiais de 1950.

Reyes, Ely e a bola sobrando; Augusto próximo ao árbitro, na confusão que expulsaria Chico e Méndez

Segundo as crônicas argentinas, o Vasco teria apostado no contra-ataque: “Os atacantes cariocas se limitavam a esperar o rechaço largo de seus defensores e a ganhar terreno velozmente sobre o arco argentino, aproveitando o adiantamento dos meias millonarios“, escreveu-se. A rispidez também teria sido usada: “empurrar o atacante por trás, puxá-lo pela camisa, atingir-lhe os tornozelos ou carregar violentamente (…); em uma palavra, apelar a recursos extremos foi para os futebolistas do Vasco da Gama tática pré-concebida”.

Ramos lesionou-se logo aos 7 minutos e teve que sair, dando lugar a Héctor Ferrari. Di Stéfano só tocaria na bola aos 26, anulado por Wilson. Segundo os argentinos, Chico era o “mais belicoso” e “durante todo a partida abusou do jogo sujo”. Era conhecido pelos adversários: fora expulso contra a Argentina na Copa América 1946. “Minha avó é de lá, mas eu detestava os argentinos”, admitiria o natural de Uruguaiana-RS (tinha o mesmo sobrenome de um ex-presidente argentino, Aramburu). Por conta dele, no segundo tempo, Yácono também saiu, substituído por Osvaldo Méndez.

O substituto também não duraria com o ponta: aos 29 minutos, “ao ser iludido habilmente por Méndez, lhe aplicou um pontapé por trás, que nosso defensor, já cansado, repeliu mediante seus punhos”, assegurou a Revista River. O árbitro, energicamente, mandou Chico ao chuveiro, expulsando Méndez também. O River ainda teve um pênalti a seu favor, que Labruna cobrou para a defesa de Barbosa.

Ao fim, Labruna e Di Stéfano chutaram para cima em lances em que Barbosa, bastante elogiado pela própria Revista River (“para significar que a vitória bem poderia ser do River Plate, Barbosa se converteu por momentos na figura de sua equipe, a ponto tal que quando se aclamava o gol nas tribunas, saía milagrosamente com a ball nas mãos. Se perderam assim alguns gols feitos”), já estaria vencido.

Sem gols na partida, o Vasco assegurou o título, o primeiro do futebol brasileiro (incluindo a seleção) no exterior: “a maior (façanha) jamais realizada por clube brasileiro”, assinalou na época Mário Filho. A participação argentina, do seu lado, se encerraria com um 1-0 no anfitrião Colo Colo.

Barbosa defendendo chute colocado no ângulo por Labruna, de quem pegaria pênalti: destaque reconhecido pela própria revista do River Plate

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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