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Há 45 anos, o Estudiantes celebrava o tri seguido da Libertadores

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Carlos Pachamé, Oscar Malbernat, Néstor Errea, Rubén Pagnanini, Néstor Togneri, Oscar Pezzano (goleiro reserva) e Jorge Solari; Marcos Conigliaro, Carlos Bilardo, Eduardo Flores, Juan Ramón Verón e Hugo Spadaro perfilados no Centenário há 45 anos

Não havia dominação igual no continente. Em três anos, um clube de porte só médio na Argentina superava Santos e Independiente para igualar, em confronto direto, outro gigante, o Peñarol, como maior vencedor da Libertadores. Seria assim por mais quatro anos, quando o Independiente tornou-se o recordista ao acumular seu quarto título no que seria um recordista tetra seguido. Só ele e os alvirrubros de La Plata “coparam” a América vencendo nas finais a dupla uruguaia Nacional e Peñarol, adversário abatido pelos pincharratas naquele 27 de maio de 1970, noite que ontem fez 45 anos. Por um bom tempo, tiveram mais Libertadores que outra enorme dupla, Boca (que os passou só em 2001) e River.

Boca e River, respectivamente campeão e vice do Torneio Nacional de 1969, foram justamente os outros representantes argentinos – o outro torneio, o Metropolitano, embora mais valorizado pelos puristas, só daria vaga a partir de 1973 e por isso o campeão do Metro de 1969, o Chacarita (em seu único título na elite), não participou – foi como vice do Nacional de 1967 e não como campeão do Metro de 1967 que o Estudiantes se classificara à primeira Libertadores da série, em 1968.

Assim como na campanha de 1969, a de 1970 foi rápida para os campeões: durou três semanas, embora o torneio de desenrolasse desde fevereiro. Boca e River passaram sem turbulências pelos bolivianos Bolívar e Universitario na primeira fase de grupos. Na segunda, se juntaram a outro Universitario, o do Peru, que nem em eucasa pontuou contra os gigantes. E o River, que perdera os dois Superclásicos da chave inicial, deu o troco ao, na fase seguinte, bater o rival no Monumental e arrancar empate na Bombonera. Dessa vez, só um avançava e o Millo chegou às semifinais.

O River tinha um ótimo lado ofensivo, com o segundo maior artilheiro de sua história, Oscar Más; o recordista de gols em uma só Libertadores, Daniel Onega, autor de 17 na edição de 1966; e o autor do que teria sido o primeiro gol do Brasileirão, aos que se opõem à unificação com os torneios pré-1971, Néstor Scotta, ex-gremista (outro futuro tricolor, Carlos Chamaco Rodríguez, estava lá também, inclusive marcando o gol da vitória sobre o Boca).

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Semi contra o River: passeio, mas desfalcou ainda mais os pincharratas

Em jejum havia incríveis treze anos, que seriam dezoito, o River lutava em duas frentes, pois paralelamente concorria pela taça do Metropolitano – seria vice por um único ponto. Já o Estudiantes estava totalmente desapegado do torneio caseiro: só não disputou por critério de desempate o pentagonal contra o rebaixamento, repescagem entre os cinco últimos do Metro. Isso se refletiu nas semifinais: Eduardo Bocha Flores deu aos alvirrubros a vitória em pleno Monumental ao marcar o único gol do jogo. Três dias depois, os vitoriosos perderam de 3-1 no Metro para o Independiente (que seria o campeão) enquanto o River usou titulares com o Vélez – para piorar, só empatou.

Em La Plata, foi passeio. Más marcou para a visita, mas Jorge Solari (tio de Santiago Solari, ex-Real Madrid nos anos 2000), Juan Echecopar e Juan Ramón Verón, o igualmente craque pai de Juan Sebastián, anotaram para os mandantes. Do outro lado, o Peñarol, treinado pelo brasileiro Osvaldo Brandão, cansou-se bem mais: além de superar as duas fases de grupos, precisou jogar três vezes as semifinais com a Universidad de Chile. Após perderem em Santiago por 1-0, os aurinegros bateram La U no Centenário por 2-0 mas na época o regulamento não considerava automaticamente o saldo de gols, no máximo permitindo vantagem do empate a quem tinha o melhor, em campo neutro. 48 horas depois dos 2-0, eles empataram em 2-2 em Avellaneda.

