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Há 35 anos, o Racing enfim deixava a segunda divisão

“Com a história que tem esse clube, era terrível ter que ir jogar em Campana sabendo que na tribuna havia torcedores que haviam ido a Glasgow” é a frase que resume bem a agonia do Racing entre 1983 e 1985. O autor sabia do que falava: torcedor fanático, nascido no meio de uma família racinguista, o ex-zagueiro Gustavo Costas, protagonista da imagem acima, é o profissional que mais vezes jogou pelo time. Na infância, havia sido mascote do elenco vencedor de tudo nos anos 60, incluindo o primeiro título mundial do futebol argentino, o levantado pelo Racing sobre o Celtic (daí a referência a Glasgow) em 1967. Na carreira, restou-lhe viver aquele período negro, cujo pior momento enfim era deixado para trás há exatos 35 anos.

Em outra entrevista, o “especialista” Gustavo Costas lembrou do rebaixamento: “duríssimo, com muita angústia, porque não podia jogar. Havia torcido o tendão no começo do campeonato e só pude voltar no segundo turno da série B. No dia em que caímos, contra o Racing de Córdoba, estava na plateia, com um gesso que ia desde o dedo do pé até a cintura, me lembro desse dia como se fosse hoje: se armou uma batalha contra a polícia e não podia me mexer, terrível”. Essas palavras foram dadas em 2013, pouco após o rival, trinta anos depois da Academia, também cair. O título da entrevista foi inclusive “claro que desfrutei o rebaixamento do Independiente”. Paixão de quem, mesmo credor do Racing, toparia em 1998 ser técnico para evitar a extinção do clube.

Dos grandes que já caíram, só o Racing não conseguiu retornar de imediato. A própria queda fora das mais cruéis: como mencionado na declaração acima, o rebaixamento deu-se diante de uma “imitação”, o Racing de Córdoba. Como se não bastasse, na rodada seguinte, os rebaixados tiveram de enfrentar fora de casa justo o rival Independiente. Como desgraça pouca é bobagem, o rival conseguiu ser campeão vencendo aquele clássico. E como tudo pode ficar pior, graças à aquele título o Independiente se classificou à Libertadores de 1984, a qual venceria. E venceria também o Mundial…

Pavón, Longo, Horacio Cordero, Wirtz, Gustavo Costas e Sicher; Héctor Fernández, Colombatti, Ortiz, Orte e Walter Fernández

Enquanto o Independiente levantava o mundo, o Racing amargava a eliminação na segundona de 1984. O campeão foi o surpreendente Deportivo Español. A Academia foi vice, mas o regulamento da época não lhe premiava com acesso automático: a outra seria disputada em um mata-mata a reunir os clubes logo abaixo do campeão. O gigante de Avellaneda foi avançando passo a passo, mas caiu justo na final do minitorneio, contra o Gimnasia LP – embate que rendeu uma curiosa briga entre o casal Kirchner, com o inconformado racinguista Néstor não conseguindo levar na esportiva com a gimnasista Cristina.

Apesar do acesso em 1985, a trajetória foi das mais intranquilas, mesmo desconsiderando-se o contexto de sofrimento peculiar do clube – o que incluiu a perda, em 24 de maio, do último ídolo remanescente do heptacampeonato argentino seguido nos anos 10, fase que criara o apelido de Academia à equipe: Natalio Perinetti, que recusara até o Real Madrid, foi à Copa de 1930 e segue sendo o recordista de partidas no geral até hoje nas estatísticas racinguistas (por ter sido do período amador, seu recorde normalmente é atribuído a Costas). Foram quatro técnicos no ano e uma campanha ainda mais irregular que a de 1984, com dez derrotas em 42 jogos e muitos empates em casa – um deles, em uma estreia nada auspiciosa, em um 0-0 com o All Boys.

