Oficialmente, o Independiente começou a ser Rey de Copas assim: o artilheiro da Libertadores 1964, Mario Rodríguez, após o colega Pedro Prospitti passar-lhe a bola, correu em uma diagonal e tocou na redonda com o calcanhar. Assim a passou sobre si quase que como um “autochapéu” e, com um toque sutil, foi a vez de encobrir outrem, o goleiro do Nacional. Foi o único gol das finais e o Rojo foi campeão do torneio pela primeira vez. O menos lembrado é como ele pôde participar daquele torneio. Foi como campeão argentino de 1963, título que ontem completou meio século.
Rodríguez, aliás, chegou ao Independiente exatamente naquele campeonato, junto com seu compadre, o ponta-direita canhoto (!) Raúl Savoy. Eram ídolos do modesto Chacarita, campeões da 2ª divisão em 1959 e participantes ativos da campanha que levou o Tricolor a um 5º lugar em 1962, seu melhor resultado na elite até então. Foram à Copa América 1963. Rodríguez foi artilheiro dos argentinos e recebido como herói após atuar em toda a partida contra a anfitriã (e campeã, pela única vez) Bolívia, onde marcou dois na derrota por 2-3, mesmo após quebrar a mandíbula.
O San Lorenzo quis contratar ambos: havia vendido simplesmente o maior artilheiro de sua história, José Sanfilippo, ao Boca, que então entraria com o dinheiro para a compra de Savoy e Rodríguez para os azulgranas. Mas o Independiente atravessou a negociação. Ofertou ao Chaca o então recorde de 25 milhões de pesos mais Néstor Rambert (tio de um dos grandes ídolos rojos, Sebastián Rambert) e Edgardo D’Ascenzo. E Rodríguez e Savoy seriam logo protagonistas: Mariucho foi o artilheiro do campeão, com 16 gols. O companheiro marcou 4 no jogo do título, contra o próprio San Lorenzo.
O torneio já seria uma taça especial por catapultar a metade vermelha de Avallaneda a seu maior orgulho. Mas aquele campeonato, o de menor número de participantes até hoje (só 14 clubes), teve uma das retas finais mais folclóricas do futebol argentino. A princípio, a crença era que a taça iria ao River, que não era campeão desde 1957 e que mal sabia que a seguinte só lhe viria 18 anos depois, em 1975. Esse jejum não significa que passou longe das conquistas no período. Muito pelo contrário. Não por acaso, foi um período repleto de reveses dos mais duros em sua história. E cheio de festejos para o rival.
Para temperar ainda mais a rivalidade, o Boca foi o carrasco mais comum daqueles tempos. No ano anterior, os dois, igualados na pontuação, praticamente decidiram o título em um Superclásico na penúltima rodada, com brasileiros protagonistas: Paulo Valentim pelos xeneizes (é o maior artilheiro deles no dérbi), Delém pelos millonarios. Cada um bateu um pênalti. Valentim acertou. Delém, ao fim da partida, não, em uma polêmica defesa do goleiro Antonio Roma, que descaradamente se adiantou demais para impedir o gol. Ficou no 1-0. Contamos os 50 anos dessa estória: clique aqui.
Em 1965, novamente o dérbi, agora na antepenúltima rodada, foi decisivo e favorável ao Boca, campeão por 1 ponto e que venceu com dois gols de um antigo ídolo do River, Norberto Menéndez. Em 1966, o Millo perdeu uma final de Libertadores quase ganha contra o Peñarol: clique aqui. Em 1969, dois vices: na final do Metropolitano, para o próprio Chacarita. No nacional, outra vez o Boca levou a melhor para ser campeão, e em pleno Monumental. Já em 1963, o carrasco foi outra vez o grande rival, desta vez sem ambições no campeonato: se focara na Libertadores, mas não pudera com Pelé. O River ganhou os seis primeiros jogos. Era líder e assim encerrou o primeiro turno, a dois pontos de um Independiente de curioso tempero brasileiro prospectado pelo então técnico Armando Renganeschi.