O Peñarol também se ressentiu da falta de titulares, que estavam se preparando com a seleção para a Copa de 1970: não teriam na reta final o defensor Roberto Matosas e Omar Caetano, os meias Roberto Sandoval e Pedro Rocha, os atacantes Julio Cortés e Julio Losada nem mesmo seus dois goleiros, Ladislao Mazurkiewicz e Walter Corbo. Com eles, havia batido o próprio Estudiantes pela Supercopa no réveillon, torneio extinto que reunia os campeões mundiais (não confundir com a competição homônima também extinta que de 1988 a 1997 juntava os vencedores da Libertadores).

Mas a tradicionalíssima equipe uruguaia mantinha outras estrelas: o velho xerife Néstor Gonçalves (que se aposentaria naquele ano), o atacante argentino Ermindo Onega (irmão de Daniel) e o cacique chileno Elías Figueroa. O Estudiantes já não poderia contar com o goleiro Alberto Poletti e com o lateral-direito Eduardo Luján Manera, suspensos de jogos internacionais pela FIFA em razão do sangrento mundial de 1969 contra o Milan. Falamos neste outro Especial.

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O único gol das finais, do zagueiro Togneri, de fora da área, antes que o argentino Onega (na foto à direita) interceptasse

O Estudiantes já era rotulado de time do “antifutebol”, mas no sentido de, em tempos ainda românticos, ousar jogar no contra-ataque, em especular na bola parada, em jogar por resultados e em forçar impedimentos adversários, algo ainda incomum. Uma espécie de muricybol da época. Daí a irritação e má fama que proporcionava, não exatamente pela violência: sabia perder, aplaudindo o San Lorenzo quando dele perdeu o Metro de 1968 (veja aqui). Os jogadores do Palmeiras, vice na primeira Libertadores da série, mostraram resignação (veja fotos). Animais e hostis foram os fãs do Manchester United, no mundial de 1968: demonstramos aqui. Mas aquele escândalo com o Milan fez o “antifutebol” virar sinônimo de brutalidade.

Jorge Olguín, campeão mundial em 1978 que foi treinado no San Lorenzo por Osvaldo Zubeldía, técnico daquele Estudiantes, e também por Carlos Bilardo, ex-zagueiro alvirrubro, foi categórico em entrevista ano passado: “não, não. Zubeldía era outra coisa. (…) Tudo o que atribuem ao Zubeldía, na realidade ocorria com Bilardo: a arapuca, tirar vantagem. No San Lorenzo ele trazia um massagista (…) que fazia entrar em campo para perder tempo se o time andava mal”. Exatamente por não concordar com Bilardo, técnico da Argentina na Copa de 1986, que Olguín, em grande fase no Argentinos Jrs campeão da Libertadores de 1985, recusou a convocação àquele mundial.

Voltando: além de Poletti e Manera, o lateral-esquerdo Oscar Malbernat, expulso na semifinal com o River, pegou dois jogos de suspensão e assim só participaria da final em um hipotético jogo-desempate em campo neutro. Assim, as grandes novidades alvirrubras apareceram naqueles setores: o goleiro foi Néstor Errea, que já havia decidido a Libertadores pelo Boca contra o Santos, em 1963, e já havia sido treinado por Zubeldía no melhor Atlanta da história (explicamos aqui); a lateral-direita foi ocupada por Rubén Pagnanini, que viria a estar na seleção campeã da Copa de 1978; e José Medina ficou na outra lateral. E ele e os colegas sofreram no jogo de ida, em La Plata, não acostumados ao necessário protagonismo frente um adversário experiente e que veio na retranca garantir um empate.

“Voltou a denunciar seus problemas quando se vê na alternativa de atacar com a bola (…). O Estudiantes é EQUIPE quando especula, quando pensa, quando mantém a frieza necessária para impor todos os conhecimentos dessa ‘biblioteca’ já arraigada em sua mecânica. E, consequentemente, o Estudiantes duvida quando se vê na impostergável obrigação de mudar o que está na sua essência pelo que já entra no terreno da improvisação” foi o diagnóstico preciso da revista El Gráfico na época. Em um jogo que precisava ganhar, o Pincha se ocupou de início em fazer o que sabia: marcar o adversário, o que acarretou na esdrúxula atitude de marcar um oponente retrancado que apenas cozinhava o jogo.

