Apesar das taças recentes, Huracán e Racing ainda são clubes com atrelados ao sofrimento. Se o River vem ganhando quase tudo desde 2014, houve um período de imagem inversa: o Racing teve um período dourado nos anos 60 e o Huracán, nos 70, atravessando nesses tempos os dezoito anos em que o torcedor millonario amargou um jejum tremendo. No fim dos anos 70, porém, Núñez era só sorrisos. O ponto de virada deu-se em 1975. A Banda Roja conseguiu naquele ano duas vezes o que vinha escapando desde 1957: títulos oficiais. Primeiro, o jejum caiu com o Metropolitano. E há 40 anos, vinha o bi, no Nacional.
O Metropolitano foi levantado em meados de agosto – por sinal, tendo como vice o ótimo Huracán da época. Retratamos a conquista neste outro Especial. Apesar da nova taça ter demorado apenas quatro meses e meio, esse intervalo apresentou mudanças substanciais na equipe-base. Como volante central, o Reinaldo Merlo recuperou a titularidade perdida para o reforço Miguel Ángel Raimondo (presente em três dos recordistas quatro títulos seguidos do Independiente na Libertadores).
Merlo voltou a formar o meio-campo prata-da-casa de anos anteriores, com Norberto Alonso e Juan José López, que resumiu como operavam: “Merlo cortava, Alonso criava e eu corria”. Sobre aquele torneio específico, Jota Jota exaltou El Mostaza: “esse River teve um jogador-chave: Mostaza Merlo. Ele sozinho corria por todos”. Ao fim, Merlo ficaria no clube até 1984, tornando-se o jogador que mais vezes defendeu a camisa millonaria. Ironia: sobre sua situação de 1975, declarou o seguinte:
“Uma vez apareceu Labruna [o craque dos anos 40 e 50 convertido no folclórico técnico multicampeão daquele River dos anos 70], no meio do esplendor de títulos, e disse: ‘fiquem atentos, muchachos, que aqui são todos transferíveis’… Nesse momento, o Independiente tinha interesse em me levar; em pouco tempo, veio me ver Carlos Bilardo para que fosse jogar no Estudiantes. E antes daquela frase de Ángel (Labruna), quando se estava formando a grande equipe de 1975 e compraram o Perico Raimondo, pensei sinceramente que meu ciclo no River se havia terminado”.
Para o mais leigo, porém, as grandes mudanças foram na defesa e no ataque: na zaga, um novato roubou a vaga de Héctor Ártico, dupla titular de Roberto Perfumo no Metropolitano. Foi Daniel Passarella, começando a ser um dos maiores ídolos em Núñez. El Kaiser havia sido reserva no Metro não por falta de qualidade, mas pelo excesso de personalidade a alguém tão jovem: não aceitava ser lateral-esquerdo, posição que Labruna, sem sucesso, tentou lhe impor.
Já o ataque perdeu o artilheiro do Metro, Carlos Morete. El Puma, vingando-se de meia década de muitos insultos da própria torcida, resolveu sair em alta, vendido ao Las Palmas. Para o seu lugar, Labruna chamou Leopoldo Luque, que pelo Unión de Santa Fe já havia naquele 1975 estreado na seleção e feito gols nos dois jogos contra o River no Metropolitano. Aquele Unión, em um de seus momentos mais brilhantes, havia terminado em 4º lugar no Metro, a seis pontos do campeão River.
Essas duas novidades, Passarella e Luque, seriam em menos de três anos titulares da seleção argentina campeã pela primeira vez na Copa do Mundo. “Era uma equipe temível atacando. Depois, quando venderam Morete, se mudou a fórmula ofensiva porque chegou Luque e suas características eram distintas das do Puma“, explicou Jota Jota López. “Que diferenças havia entre uma equipe e outra? Jogamos o Nacional com maior tranquilidade, sem o desespero de alcançar o título postergado”, esclareceu Merlo.
Luque havia estreado na seleção ainda como jogador do Unión de Santa Fe em parte porque o técnico dela, César Menotti, inovou ao testar diversos jogadores do interior argentino na Albiceleste. Aquele Torneio Nacional corroborou sua visão: metade dos times do octagonal final que decidiu o campeonato estavam além do conurbano da capital federal com La Plata.