Ex-jogador do Independiente nos anos 30, Renga se tornara um argentino rodado no país vizinho ainda como jogador (sendo campeão por Fluminense e São Paulo nos anos 40) e lá começara como treinador: obteve títulos ou vices na segunda divisão paulista com XV de Jaú, Linense e Ferroviária nos anos 50 e, com o Palmeiras, fora vice da Libertadores 1961. O Rojo jogou as três primeiras rodadas com Paulo Berg (vindo do futebol gaúcho, após passagens por Internacional e Caxias, que então se chamava Flamengo) escalado entre os meias. Na quarta rodada, em clássico de Avellaneda, estreou o ponta Benny Guagliardi, vindo do auge da Ferroviária de Araraquara e que soube ter expressiva sequência inicial de jogos; atuaria quinze vezes, registrando cinco gols (quarto na artilharia do elenco, abaixo dos 16 gols de Rodríguez, dos nove de Savoy e dos seis de Tomás Rolán), uma assistência e um pênalti cavado.
Renganeschi também trouxera outro ponta, Agostinho Zeola, a quem treinava no Palmeiras de 1961 e na Prudentina no fim de 1962, mas velho conhecido pelo menos desde a segunda divisão paulista de 1953, quando Zeola anotara os gols que garantiram o título do Noroeste em detrimento da Ferroviária comandada pelo argentino. Seu nome Agostinho até começaria a ser referido como Agustín pela imprensa argentina, mas Zeola não iria além da 9ª e 10ª rodadas (lado a lado de Benny), registrando uma assistência na estreia e só. Já o treinador não duraria além da 17ª, quando os Diablos sofreram um duro baque: goleados em casa por 4-0 em novo clássico de Avellaneda. A reação da diretoria foi contratar como novo treinador Manuel Giúdice (jogador destacado de Huracán e River entre os anos 30 e 40), em seu primeiro grande desafio como técnico após trabalhos no Atlanta e Nueva Chicago.
O Independiente soube superar a humilhação no clássico. Faltavam nove rodadas e não perdeu mais: sete vitórias e dois empates. Já o River entrou em declínio e só venceu quatro vezes no mesmo período. Os dois concorrentes tiveram um embate decisivo na antepenúltima rodada, em Avellaneda. O Millo seguia líder com dois pontos (valor da vitória na época) de vantagem. Mas perdeu por 2-1, com dois gols de Mario Rodríguez igualando os postulantes na dianteira. Foi justamente o último jogo do brasileiro Benny na campanha. Ali, o superartilheiro millonario Luis Artime (anos depois ídolo também no próprio Independiente) saiu lesionado por conta da dura marcação do defensor rojo Rubén Navarro, apelidado sugestivamente de El Hacha Brava.
Artime, que fez 70 gols em 80 jogos pelo River e 23 em 24 pela Argentina, era o artilheiro do certame (com 25 gols até ali), mas ficaria sem condilões físicas de encarar a partida seguinte, na penúltima rodada. Justo o Superclásico. O River até jogou em casa. Mas o Boca, além de atrapalhar o grande rival, tinha uma motivação extra, segundo Alberto Jacinto Armando, seu presidente entre 1960-80 e quem dá nome oficial à Bombonera: “devolvemos um pagamento de 30 anos, quando o River nos ganhou de 3-1 e deu o título de 1933 ao San Lorenzo. E nós devolvemos na sua própria casa”. Era uma alusão ao fato de que, três décadas antes, o River estava na situação inversa de não disputar mais o título, mas se esforçou para que o líder Boca perdesse a taça na última rodada ao ser ultrapassado pelo Sanloré após derrota no Superclásico.