Os blanquicelestes até ensaiaram nas primeiras rodadas um título arrasador, emendando um 3-1 fora de casa no Los Andes, um 3-1 no Talleres de Remedios de Escalada, um 0-0 fora de casa com o El Porvenir e um 4-1 no Villa Dálmine. Veio então a derrota de 2-1 para o Tigre e um 1-1 em casa com o Rosario Central, o outro figurão daquela segundona – os canallas haviam caído no ano anterior. O Racing não chegou a entrar em uma maré de resultados ruins, batendo em seguida por 2-1 o Sarmiento fora de casa.

Cenas do jogo contra o Atlanta e a El Gráfico pós-acesso retratando o protagonista da noite, o talismã Sicher

Mas ficou nisso: alternava pontos perdidos (a partida seguinte, por exemplo, foi um 0-0 com o Almirante Brown em plena Avellaneda) com vitórias (o jogo subsequente, por sua vez, foi um 1-0 fora de casa contra o Defensores de Belgrano). A frase que abriu esta nota referiu-se ao dia onde perdeu-se de 3-1 para o Villa Dálmine. Até a oitava rodada, aquele campeonato estava bastante equilibrado, com apenas dois pontos separando dez equipes. Mas o Central começou a sobressair-se, vencendo doze dos treze jogos seguintes – curiosamente, o técnico centralista era Pedro Marchetta, ex-jogador do Racing no início dos anos 60 e declarado torcedor de La Acadé.

Dentre os jogadores daquele Central haviam até dois remanescentes do título rosarino anterior na elite, em 1980 – conquistado, por sinal, justamente sobre o Racing de Córdoba: Juan Carlos Ghielmetti e Omar Palma, talvez o maior ídolo auriazul (El Negro Palma estaria também na vitoriosa Copa Conmebol de 1995, sobre o Atlético Mineiro). Eles garantiram tranquilamente o acesso, fechando o torneio com onze pontos à frente do segundo colocado em uma época na qual a vitória valia só 2 e não 3 pontos. O Central iria além, sendo campeão também da elite na temporada seguinte, em um raríssimo bicampeonato do tipo festejado em especial por fazer de vice o rival Newell’s.

Já o Racing capengava; começou o torneio treinado pelo ex-goleiro Agustín Cejas, ídolo remanescente dos bons tempos de 1967. Foi sucedido pelo folclórico Cayetano Rodríguez, mais (mal) lembrado pela torcida como um pardal que escalava o volante Hugo Lamadrid como centroavante. Juan Carlos Giménez, amparado como antigo lateral-direito do Racing tricampeão seguido da elite argentina em 1951, foi o sucessor. Mas tampouco Giménez permaneceu até o fim: às vésperas do fim da fase regular, o técnico passou a ser o xerife do timaço de 1967: Alfio Basile, de bons trabalhos na dupla Instituto e o Racing de Córdoba, time com o qual chegara ao vice-campeonato nacional em 1980.

A volta olímpica: destaque ao fair play dos derrotados do Atlanta, que aplaudem a Academia

Nessa dança de cadeiras, nem mesmo em segundo a Academia ficou: na última rodada, perdeu em casa para o Nueva Chicago e foi ultrapassada em um ponto pelo San Miguel. Os jogos daquele octogonal foram travados em campos neutros, em jogos de ida e volta. O Racing primeiro ganhou do Banfield por 3-1 em La Bombonera, mas perdeu pelo mesmo placar no estádio do Vélez. Não chegou a haver pênaltis; a melhor campanha na temporada regular deu diretamente a vaga na semifinal aos alvicelestes. Nela, em duas pelejas no Monumental de Núñez, tiveram mais tranquilidade, com um 3-1 e um 2-0 sobre o Quilmes.

O Monumental também seria o palco das duas finais. Foram travadas contra o tradicional Atlanta, recém-rebaixado de 1984 e que nunca mais esteve tão perto de retornar à elite – até hoje, a equipe do bairro de Villa Crespo não retornou à primeira divisão, jazendo atualmente na terceira. A princípio, os de Avellaneda ficaram tranquilos: sapecaram um 4-0 na primeira partida, com dois de Walter Fernández, um de Miguel Ángel Colombatti e outro de Daniel Pavón. Mas como o sofrimento tem que fazer parte, soube-se nos vestiários sobre uma mudança no regulamento: a diferença de gols não seria mais levada em conta.