Aos já tradicionais Rosario Central (de Mario Kempes e Daniel Killer, ambos futuramente campeões em 1978 também) e Talleres de Córdoba (de Daniel Valencia, Luis Galván e Miguel Oviedo, outros três da Copa 1978) se juntaram Atlético de Tucumán (cujo campeão de 1978 era Ricardo Villa) e Gimnasia y Esgrima de Jujuy, em suas melhores campanhas na elite até hoje. Além deles, Newell’s, Belgrano de Córdoba, Colón de Santa Fe e Gimnasia y Esgrima de Mendoza ficaram a no máximo quatro pontos da classificação em seus grupos: eram quatro de oito times cada, com os dois primeiros travando o octagonal.
A primeira fase teve turno e returno no interior dos grupos além de partidas interzonais, reservadas normalmente aos clássicos (ou ao time geograficamente mais próximo). Foi um Superclásico que mostrou as credenciais do novato Luque no River: estreou contra o Boca e, em plena La Bombonera, fez um golaço para dar ao novo clube a vitória por 2-1, recebendo de Jota Jota López e soltando uma bomba no ângulo auriazul. O grande concorrente do Millo, porém, foi o Estudiantes.
O time de La Plata entrara em certa decadência com o fim do seu ciclo dominador na Libertadores, especialmente após vender seu cérebro, o ponta Juan Ramón Verón, ao Panathinaikos. La Bruja Verón estava de volta em 1975, inclusive marcando gol em clássico com o Gimnasia no mesmo dia em que nasceu o filho Juan Sebastián.
Outros remanescentes dos velhos tricampeões da Libertadores eram os defensores Carlos Pachamé e Rubén Pagnanini (reserva na Argentina de 1978), enquanto nas caras novas destacavam-se o atacante Rubén Galletti (pai de Luciano) e o zagueiro José Luis Brown (da Argentina de 1986).
River e Estudiantes dividiram o mesmo grupo. O Millo liderou-o com folga, com 25 pontos. Mas perdeu ambos os confrontos com os platenses, vitórias providenciais a estes: o Estudiantes ficou com 21, apenas dois à frente dos 19 somados pelo forte Huracán da época e pelo Gimnasia de Mendoza. O octagonal final foi em turno único e o confronto entre a dupla é que praticamente definiu a taça. O San Lorenzo, apesar dos inúmeros gols do supeartilheiro Héctor Scotta (que marcou 60 vezes na temporada, ainda um recorde na Argentina, do qual falamos hoje mais cedo: clique aqui) e de possuir mais dois campeões de 1978 (o ponta Oscar Ortiz e o lateral Jorge Olguín), perseguia mas perdeu as chances na penúltima rodada.
Justamente naquela penúltima rodada, River e Estudiantes se enfrentaram. Ambos estavam invictos, com os pincharratas um ponto à frente. Vantagem que se inverteu (na época, a vitória valia 2 pontos) naquele tira-teima no Monumental. Sobressaiu-se a estrela do goleirão Ubaldo Fillol, que desviou para acima do travessão um peixinho quase à queima-roupa de Verón, da marca do pênalti, no lance mais recordado da partida. O River venceu pelo placar mínimo, graças a um gol de José Reinaldi, outra estrela do interior naqueles tempos (é o maior artilheiro do Belgrano de Córdoba e brilharia também no rival Talleres).
La Pepona Reinaldi estava desde o Metropolitano, mas sua titularidade fora suplantada pelo trio Morete, Oscar Más e Pedro González. No Nacional, continuou no banco na maioria das partidas, dessa vez com Luque no lugar de Morete. O sósia de Hulk Hogan, que ironicamente era torcedor do Boca na infância, enfim teria seu momento de redenção no River: na rodada final, contra o Rosario Central em Rosario, Luque abriu o marcador. Mas o Estudiantes vencia outra surpresa (o Temperley) e o Central empatou passada meia hora. Isso forçaria um jogo-extra com os platenses.
O River partiu para o abafa. O Central repelia e repelia. No penúltimo minuto, então, Reinaldi se antecipou a toda a defesa auriazul e emendou um cruzamento longe do alcance do goleiro. O River fechava 1975 não só com uma, mas com duas chaves de ouro – ou melhor, medalhas.
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