Há 40 anos, o “argentino” Atlético de Madrid era campeão mundial
Até 2012, quando foi ultrapassado pela Internazionale, o Atlético de Madrid era o clube estrangeiro que mais havia fornecido jogadores à seleção argentina. O início dessa relação com a Albiceleste começou nos anos 70, quando o Atleti e não o Barcelona era o principal anti-Real Madrid. O ápice completa hoje 40 anos, em uma final sobre o grande Independiente da época, tetra seguido na Libertadores entre 1972 e 1975. Até hoje, o Atlético é o único campeão mundial que ainda não venceu a principal competição de seu próprio continente e por 34 anos só ele e o Real eram os espanhóis campeões do mundo.
A presença hermana é bem mais antiga. Por exemplo, foi sob o técnico Helenio Herrera que os rojiblancos foram bi seguidos pela última vez, em 1951 e 1952, fazendo do Atlético na época o segundo maior campeão espanhol e mais vencedor que o Real Madrid. Na virada dos anos 60 para os 70, um basco nascido na Argentina – José Eulogio Gárate – emendou três artilharias seguidas no Espanholzão, entre 1969 e 1971. Foi então que diversos outros trocaram o Rio da Prata pelo Rio Manzanares.

O primeiro, na verdade, era brasileiro: Heraldo Bezerra, que jogava pelo Newell’s e acabaria defendendo a seleção espanhola. Veio em 1971. Em 1972, o San Lorenzo tornou-se o primeiro clube argentino a vencer em um mesmo ano os dois campeonatos domésticos, o Metropolitano e o Nacional (Saiba mais). Seu treinador, Juan Carlos Lorenzo, já havia jogado no Atlético e era conhecido na Europa também por treinar a Argentina nas Copas de 1962 e 1966, as rivais Roma e Lazio. Voltou a Madrid em 1973.
Lorenzo trouxe consigo os dois artilheiros sanlorencistas: o centroavante Rubén Ratón Ayala (por causa dele o ex-zagueiro Roberto Ayala, com quem não tem parentesco, tem o mesmo apelido), goleador dos campeões do Metropolitano, e Ramón Cacho Heredia, artilheiro dos vencedores do Nacional embora fosse zagueiro. Assim, os colchoneros passaram a ser apelidados de Los Indios. Ayala e Heredia estiveram entre os primeiros jogadores da Europa usados pela seleção argentina, que não convocava ninguém do exterior até 1972, e iriam ambos à Copa do Mundo de 1974.

Com Gárate, Bezerra e Heredia de titulares, os comandados de Lorenzo (que ainda tinham outro vindo da América do Sul, o espanhol José Ufarte, que crescera no Brasil e defendera Corinthians e Flamengo antes de retornar à terra natal) avançaram até a decisão da Liga dos Campeões de 1973-74. Curiosamente, o objetivo principal da temporada era outro: ser bicampeão seguido em La Liga e, assim, igualar-se aos oito títulos do Barcelona como segundo maior vencedor. Os catalães, reforçados com Johan Cruijff, contudo, encerraram jejum de quatorze anos e chegaram ao nono título. Gradualmente, o interesse rojiblanco foi se direcionando ao continente, conforme a equipe avançava cada vez mais fora das fronteiras.
O resto da história é bem conhecido: uma vez na final, o Atlético parecia conseguir seu primeiro título na Liga dos Campeões quando abriu o placar já no segundo tempo da prorrogação. Mas de algum modo o Bayern conseguiu o empate a poucos segundos do fim do tempo extra, acreditando em um chute de fora da área do coadjuvante Schwarzenbeck, lance que crucificaria o goleirão Miguel Reina (pai de Pepe Reina). Não havia ainda decisões por pênaltis como critério de desempate.

