Há 40 anos, a Libertadores era pela primeira vez do Boca, em final contra o Cruzeiro

Hoje, o Museo de la Pasión Boquense ganhará uma nova estátua, a ser inaugurada às 19h: a de Juan Carlos Lorenzo. Afinal, El Toto foi o treinador vencedor das duas primeiras Libertadores e do primeiro Mundial dos xeneizes, no ciclo de 1977-78, cujo primeiro capítulo faz hoje 40 anos – a primeira dessas Libertadores, garantida sobre um timaço do Cruzeiro, vencedor da edição anterior da competição (sobre o River, aliás). Uma outra merecia ser erguida para Carlos Veglio. Elo entre os dois ciclos de títulos contínuos em La Copa, pois era ajudante de Carlos Bianchi entre 2000-03, foi dele o gol do título e a maior parte das declarações que usaremos agora.

Essas declarações foram dadas à edição de abril da revista El Gráfico, em entrevista que começou com tudo: “sua filha se chama Libertad, pela primeira Libertadores que ganhaste com o Boca. Verdadeiro ou falso?”. El Toti não titubeou há 40 anos, muito menos recentemente: “verdadeiro. Foi em 1977, em 11 de setembro. Estávamos para sair a campo jogar a segunda final contra o Cruzeiro, em Belo Horizonte, e na entrada no aquecimento me avisou (o locutor) El Gordo Muñoz: ‘Toti, foste papai de uma menina’. E aí mesmo fiz uma promessa: ‘se chegamos a sair campeões, lhe ponho o nome de Libertad’.”

O gol de Veglio, o único do Boca na final

Veglio prosseguiu: “perdemos no Brasil por 1-0 e fomos campeões por pênaltis em três dias em Montevidéu, no desempate. Quando chegamos a (ao aeroporto de) Ezeiza, era uma loucura de gente, a única coisa que queria era chegar a minha casa para conhecer a minha filha: só a vi com quatro dias de nascida. Era um bombonzinho… nos abraçamos com minha mulher e um momento depois lhe disse: ‘veja, Lidia, fiz uma promessa, escolhi um nome, é Libertad’, mas colocamos como segundo’. Não havia muitas variantes: era América ou Libertad. Hoje minha filha se chama Luciana Libertad”.

Foram dias intensos a Veglio. No dia 6, fez seu único gol na competição, justo na final em La Bombonera, logo aos três minutos (foto abaixo). No dia 11, enquanto a filha nascia, o Cruzeiro devolvia o placar nos quinze minutos finais, com Nelinho. Aos 14, o Boca era campeão. Mas no dia 24, o atacante sofria a perda do pai, que só pôde assisti-lo pela televisão (“câncer de pulmão, aos 62 anos”). A filha fez-se fanática pelo clube: “quando eu era ajudante de Carlitos (Bianchi), me davam ingressos nas cadeiras. ‘Que cadeira? Vou a La 12, aí se vive a partida’, me dizia”. Ainda que ele não escape de brincadeiras: “menos mal que não ganhaste a Copa FIFA”.

Festa do gol de Veglio, em tempos em que fotógrafos invadiam normalmente o campo em pausas geradas por comemorações

Na entrevista, Veglio, ausente só do título da Libertadores 2007, também comparou Lorenzo e Bianchi, os dois maiores técnicos do clube: “Carlos também estava no mínimo detalhe, mas com outra forma de ser. A visão de Carlos encantava o jogador, era como um pai; Lorenzo era mais duro. Você estava na cama, em La Candela, olhando um filme espetacular com teus colegas e de golpe entrava El Loco e bum. Eu me metia embaixo do lençol, me fingia dormindo. ‘Tudo bem, se finja de adormecido você, que na terça-feira és o primeiro a ir cobrar o prêmio por bilheteria’, me dizia. ‘Chega de filmes, aqui, vamos falar do jogo’, seguia, e nos tinha uma hora com coisas dos rivais, e nos cagava o filme”.

