9 de novembro é uma data de gratas recordações ao torcedor do Boca. Nela, em 1976, o clube voltou a ser campeão argentino após exatos seis anos – pois o título anterior veio na mesma data em 1970. Em 2003, em tarde memorável do brasileiro Iarley, venceu por 2-0 o River no Monumental e encaminhou novo título nacional. No mundo, a data é lembrada pela queda do Muro de Berlim, em 1989. Nove anos antes, quem era destruído era o Boca, justo por um de seus maiores ídolos: Diego Armando Maradona. Vergonha que ainda assim traria efeitos positivos.
Se nas últimas décadas Maradona se mostrou fervoroso torcedor do Boca, nos anos 70 se declarava simpático ao Independiente – até recebeu um mimo em 1979, quando o maior ídolo dos rojos (e também grande ídolo pessoal de Dieguito), Ricardo Bochini, defendeu o Argentinos Jrs lado a lado com Diego em um amistoso. Enfrentar o Boca não era problema: apenas três dias depois de completar somente 17 anos, El Diez fez os dois gols da vitória por 2-1 dentro da Bombonera contra o elenco recém-campeão da Libertadores (a primeira dos xeneizes).
Não era problema, na verdade, enfrentar ninguém: ainda antes de completar os dezoito anos, foi pela primeira vez artilheiro da elite, no Metropolitano 1978. O torneio seguinte, o Nacional de 1978, teve artilharia de José Reinaldi, do Talleres. Mas nos quatro torneios seguintes, só deu Diego, artilheiro do Metropolitano e do Nacional em 1979 e igualmente em 1980. As quatro artilharias seguidas lhe são um recorde compartilhado. Mas as cinco artilharias no total são uma marca profissional exclusiva dele no país.
Maradona já era reconhecido antes mesmo de todos esses feitos, pois sua estreia na seleção adulta se deu ainda em fevereiro de 1977, com poucos meses de carreira profissional. Ele, porém, não saía do nanico Argentinos Jrs. Pesava a interferência do general Guillermo Suárez Mason, mecenas da modesta equipe do bairro de La Paternal. Mas no início de 1981 não teve jeito. O Boca, que não conseguia títulos nacionais desde 1976 (curiosamente, o mesmo ano da estreia profissional de Diego), arranjou um empréstimo.
Maradona, afinal, havia conseguido um vice-campeonato pelo Argentinos Jrs no Metropolitano de 1980. O poderoso River conseguiu ser campeão com uma margem segura de distância, mas jamais o Argentinos havia chegado tão longe no pódio até então. O que certamente pesou de vez para a transferência de Dieguito, porém, viria no torneio seguinte, o Nacional.
O Boca já não era sombra da grande equipe do fim da década que se terminava (campeão do Metropolitano e do Nacional em 1976, bi na Libertadores em 1977 e 1978, campeão Intercontinental nesse período e vice da Libertadores em 1979). Fez uma campanha muito pobre naquele Nacional, vencendo quatro e perdendo seis vezes. Ficaria em quinto em grupo de sete equipes. Simbolicamente, o mitológico presidente Alberto Jacinto Armando (nome oficial da Bombonera) se despedia do cargo.
Em meio à má fase, seguia no Boca outra lenda, o goleiro Hugo Gatti, segundo homem que mais vezes jogou pelo clube. Deveria ter sido ele, e não Ubaldo Fillol, o goleiro titular na Copa de 1978 – Gatti, porém, contundiu-se nos fins de 1977. Comparte com o próprio Fillol o recorde de pênaltis defendidos na Argentina, 26. Apelidado convenientemente de El Loco por ser extravagante nas vestes e no estilo, não se inibindo em sair da grande área, Gatti (que, aliás, também jogou pelo Argentinos naquele amistoso que contou com o Bochini) também não se inibiu em cutucar a fera.
Em 28 de setembro, o Argentinos Jrs, com um gol de Maradona, já havia destroçado o Boca em plena La Bombonera: 4-3. Mas Gatti resolveu ainda assim proferir ao jornal La Razón que Maradona seria um “gordinho”. O goleiro negaria-lhe a declaração quando ambos se encontraram no gramado, mas foi tarde demais. A resposta veio há exatos 35 anos. Era o returno e seria a vez do Argentinos receber o Boca, ainda que tenha mandado a partida no estádio do Vélez.