Então apenas um clube de meteórico sucesso na Alemanha e de tradição inferior ao do Atleti, os bávaros souberam explorar o abalo moral que causaram nos espanhóis: apenas 48 horas depois, houve jogo-desempate com um sonoro 4-0 que deu ao time de Munique sua primeiríssima conquista na Liga dos Campeões. Sem imaginar a dinastia que consolidaria de forma tão descomunal na Alemanha, o Bayern, repleto de jogadores que dali a dois meses venceriam a Copa do Mundo, tratou de capitalizar em cima do sucesso tão grande para um clube que ainda jazia na segundona alemã menos de dez anos antes.
Nesse afã, o campeão europeu chegaram a fazer simplesmente 18 jogos em espaço de 26 dias pouco após a Copa, rendendo-lhes um péssimo início de campanha na Bundesliga, onde tiveram de lutar para não cair enquanto ironicamente encaminhavam um bi europeu na temporada 1974-75. A maratona de amistosos não se resumiria à pré-temporada: o sucesso nos gramados contrastava com um rombo financeiro, fazendo o Beckenbauer e colegas precisarem jogar amistosos de modo intercalado com a Bundesliga, a Pokal e a Liga dos Campeões seguinte. Como um contra a seleção italiana, em 12 de novembro. Ou outro contra um combinado japonês em Tóquio, já em janeiro de 1975.

Com efeito, em fevereiro de 1975 a revista alemã Kicker revelaria que as despesas para o time passar uma semana em Buenos Aires eram altas demais à realidade de então na Baviera; seria, afinal, dinheiro próprio gasto, sem qualquer mecenato de FIFA, UEFA ou do clube anfitrião. Todo esse combo, a preocupação com o desempenho caseiro (acredite, o Bayern chegaria a correr ligeiro risco de rebaixamento na Bundes de 1974-75, de tão atordoado pelo calendário), os compromissos na Liga dos Campeões (onde o clube novamente chegaria à final) e a fama virulenta do futebol no Rio da Prata fizeram os alemães não se animarem em enfrentar o campeão sul-americano.
“Os dirigentes do Bayern, de Munique, confirmaram que não disputarão o Campeonato Mundial de Clubes contra o Independiente, de Buenos Aires [sic]. Os alemães argumentam que o Bayern, campeão da Europa, já assumiu uma série de compromissos para essa temporada e não tem datas disponíveis para enfrentar o campeão da América”, registrou o Jornal do Brasil de 21 de outubro de 1974, apenas dois dias depois do Independiente garantir a Libertadores, sobre o São Paulo (confira aqui). Vale ressaltar que, segundo o mesmo jornal, na edição de 22 de novembro, os alemães, com as mesmas desculpas, também recusaram convite do São Paulo para amistoso em janeiro de 1975.

Também se noticiou por um tempo que o time de Munique aceitaria se a Intercontinental fosse travada em jogo-único e dentro da Alemanha, a exemplo do que o Independiente passara na edição anterior (enfrentou a Juventus na Itália e ganhou: veja). Mas a recompensa financeira oferecida aos argentinos não os agradou. A indefinição seguiu: a edição de 3 de novembro reportou o aceite total, em jogos de ida e volta, dos alemães, para já em 4 de novembro estampar que “o Bayern não vem”. Eram dias em que o clube lidava com possibilidade real de ser eliminado em confronto de Alemanhas na Liga dos Campeões pelo alemão-oriental Magdeburgo, que perdera só de 3-2 em Munique.
A má fase, com os bávaros a 4 pontos da lanterna na Bundes em dezembro, inclusive acarretou naquele mês na renúncia do campeão técnico Udo Lattek. Já o Atlético, que já vinha sendo cogitado como opção para a Intercontinental ainda antes da definição da Libertadores, tinha mais folga e topou, ainda que se recusasse a proposta argentina de jogar três finais caso cada oponente vencesse uma partida. Acordou-se que o saldo de gols pesaria na decisão e que, se houvesse igualdade, se disputaria prorrogação e mesmo cobrança de pênaltis (quando tal critério ainda não era muito difundido). Nesse meio-tempo, mais um argentino chegou ao clube – o lateral Rubén Panadero Díaz, ele próprio já campeão do mundo, remanescente do Racing de 1967.