“Quando ninguém jogava em trinta metros, nós sim fazíamos isso. Usávamos o impedimento, que manejava muito bem Pancho Sá (jogador mais vezes campeão do torneio: seis, estando presente no tetra do Independiente de 1972-75) atrás, e com (o goleiro) Gatti de líbero. Tínhamos jogadas ensaiadas, algo que poucos tinham. Esse Boca te metia um gol e não lhe empatavam mais, era brilhante taticamente. Cada um sabia o que tinha que fazer e a mentalidade era de ferro, com um grupo de jogadores muito fortes”. Nesse sentido, Roberto Mouzo, o lateral que também é o recordista de jogos pelo clube (426), já havia falado algo parecido à El Gráfico em 2009:

Contra a camisa azul do Cruzeiro no Mineirão, o Boca usou amarelo. Perdeu e a superstição ordenou a troca para o branco em Montevidéu

“Cada um sabia o que tinha que fazer. (O meia-esquerda) Zanabria metia o pelotazo para as diagonais de (o ponta-direita) Mastrángelo; (o volante) Suñé era o grande capitão; eu, antecipação e marcação; Bordón, a pegada e a subida. E era uma equipe de homens. Entre as duas Libertadores que ganhamos, nos fizeram cinco gols. Nos entendíamos de memória. Suñé sabia que eu ia à sua costa e saía a avançar tranquilo. Eu sabia que atrás de mim, Sá manejava os tempos por sua experiência e nos falava. Pernía (beque pai do Pernía da seleção espanhola na Copa 2006) era pura força e eu era de estar em cima de ti, ganhava por cansaço, respirava na tua nuca. Eu não sabia fazer o que Zanabria fazia, por isso cada vez que passava do meio, El Toto gritava: ‘onde vais, velho?'”.

Já o único dali que venceria uma Copa do Mundo, o lateral Alberto Tarantini não escondeu que aqueles jogadores também eram humanos: “estávamos todos cagados de medo, é a verdade, mas a ação da torcida do Boca foi impressionante. O Cruzeiro era um timaço, mas o Boca tinha uma personalidade tremenda, não tinha problemas em jogar em qualquer campo, nos entendíamos de memória”. Ele se desligaria do clube semanas depois, em curto-circuito com o presidente Alberto Jacinto Armando, no cargo desde 1960 e quem nomeia oficialmente La Bombonera – mesmo oficialmente sem clube, Tarantini iria à Copa de 1978 e seria titular.

“É preciso ir aos pênaltis. E o suspense põe um nó nas gargantas…”

O Boca chegou ao torneio credenciado por ter ganho os dois torneios domésticos de 1976: o Metropolitano, começando mal (recém-chegado, o técnico Lorenzo quase perdeu o cargo após resultados iniciais que incluíam derrotas de 1-0 para o River, de 5-1 para o Rosario Central e de 3-1 para o estreante e rebaixado San Telmo) mas sobressaindo-se na fase final (ganhou mesmo somando menos pontos no total que o vice Huracán, segunda equipe mais representada na seleção de 1978); e o Nacional, no qual o título veio nos minutos finais de uma final com o River. Até hoje, foi a única final mata-mata com a dupla, com o goleiro Gatti chegando a afirmar que esta conquista foi até mais deliciosa que as próprias Libertadores.

Falamos aqui do time de 1976. A equipe duas vezes campeã argentina no mesmo ano se afirmou no continente com uma campanha quase sem defeitos. Foram sete vitórias e só uma derrota em treze jogos (a segunda final contra o Cruzeiro), com apenas três gols sofridos – o primeiro deles veio somente na nona partida. E encarando uma primeira fase nada menos que com River e Peñarol, além do Defensor, que no ano anterior, contrariando a ditadura uruguaia, se tornara o primeiro desde 1932 a furar o duopólio Nacional-Peñarol no campeonato local. Com um futebol talvez não espetacular, mas eficiente, o Boca fazia o resultado em casa e sabia segurar fora. A trajetória começou logo no Superclásico. La Bombonera ferveu vendo Passarella expulso aos 21 minutos.

O lance do título: Gatti pega o pênalti de Vanderley

Aos 88, Fillol defendeu um pênalti, mas a cobrança foi reordenada. E quase teve sucesso de novo: o tiro de Mouzo acertou a trave esquerda, mas a bola acertou as costas de Fillol, que se atirara no canto “certo” que virou errado, pois a sequência propiciou uma bola pingando livre para Mouzo aproveitar o rebote e fuzilar. Depois, a viagem ao Uruguai rendeu 0-0 com o Defensor e um importante 1-0 no Peñarol, gol de Mastrángelo aos 11 do segundo tempo e minutos finais complicados com a expulsão de Suñé aos 39. Depois veio a visita dos vizinhos à Argentina. O Defensor, com um jogador expulso no fim do primeiro tempo, caiu por 2-0 (Mouzo de pênalti aos 11, e outro aos 60 do ponta-esquerda Felman), única vitória com dois gols de diferença para o campeão.