“Foi algo insólito. mas nós estávamos tão concentrados que nos mentalizamos que era preciso sair para jogar como se estivéssemos no 0-0. Foi um grande balde de água fria”, relembrou na ocasião desses 35 anos outro membro daquela equipe, que acabaria beneficiado pelo que parecia ser a mais recente de tantas maldições que se impregnavam no Cilindro. Seu filho nasceu naquela semana e ele encarou-o como um talismã. Trata-se do lateral Néstor Sicher. A apreensão só durou mais seis dias. A segunda final com o Atlanta seguia no 0-0. Aos 18 minutos, aquele obscuro lateral emprestado pelo Lanús fez um golaço: recebeu um bate-rebate de um escanteio, ajeitou a bola com dois toques e soltou uma bomba de fora da área com a canhota para colocar o Racing na frente.

Costas, Severiano Pavón, Horacio Cordero e o técnico Basile (que, permanecendo no Racing até 1989, acabaria assumindo a seleção após a Copa de 1990) festejam o natal atrasado em 1985: missão cumprida

O tal Sicher, naquela mesma nota, declararia também que “o Racing contratou jogadores do [ambiente] do ascenso, e isso foi um acerto. Contra o Racing, todos jogaram como se fosse a última vez” e elogiou também o trabalho formador de Cejas, lamentando a falta de paciência com o ex-goleiro diante da demora dos resultados – ao mesmo tempo em que elogiou a capacidade de Basile em “simplificar” tudo para a reta final. Voltando à partida, Héber Bueno empataria no início do segundo tempo. Mas não saiu-se do 1-1. O Racing, brindando atrasado ao natal, voltava a ser de primeira. Também era um presente à memória daquele ídolo Perinetti, que se ainda vivesse completaria 85 anos justamente no dia seguinte.

Nem tudo eram flores: enquanto a segunda divisão de 1985 foi disputada ao longo daquele ano, a primeira começou a adotar um calendário europeu, travando a temporada de 1985-86. Isso significaria que La Acadé não teria jogos oficiais (e com isso, renda) até o segundo semestre de 1986, quando começaria a temporada de 1986-87. Os jogadores não receberam o bicho prometido pelo acesso e a solução foi manterem a forma e gerarem receita própria defendendo provisoriamente o Argentino de Mendoza no torneio regional daquela província no primeiro semestre de 1986. Foram um fiasco.

Costas, já no ano de 1987, valorizaria até aquela experiência como uma última prova de fogo a moldar a mentalidade da espinha-dorsal que colocaria o Racing nas cabeças no restante da década. Ele, o técnico Basile, o volante Lamadrid e a dupla de ataque Miguel Ángel Colombatti e Walter Fernández estavam na volta olímpica de 35 anos atrás, semente do time que com todos esses nomes ergueria em 1988 a Supercopa – Colombatti e Fernández, inclusive, marcaram nas finais contra o Cruzeiro; ela foi o único troféu oficial da Academia entre o êxtase mundial de 1967 e o alívio vivenciado em outro 27 de dezembro, já no ano de 2001. Outras histórias, já detalhadas em outros Especiais (clique nas frases em destaque), que fazem a recente crise pós-eliminação na Libertadores apenas um pequeno desconforto no mar historicamente revolto do Cilindro…

O talismã Sicher, curiosamente, não aparece na foto a reunir o grosso da delegação. Da comissão técnica, destaque ao preparador físico Santella (campeão mundial com Bianchi no Vélez e no Boca) e ao assistente Babington, ex-colega de Basile como jogador do Huracán e depois técnico campeão nesse clube na segunda divisão de 1990 e 2000

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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