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Há 35 anos, o San Lorenzo se despedia do Viejo Gasómetro, “o Wembley Argentino”

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San Lorenzo ganhou quatro títulos argentinos entre 1968 e 1974. Seu Gasómetro era sinônimo de festa

Com capacidade para 60 mil pessoas, era o maior estádio do país, e por isso chamado de “Wembley Argentino”. Um templo dos mais emblemáticos não só do San Lorenzo. O Gasómetro viu um jogo de futebol pela última vez naquele 2 de dezembro de 1979, em um “semiclássico” com o Boca com um público ainda não ciente da venda e um insosso 0-0, simbolicamente com direito a um pênalti perdido por Hugo Coscia Os militares aproveitavam-se das dívidas do clube para pressionar pela venda do terreno de um estádio então mal conservado. Alguns anos depois, o Carrefour abriu sua primeira unidade na Argentina naquela área. O San Lorenzo passou os anos 80 inteiros sem teto até inaugurar em 1993 o Nuevo Gasómetro.

O Gasómetro, nome oriundo dos antigos tanques de gás do Estado que se situavam no terreno, foi inaugurado em 6 de maio de 1916 com um 2-1 no Estudiantes. Mais do que uma casa de futebol, tinha em seus fundos ginásios poliesportivos e funcionava como um polo cultural no coração do bairro de Boedo. Muitos torcedores torceram o nariz para o Nuevo Gasómetro exatamente porque ele não se situa nesse bairro, principal reduto azulgrana, e sim no de Flores.

O estádio abrigava desde bailes de carnaval, espetáculos de tango e jazz a até luta de boxe, onde Pascual Pérez defendeu pela quarta vez seu cinturão contra o galês Dai Power em 1957. E viu, naturalmente, as grandes recordações do San Lorenzo, que ganhou a maioria de seus troféus na velha casa. As maiores exibições talvez tenham sido do espanhol Isidro Lángara, que estreou sob desconfianças por seu físico excessivamente esguio em 1940 e marcou quatro vezes no River – todas no primeiro tempo (falamos dele aqui); e de Héctor Veira, eleito no centenário do clube como o maior ídolo, fez por algo parecido em 1967, com quatro no Boca antes dos 30 minutos de jogo.

Mas o Gasómetro não rendeu alegrias só a seu dono. A seleção tem capítulos especiais em Boedo. Por dez anos, o Gasómetro foi sua casa principal, entre 1928, com as instalações enfim concluídas, e 1938, quando o Monumental de Núñez foi inaugurado. Nesse período, venceu a Copa América de 1929 sobre o Uruguai, uma revanche pela perda do ouro olímpico um ano antes. Lá a Argentina venceu também a Copa América de 1937, com duas vitórias sobre o Brasil, um 1-0 que igualou ambos na pontuação na rodada final e um 2-0 na finalíssima, dois gols do adolescente Vicente de la Mata.

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Nem só de futebol vivia o Gasómetro: sob as arquibancadas jogava-se dentre outros até hóquei e basquete, praticado ali pelo pai do Papa Francisco

A Copa Roca de 1940 também ocorreu lá e teve dois jogos destacados. No primeiro, uma surra alviceleste, 6-1, curiosamente com metade dos gols sendo de jogadores do rival Huracán: dois de Herminio Masantonio, maior artilheiro deste clube (e de melhor média pela seleção dentre os que jogaram mais de dez vezes nela: marcou 21 gols em 19 jogos), e outro de Emilio Baldonedo. Os outros três foram de Carlos Peucelle, o astro que ao ser contratado pelo River em 1931 rendeu-lhe o apelido de Millonario. No segundo, Baldonedo marcou duas vezes mas o Brasil se superou e venceu por 3-2, insuficiente para levar o troféu.