O Peñarol levou outro 1-0, com o reserva de Zanabria, Ribolzi, marcando aos 42 minutos do primeiro tempo com um “peixinho lateral” para aproveitar um cruzamento. Esse resultado classificou o Boca antecipadamente, em época duríssima de regulamento no qual só o líder avançava. Ainda assim, os titulares foram usados na rodada final com o River. A invencibilidade com o River foi mantida com um 0-0 no estádio do Huracán (o Monumental estava em reformas para a Copa do Mundo). Pela frente, um triangular-semifinal com o Libertad e o Deportivo Cali, do nascente narcofútbol colombiano e que no ano seguinte, treinado pelo futuro técnico campeão da Copa do Mundo de 1986, Carlos Bilardo, seria vice do próprio Boca.

Os argentinos correm até Gatti, o cabeludo de gostas na página direita

Os paraguaios não foram menos encardidos. Em jogo com cara de Libertadores, três foram expulsos em La Bombonera: o adversário Benítez aos 53, e um de cada lado aos 72, casos de Ribolzi para o Boca e Espíndola para os alvinegros. Mouzo, dessa vez, perdeu um pênalti, aos 74. Somente a dez minutos do fim veio o gol da casa, graças ao reserva Pavón, que entrou no intervalo no lugar de Felman – em toque sutil de cabeça para aproveitar cruzamento de Mastrángelo e matar no contrapé o goleiro paraguaio. O jogo seguinte foi a revanche, ganha com Mastrángelo marcando a onze minutos do fim o único gol no Defensores del Chaco. Já o Deportivo Cali foi a única equipe não batida pelo campeão.

Foram dois empates em 1-1. Em Cali, o argentino Scotta (artilheiro da competição e ex-jogador do Grêmio, considerado por muito tempo o autor do primeiro gol do Brasileirão, em 1971, antes da CBF unifica-lo com Taça Brasil e Robertão) abriu o placar aos 25, mas o zagueiro Sá arrancou o empate no fim do primeiro tempo. Em La Bombonera, o Boca já estava classificado à decisão, tomando susto quando podia: os colombianos tiveram Caicedo expulso aos 38, mas abriram o placar com Benítez aos 68. Mouzo, de pênalti, empatou aos 72. O Cruzeiro, por sua vez, teve somente um adversário de peso antes da final, o grande Internacional dos anos 70.

Na volta olímpica, destaque a Francisco Sá, carregado à direita: ele não pôde jogar e ali se tornou o jogador mais campeão da Libertadores

Como campeã anterior, a Raposa teve direito a entrar diretamente no seu triangular-semifinal, onde encarou os gaúchos e a Portuguesa venezuelana. Os mineiros estrearam vencendo no Beira-Rio, com Joãozinho marcando o solitário gol determinante para as futuras pretensões da dupla brasileira: o Cruzeiro avançou com quatro pontos de diferença para o Inter, quando a vitória ainda valia dois pontos e não três.

A decisão contra uma equipe brasileira fez a Placar registrar diversos depoimentos do em todos os sentidos) soberbo técnico Lorenzo: antes da final, em nota que elogiava a eficiência defensiva apesar da falta de sutilezas dos argentinos, a declaração foi a seguinte: “é um time tipicamente europeu. Armei-o assim conscientemente, e porque detesto esse joguinho para os lados que se pratica no meu país. E agora me diga uma coisa: estou errado? Aqui, metade do país odeia o Boca, odeia a mim, porque apesar do futebol feio continuamos vencendo. Pouco me interessa o que pensam. Afinal, não tenho Pelé, Puskás, Di Stéfano para sair jogando no toque. Tenho japoneses, como todos os times. A diferença é que eu e meus jogadores estamos conscientes”.