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Na chance mais clara do Peñarol, bola desviada engana o goleiro Errea, mas Rudzky afasta quase sobre a linha

No segundo tempo é que os mandantes se tocaram e procuraram ser mais ofensivos, mas na base do desespero. E foi assim que conseguiram o gol, com o defensor Néstor Togneri apostando em um chute de fora da área. Falamos dele na segunda-feira: o escolhemos para o time dos sonhos do Platense, justamente o clube eliminado pelo Estudiantes na semifinal do Metropolitano de 1967 em jogo épico. Os alvirrubros o adquiriram em 1968 e trataram-no como se já fosse da família. “Que se tem que fazer neste caso? Devolver com a mesma intensidade, (…) se matar pelo time”, declarou Togneri na época.

Normalmente, era a canhota de Verón quem decidia mas foi a vez da canhota de Togneri. E ele era destro: havia machucado a boa perna direita mas ante tantos desfalques se doou para retribuir aquele grupo fundamental por lhe amparar a dor da perda meses antes da filha recém-nascida do defensor. De um elenco de valores individuais apenas esforçados com a exceção do craque Verón, Togneri seria justamente o único de todo o tri a ir a uma Copa do Mundo, em 1974. Infelizmente, faleceria cedo, aos 57 anos. O afoito passou a ser o Peñarol, que quase conseguiu o empate, mas o reserva Christian Rudzky (primeiro europeu campeão de Libertadores: era tchecoslovaco) salvou em cima da linha no último lance.

Em Montevidéu, sim, o jogo foi duro. Mas por parte dos uruguaios. A El Gráfico, longe de pachequismos, já criticava abertamente o “muricybol” do Estudiantes e detonara o clube pela vergonhoso episódio com o Milan. Dessa vez, se rendeu: “sem antifutebol, com futebol (…). É, fundamentalmente, a revanche limpa (…). Esta exemplar performance de Montevidéu, exemplar pela honestidade esportiva com que se plantaram e resolveram o jogo, exemplar pela serenidade, a convicção e a conduta com que absorveram o clima e as agressões (durante e depois da luta), nos exige um tributo jornalístico muito mais importante que um comentário técnico e anedótico de uma partida”.

No tal tributo, a revista até parafraseou a doutrina Monroe da política dos EUA para decretar “América para os Pinchas“. Errea só foi exigido três vezes no jogo inteiro, bem cozinhado pelos argentinos, que garantiram a posse da taça (oferecida ao primeiro tri seguido ou ao primeiro penta; a diferença é que ao contrário da Copa do Mundo, o troféu não foi alterado) em vez de uma mera réplica. Ficou no 0-0, para a fúria de alguns aurinegros, intolerantes aos festejos visitantes. “Os aplaudimos porque não querem perder. Mas também temos repudiado (…) sua incapacidade de saber perder. (…) Esse machismo, que imitaram alguns jogadores nossos, tem feito muito dano ao futebol rio-pratense (…). Terminemos com esse machismo estéril. Porque o futebol, mesmo profissional, segue sendo um esporte”, clamou a El Gráfico após o primeiro título de Libertadores conseguido por um clube no Centenário contra um time uruguaio. Primeiro e, até hoje, único.

Encerramos aqui especiais alusivos às peripécias daquele Estudiantes de 1967-70. Confira clicando nas notas abaixo:

Há 45 anos, o Estudiantes de La Plata emergia nacionalmente

45 anos da 1ª Libertadores do Estudiantes

45 anos do mundial do Estudiantes. Em Old Trafford

Há 45 anos, o Estudiantes festejava sua 2ª Libertadores

45 anos da grande vergonha do Estudiantes: o mundial com o Milan em 69

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A revolta do aurinegro Gonçalves com a perda do título no Centenário; o novato Pagnanini, que iria à Copa de 1978; e Togneri, único de todo o tri a ir a uma Copa, em 74, assediado por repórteres após a primeira final

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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