Os auriazuis até saíram na frente, com Jorge Ribolzi acertando petardo no meio do gol em pênalti aos 20 do primeiro tempo. Em seis minutos, porém, já perdiam a partida. Aos 23, Maradona não deu trela ao recorde de Gatti e também converteu um pênalti que ele mesmo cavou, ao ter um lançamento (que executou com toque de letra! Já que estava no flanco direito e a perna mágica era, como se sabe, a canhota) bloqueado pela mão do marcador, Hugo Alves. Ele também colocou próximo do meio do gol, mas com um toque sutil, quase uma cavadinha para devolver a provocação. Comemorou efusivamente.
Aos 26, em outro tiro livre, desta vez uma bela falta, Espíndola virou (humilhantemente – a bola adentrou entre dois jogadores boquenses posicionados sobre a linha). Quem havia sofrido a falta? Maradona, em entrada do outro Alves, Abel, irmão de Hugo. Mas outros seis minutos depois, porém, Mario Zanabria devolvia na mesma moeda, acertando uma falta rasteira e contando com falta de jogo de cintura do goleiro aos 32 minutos para empatar.
Mas ainda antes do fim, aquele primeiro tempo frenético viu novo sucesso em cobrança de falta. Foi de Maradona, aos 42 minutos, após sofrer infração de Oscar Ruggeri. Foi sensacional: sem esperar os rivais armarem a barreira, cobrou sem ângulo pela linha de fundo esquerda, quase um escanteio, surpreendendo a todos – a bola ainda tocou na trave direita antes de entrar. Para aplausos até da torcida boquense.
Mal houve o reinício e saiu um novo gol maradoniano. Aos três minutos, ele foi lançado por Pedro Pasculli (outro campeão da Copa de 1986) nas costas de Abel Alves. Dominou a bola no peito, deixou-a quicar uma vez e arqueou as pernas para emendar pelo flanco direito um toque sutil com a canhota para desviar a redonda da investida furiosa de Gatti. Aos 15, o Boca se complicou bem mais: Ribolzi foi expulso após entrada violenta no volante adversário Adrián Domenech.
Até que o Argentinos nem se aproveitou tanto da vantagem numérica, marcando só mais um. Com novo toque de raça e genialidade simultâneas. Isso porque era para ter sido um pênalti, mas o árbitro Juan Carlos Loustau enxergou que a penalidade – sobre Maradona, claro – teria sido a milímetros da entrada da grande área. As reclamações vermelhas logo se dissiparam.
Diego tomou bastante distância. A cobrança foi forte. Mas, ao invés de um míssil reto, veio uma parábola no ângulo do humilhado Gatti, que por alguma razão aguardou fora da pequena área. Maradona assim somou seu quarto gol, aos 30 minutos: 5-2 no marcador. O vexame xeneize foi diminuído aos 39, com Ricardo Gareca, ainda juvenil que nem imaginava ser técnico do Palmeiras em 2014, aparecendo livre pela esquerda para tocar na saída do goleiro.
O Argentinos Jrs encerrou a fase inicial como líder de seu grupo. Porém, terminou desfalcado no primeiro mata-mata: sem Maradona, servindo a seleção em amistosos preparatórios ao Mundialito do Uruguai, mostrou-se incapaz de superar o obscuro Racing de Córdoba, que viria a ser a grande surpresa do certame – terminaria vice-campeão. Chegava ao fim a era Maradona em La Paternal. Em 20 de fevereiro de 1981, fazia seu último ato: em reencontro com o Boca, vestiu as duas camisas no amistoso que marcou a passagem à nova equipe.
O empréstimo, esportivamente, seria um sucesso ao Boca, rendendo o primeiro título boquense desde 1976 (Gatti, aliás, acabou não sendo o titular na campanha em virtude de lesão) enquanto o ex-clube do astro despencou, quase sendo rebaixado. Mas, financeiramente, foi pior aos auriazuis: negociado em dólares, a manutenção de Maradona ficou insustentável com as desventuras econômicas da ditadura provocando alta de 240% da moeda ianque em relação ao peso – o Boca sofreria as consequências pelo resto da década, quase fechando as portas em 1984 (veja aqui). E os dois oponentes de 35 anos atrás acabaram ambos de uma vez sem El Diez, comprado pelo Barcelona pouco antes da Copa de 1982.
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