O bilhete do técnico Lorenzo para os pênaltis na final da Libertadores 1977, comemorada ao lado com o goleiro Gatti: anotou os cobradores Pernía, Tesare, Zanabria, Felman, Mouzo e a categórica ordem ABAJO (“CHUTEM RASTEIRO”)

O Cruzeiro vinha invicto, o que ruiu na primeira decisão, com raça e sorte de campeão: um cruzamento pela esquerda foi feito no limite da linha de escanteio e inicialmente não chegou ao Toti, cujo cabeceio não alcançou a bola. Mas ela sobrou para um disparo horrendo de Felman, cuja mira iria longe das traves de Raul. Só que funcionou: a bola bateu num adversário e sobrou livre para Veglio. No Mineirão, o 1-0 foi azul. No caso, o azul do anfitrião, com um Boca de camisas amarelas levando aos 32 minutos do segundo tempo um gol pelas famosas faltas de Nelinho. Nada que diminuísse alguma crise nos vestiários brasileiros.

A Placar, ao menos, publicou até uma discussão interna do Cruzeiro contra a tática defeituosa do seu treinador Yustrich; relatou-se como os mineiros atuaram perdidos na Bombonera e que no Mineirão dependeram de uma providencial falta de Nelinho – enquanto mesmos os jogadores ofensivos argentinos “estavam bem orientados” para reforçar a marcação (apenas o já veterano Mastrángelo não recuava, observou-se), embora o Boca houvesse atuado mais ofensivamente do que o estereótipo. E mais discursos de Lorenzo: “orientar um time é como jogar na Bolsa. É preciso estar atento e ser inteligente para saber o momento de comprar ou vender ações. Houve momentos em que eu mandava meu time marcar por pressão e amassar o Cruzeiro. Em outros, mandava recuar. Por quê? Porque sou um cara inteligente. É preciso ter jogadores, homens decididos. E isso, o Boca tem mais”.

Veglio e Mastrángelo, ainda com a camisa branca, erguem a taça, rodeada à direita por Ribolzi, Suñé, Sá, Gatti e novamente Veglio e Mastrángelo

A terceira final, programada originalmente para dali a 48 horas, seria na neutra Montevidéu, onde o Cruzeiro conservaria a camisa titular. Toto Lorenzo, supersticioso, ordenou o uso de outra cor para a camisa reserva: branco. A mística azul y oro seria usada só na hora de erguer a taça. Entregue de forma justa aos argentinos, segundo outra nota da Placar, logo após a finalíssima, registrando declarações nesse sentido de Yustrich e Zé Carlos. Além de Nelinho (no Uruguai, ele lesionara-se aos 15 minutos do segundo tempo, levando Toto a declarar à Placar que “quando eles perderam Nelinho, tive a certeza de que não tomaríamos mais gol”, em alusão a uma atuação novamente pobre e inesperadamente retrancada dos brasileiros) no Mineirão, somente em outros dois lances o Boca levou gol em toda aquela Libertadores antes daquela decisão por pênaltis.

A decisão acabou adiada em um dia por conta de fortes chuvas e os 25 mil torcedores xeneizes, um punhado de uruguaios curiosos e alguns brasileiros só viram gols na decisão por pênaltis, ao fim de 90 minutos com outros 30 de prorrogação. Momento em que Lorenzo ordenou categoricamente, com direito a letras garrafais em um bilhete com ares de relíquia, que todos os cobradores desferissem chutes rasteiros ao notar que assim teriam mais chances contra o goleirão Raul, observado como o principal responsável para a Raposa ter resistido tanto. Ao fim, um emocionado Lorenzo declarava à revista El Gráfico que já pensava em parar com o futebol, mas não podia se aposentar antes de vencer La Copa.

“O país em um bairro”: as festas da torcida que acompanhou diretamente do bairro de La Boca

E ela foi vencida após chutes de convertidos Mouzo (na segunda tentativa, pois um adiantado Raul defendeu a primeira, punido com a ordem de repetição da cobrança), Darcy Menezes, Tesare, Neca, Zanabria, Morais, Pernía, Lívio e Felman. Restava a cobrança brasileira de Vanderley, que precisava acertar para forçar as séries alternadas. Gatti, operado no joelho, voou à esquerda e impediu. A América era do Boca Juniors.

Hoje também se completa anos redondos de outro momento marcante para o Boca. Diferentemente de 40 anos atrás, na época ninguém, porém, teve ciência dessa importância. Hoje completam-se vinte anos do jogo marcado pelo último gol de Maradona e pela estreia, e primeiro gol, de Schelotto. Essa história fica para mais tarde. 

Relembre Especiais dedicados às conquistas seguintes do Boca na competição (clique nos anos): 1978, 2000, 2001, 2003 e 2007.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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