Apesar do Monumental tornar-se a nova casa, o Gasómetro seguiu com maior capacidade até 1978, quando o estádio do River, reformado para a Copa do Mundo, ficou maior. Ressalte-se que até os anos 50 a casa sanlorencista tinha o dobro da capacidade da do River, então na casa dos 30 mil enquanto as arquibancadas estavam em forma de ferradura: o anel só ficou completo após a venda de Omar Sívori em 1957. Por conta disso, o Gasómetro tornou-se especial a outros clubes também, pois foi cenário comum quando finais em campo neutro se tornaram necessárias.

E muitos desses títulos alheios foram especiais: o River foi campeão profissional pela primeira vez lá, em 1932, após 3-0 na final com o Independiente. O Racing tornou-se o primeiro tricampeão profissional seguido em Boedo também, após final com o Banfield em 1951. Após bater o Racing, o Estudiantes tornou-se ali em 1967 o primeiro campeão argentino profissional fora dos cinco grandes, quebrando mais de três décadas de oligopólio. E o Vélez foi campeão da elite pela primeira vez ali também, em 1968. Até o rival Huracán já conseguiu taças no Gasómetro. Isso ocorreu nas finais de 1943 da Copa Adrián Escobar e na de 1944 da Copa Británica, competições prestigiadas na época embora esquecidas hoje.

Aliás, como não poderia deixar de ser, o maior clássico de bairro no mundo teve grandes histórias no Gasómetro. Em 1933, a maior goleada até então no clássico: 4-1 para os visitantes, com dois de seu artilheiro maior, Herminio Masantonio. A marca foi superada já no ano seguinte pelos mandantes, um 5-1 com dois de Diego García, segundo maior artilheiro cuervo (na época era o maior), e outro do brasileiro Petronilho de Brito, que seria o real autor do chute de bicicleta (é também irmão de Valdemar de Brito, da seleção na Copa 1934 e descobridor de Pelé).

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Jorge Olguín, o único sanlorencista titular da Argentina campeã mundial. Assim como o Gasómetro, o clube precisou vendê-lo em 1979. Saíram também o classudo volante Claudio Marangoni e outro ídolo, o atacante Narciso Doval

Em 1939, o Huracán fez sua primeira grande campanha profissional e quase foi campeão, rendendo-lhe a alcunha oficial de “sexto grande” pela AFA na época e aquelas convocações de Masantonio e Baldonedo contra o Brasil. O clássico terminou em 5-2 aos visitantes, com os mencionados Lángara e Baldonedo marcando dois cada. Esse placar foi devolvido em 1941, novamente com esses jogadores marcando dois gols cada um. Para o San Lorenzo, desequilibraram Rinaldo Martino, terceiro maior artilheiro do clube e que jogaria na seleção italiana, e Mateo Nicolau, de destaque no Barcelona ao fim da década.

Em 1946, o San Lorenzo foi campeão e o Papa Francisco, então com dez anos, já afirmou que presenciou todos os jogos travados no Gasómetro. Deve ter visto o histórico 3-2 para o rival. Norberto Méndez, maior artilheiro das Copas América, fez um, mas o destaque maior coube ao jovem Alfredo Di Stéfano, que fez dois, um deles o mais rápido do futebol argentino até então. Sem espaço no River, Di Stéfano estava emprestado e foi no Huracán que começou a despontar. Um novo 3-2 tremendo aos visitantes veio em 1950, que perdiam por 2-0 e viraram em vinte minutos jogando com reservas contra o então líder do campeonato. Adiante, o resultado fez a diferença para o Huracán não ser rebaixado. Elegemos esse jogo entre as dez maiores viradas do país (clique aqui).

Mas a supremacia do Sanloré no clássico é demonstrada por outros jogos de destaque. Em 1959, voltou a ser campeão e protagonizou o jogo com mais gols no dérbi, um 6-3 com três de José Sanfilippo, maior artilheiro do clube e da rivalidade. Sua dupla Norberto Boggio fez os outros três. Em 1961, Sanfilippo marcou outras duas em um 5-2. Em 1964, deslumbravam Los Carasucias, espécie de Meninos da Vila em Boedo. Um era o citado Veira (que naquele ano fez os três em um 3-1 no Independiente campeão da Libertadores), autor de um gol, e outro, Roberto Telch, fez também nos 3-0.