Mencionamos isso semana passada, ao falar dos 80 anos daquela conquista, a primeira profissional do San Lorenzo: clique aqui. O troco realmente viria, bastando um solitário gol de Sanfilippo. Ele já havia marcado os três gols boquenses nas finais contra o Santos na Libertadores e reforçou a boa impressão em sua curta passagem pelo Boca – saiu já no ano seguinte. Paralelamente, o Independiente venceu fora de casa o Argentinos Jrs por 3-0 e se isolou na ponta a uma rodada do fim. O River seguia tendo chances: precisava vencer e torcer pela derrota da concorrência. A vitória, sobre o mesmo Argentinos, veio, por 3-2. E inicialmente, parecia que o outro resultado favorável viria: em plena Avellaneda, Héctor Veira abriu o placar para o San Lorenzo aos 20 minutos. Mas depois começaram as polêmicas.
Veira teve que deixar a partida cinco minutos depois, após dividida forte com Hacha Brava Navarro – não eram permitidas substituições na época. Os visitantes ficaram então com um a menos. Depois, o árbitro Manuel Velarde (que havia apitado o Superclásico) não marcou um pênalti aos visitantes e, no contra-ataque da sequência do lance, Savoy empatou. Ele mesmo virou o jogo, aos 44 do primeiro tempo, de pênalti. E, novamente, o San Lorenzo perdeu outro jogador: o lateral José Albrecht, expulso por reclamação. Aos 3 do segundo tempo, o Ciclón ficou com três homens a menos: foi a vez de Roberto Telch lesionar-se e ter que sair.
Veira, em entrevista recente, absolveu os campeões de 1963 de serem mal-intencionados nas entradas ríspidas: “[Navarro] não me disse nada, tampouco entrou para me partir. Me marcou forte e me agarrou na perna de apoio, mal parado e por isso machuquei feio o joelho. Esse Independiente era um time ex-tra-or-di-nário, muito forte”. Mas no calor do momento, seus colegas se irritaram com a passividade do árbitro. E, após Raúl Bernao decretar os 3-1 aos 19 minutos do segundo tempo, os azulgranas resolveram protestar deixando de jogar: nos últimos 20 minutos, foram seis gols ao Independiente.
O mais emblemático dos gols foi um contra, o último nos 9-1: o sanlorencista Óscar Rossi chutou deliberadamente contra o próprio gol que seu colega Agustín Irusta deveria proteger, mas que nada fez. Contamos mais aqui (clique), quando as duas equipes se encontraram neste 2013 no jogo em que a vitória do San Lorenzo sacramentou o inédito rebaixamento rojo. Abaixo, fichas das duas partidas:
River: Amadeo Carrizo; José Ramos Delgado, Marcelo Etchegaray; Alberto Sainz, Vladislao Cap e José Varacka; Ernesto Juárez, Pedro Ornad, Ermindo Onega, Delém e Roberto Fernando. T: José María Minella. Boca: Antonio Roma, Rubén Magdalena, Orlando; Carmelo Simeone, Antonio Rattín, Alcides Silveyra; Paulo Valentim, Ángel Rojas, Norberto Menéndez, José Sanfilippo e Alberto González. T: Aristóbulo Deambrossi. Árbitro: Manuel Velarde. Gol: Sanfilippo (14/1º)
Independiente: Osvaldo Toriani; Rubén Navarro, Tomás Rolán; Roberto Ferreiro, José Paflik, Jorge Maldonado; Raúl Bernao, Osvaldo Mura, Jorge Vázquez, Mario Rodríguez e Raúl Savoy. T: Manuel Giúdice. San Lorenzo: Agustín Irusta; Alberto Mariotti, Silvio Ruiz; Raúl Páez, Roberto Telch, José Albrecht; Héctor Facundo, Óscar Rossi, Eladio Zárate, Héctor Veira e Victorio Casa. T: José Barreiro. Árbitro: Manuel Velarde. Gols: Veira (20/1º), Savoy (30 e 44/1º), Bernao 19/2º, Savoy (29/2º), Vázquez (30/2º), Rodríguez (35/2º) Bernao (38/2º), Savoy (41/2º) e Rossi (contra 43/2º).
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