Os meses de indefinição arrastaram para o ano seguinte as disputas válidas por 1974, com a UEFA confirmando só no início de fevereiro de 1975 que seria representada pelo Atlético, que àquela altura já não era treinado mais por Lorenzo e sim pelo ex-atacante Luis Aragonés. No Independiente, foi tempo suficiente para o goleiro talismã do título de 1974, o jovem Carlos Gay, mostrar-se logo verde demais e perder em 1975 o posto para a experiência do reforço José Perico Pérez, que tinha a seleção em seu currículo. O Rojo também fazia suas excursões, diga-se: naquele mesmo fevereiro de 1975, passou até por Indonésia e Hong Kong; e, em 19 de março, inaugurou contra o Vasco a reformada iluminação do estádio de São Januário – uma semana após o primeiro jogo contra os espanhóis, vencidos por 1-0 em Avellaneda.
Na Argentina, o único gol foi do volante Agustín Balbuena, deixado na cara do goleiro após Daniel Bertoni (autor do último gol da Copa 1978) carregar a bola, atrair a marcação e pôr o colega livre para receber na entrada da grande área. O Independiente, que entrara em campo tremulando a bandeira espanhola, mereceu vencer, mas não por mais do que aquilo, em um jogo monótono onde teve mais ímpeto ofensivo mas foi bem anulado pelos visitantes. Já em Madrid, a concorrência era dura para as atenções àquela decisão. No mesmo dia, o time de basquete do Real decidiria a Euroliga. Mas 70 mil pessoas ainda assim deram espetáculo nas arquibancadas do Vicente Calderón, escolhendo o melhor programa: só o Atleti seria campeão naquele 10 de abril de 1975. E os argentinos do clube foram fundamentais.

Javier Irureta abriu o placar, cabeceando bola que Gárate lhe cruzou após ser lançado em profundidade por Ayala, aos 21 minutos. O Independiente tinha melhor técnica, mas preparo físico inferior; Ricardo Pavoni e Hugo Saggioratto foram amarelados quase seguidamente, por falta em Ayala. Acuado, o Rojo apostou em alguns contra-ataques. O craque Ricardo Bochini, bem anulado, mais ainda assim eleito o melhor dos sul-americanos pelo diário espanhol Mundo Deportivo, deixou Bertoni na cara do gol aos 28 do segundo tempo. Foi a chance mais clara da partida, mas Bertoni, na saída do goleiro, chutou fraco e distante. Minutos depois, os madrilenhos reclamaram de pênalti após queda de Gárate na grande área.
Embora com o Atlético melhor, a impressão é que haveria prorrogação. Mas a quatro minutos do fim, Heredia cobrou falta lançando a bola na grande área. Houve bate-rebate em cabeceios até que Ayala, na raça, fuzilou José Pérez: “nem lembro da jogada. Só sei que me vi com a bola na frente de Perico Pérez, e que atirei enquanto saía. Que momento tão feliz! Aí vi que já seríamos campeões”, declarou El Ratón, reverenciado até hoje no Vicente Calderón com o cântico “Y al besar la red un gol de Ayala“. Ao Independiente, restou a resignação: “não serei eu quem discutirá. (…) Há de aceitar as derrotas, ainda que em partidos tão condimentados como este”, declarou seu técnico, Roberto Ferreiro.

Desde agosto de 1973 no cargo, Ferreiro, campeão mundial em 1973 e da Libertadores de 1974, acabaria caindo; ainda não iniciada, a vitoriosa Libertadores de 1975 seria vencida já com Pedro Dellacha como técnico rojo, tal como em 1972. Já a sequência de bons momentos às margens do Manzanares, iniciada com título espanhol em 1972-73, seguiria com a Copa do Rei de 1975-76 (gol de Gárate na final) e com o título espanhol de 1976-77, no embalo dos gols de Ayala e sobretudo de outro reforço hermano, Rubén Cano, terceiro na artilharia – ele acabaria defendendo a Espanha e até fez o gol de sua classificação à Copa de 1978, sobre a Iugoslávia em Belgrado. Os brasileiros Leivinha e Luís Pereira, que chegariam ainda em 1975, no segundo semestre, só encorparam ainda mais a mística da era de Los Indios.
Naquele momento, o Atlético de Madrid voltava a ter uma liga espanhola a menos que o Barcelona, mas sendo um vencedor muito mais contínuo que os catalães (que desde 1960 só haviam ganho um único campeonato espanhol, aquele de 1973-74). Mas o ciclo rojiblanco não se renovou. Se demoraria até 1996 para ser campeão espanhol novamente. E até 2014 para mais um. Títulos sob a batuta de outro argentino, Diego Simeone – que por sinal deve gostar de celebrar a taça de 40 anos atrás, por ser fanático pelo Racing.
Clique aqui para saber mais da riqueza hermana amealhada pelo Atlético. E aqui para conferir a carreira do herói Ayala.
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