Eleito maior ídolo do clube em 2008, Veira, que ironicamente se declarava torcedor huracanense, marcou dois em um 4-1 em 1966 (Roberto Fischer, que fez sucesso no Botafogo, marcou outro). Já o Huracán teve triunfos de destaque em 1976, quando somou mais pontos que o campeão Boca em parte pelos 3-1 com dois de futuros campeões do mundo em 1978, René Houseman e Omar Larrosa; e em 1979, no último clássico no Gasómetro, um 2-1 em 16 de setembro. Já o último gol veio em 18 de novembro, um 4-0 do San Lorenzo no Cippoletti com dois de Mario Rizzi, um deles o quarto na goleada.

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Momento do pênalti perdido por Coscia no último jogo no Gasómetro, contra o Boca

Curiosamente, o San Lorenzo deu poucas voltas olímpicas no Gasómetro: na maioria das vezes, garantiu títulos como visitante (no campo do Lanús em 1923, no do Chacarita em 1933, no do Atlanta em 1936, no do Ferro em 1946 e 1959) ou em campo neutro (no do River na final de 1968 e no do Vélez na final do Nacional 1972 e no quadrangular-final de 1974). O luxo só ocorreu em 1924, 1927 e no Metropolitano de 1972. Mas após perder a velha casa precisou de 16 anos para ser campeão. Foi em 1995, o que por si só já seria o maior jejum do clube – totalizou 21, com os cinco já somados à altura de 1979.

O despejado até rebaixado foi, em 1981 – os cuervos foram precisamente o primeiro dos cinco grandes a sofrer o descenso. O Carrefour, que recentemente foi obrigado a revender o terreno ao antigo dono, foi por décadas sinônimo de zombarias dos rivais. Sobre a amargura de ver seu antigo palco substituído por gôndolas de um supermercado, nenhum relato é tão triste e belo como o de Sanfilippo no livro “Relato de Futebol ao Sol e à Sombra”, de Eduardo Galeano (obrigado, amigos do Impedimento):

“’A bola caiu atrás dos zagueiros centrais, atropelei, mas ela foi um pouco para lá, ali onde está o arroz, viu só? (…). Deixei-a quicar, e plum!’. Dispara com a esquerda. Nos viramos todos para olhar na direção do caixa, onde há trinta e tantos anos estava o gol, e parece a todos nós que a bola entra por cima, justamente onde estão as pilhas para rádio e as lâminas de barbear. Sanfilippo levanta os braços para festejar. Os fregueses e funcionários quase arrebentam as mãos de tanto aplaudir. Quase comecei a chorar. O Nene Sanfilippo tinha feito de novo aquele gol de 1962, só para que eu pudesse vê-lo.”

Homens em campo há 35 anos: pelo San Lorenzo, jogaram Walter Corbo; Orlando Ruiz, Hugo Pena, Miguel Gette e Carlos Schamberger; Ricardo Collavini, Osvaldo Rinaldi (Víctor Mancinelli), Rubén Insúa (Oscar Rodas), Hugo Coscia, Víctor Marchetti e Mario Rizzi, treinados por Carlos Bilardo. O Boca atuou com Hugo Gatti, Vicente Pernía, Francisco Sá, Roberto Mouzo e Miguel Bordón; Juan Ramón Rocha, Abel Alves, Carlos Randazzo, Ernesto Mastrángelo, Carlos Salguero e Orlando Carrazana (Sergio Robles). O técnico, por ironia, era Juan Carlos Lorenzo, campeão dobrado com os azulgranas em 1972.

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O lance do pênalti

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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