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Há 25 anos, Maradona incendiava Rosario: estreia no Newell’s, com direito a golaço

Comemorando o golaço na estreia. Infelizmente, também seu único pelo Newell’s

Há 25 anos, Maradona se tornava parte da religião para meia Rosario. Ou, segundo declaração dele em 2013, para “75%” de Rosario. No time que revelou Batistuta e pelo qual bate o coração de Messi, Dieguito estreava: o Newell’s Old Boys, que ainda tinha fresco o melhor período de sua história, compreendido entre 1988 e 1992, anos de duas finais de Libertadores dos rubronegros.

“Parte da religião”? Um livro do Clarín sobre o centenário do clube foi mesmo nesse sentido: “a ressurreição havia começado. Sim, porque aos seus 33 anos, talvez por um vício bíblico, todos o davam como morto”, uma alusão ao filho de José e Maria que curava até lepra. Foi justamente essa a resposta que dera a parcela do arquirrival Rosario Central que conseguiu reagir com humor: “Salvemos Maradona, a Lepra se cura…”. Aos que não sabem, Lepra é o apelido da equipe rubronegra.

E a origem do apelido veio, de certa forma, em razão do Central: no início do século XX, pediu-se aos dois arquirrivais que disputassem amistoso beneficente em prol dos que possuíam a doença. O Newell’s aceitou, e o rival, não. Daí surgiu o apelido centralista: os auriazuis foram tachados de “canalhas” pelo “co-irmão”, no que responderam rotulando-o de “leproso”. Como comum na Argentina, os xingamentos foram assumidos orgulhosamente pelos próprios alvos como identidade. Hoje, a própria palavra canalla, em Rosario, remete primordialmente ao torcedor do Central, e não a pessoa vil.

Maradona estava decadente. Em 1991, um antidoping escancarou-o como usuário de cocaína, ocasionando-lhe suspensão de um ano e meio. Escorraçado do Napoli, ao fim da punição acertou com o Sevilla para a temporada 1992-93. Lá, trabalhava um de seus fiéis escudeiros, o técnico Carlos Bilardo. Maradona foi no máximo razoável. E razoável para um jogador comum, não para o nível fora-de-série ao qual deixava acostumado a todos.

Magro, entrando em campo com as filhas e junto de Scoponi e Tata Martino, os dois jogadores com mais partidas e títulos pelo Newell’s

O técnico da seleção, Alfio Basile, chamou-o de volta à seleção no início do ano de 1993, para jogos contra o Brasil pelo troféu amistoso do centenário da AFA; e contra a Dinamarca – pela Taça Artemio Franchi, extinto tira-teima entre o campeão da Copa América e o da Eurocopa. A Argentina venceu os escandinavos, no que seria a última taça da carreira de Maradona. Sem demonstrar nada de especial, porém, Dieguito foi esquecido na convocação de nova Copa América, em julho. Àquela altura, no fim do mês anterior, o craque antecipou-se à sua demissão do Sevilla, usando como desculpa ter descoberto que era monitorado por detetives contratados pelo clube.

Em 4 de julho, Armando Nogueira refletia em sua coluna no Jornal do Brasil sobre a aposentadoria do argentino. Era essa, de fato, a expectativa. Em paralelo, a seleção mostrava saber se virar muito bem sem seu velho astro; campeã sem ele na Copa América de 1991 e da Copa das Confederações de 1992, novamente venceu o troféu continental sem precisar de Diego. Reunia, inclusive, um recorde de invencibilidade para a época, 31 jogos (ou 33, se fossem consideradas duas partidas em 1991, uma contra o Resto do Mundo e outra contra o Resto da América), nas quais Maradona só se fizera presente naquelas duas acima referidas. Nada que limasse a adoração nacional. Inclusive porque poucos argentinos com menos de 16 anos na época puderam conscientemente ver-lhe no futebol nacional.

Sem clube, Maradona foi inicialmente sondado pelo San Lorenzo e pela sua primeira casa, o Argentinos Jrs. O craque fazia sua parte, emagrecendo dez quilos até o fim de agosto, embora sofresse no mesmo período mais um baque às possíveis pretensões que ele teria de ir à Copa: seu pedido de visto ianque foi negado. Mas no início de setembro veio uma primeira reviravolta: a Argentina, com Maradona nas arquibancadas do Monumental, levou de 5-0 da Colômbia em Buenos Aires, em 5 de setembro. Além da humilhação por si só, o resultado obrigava a Albiceleste a se sujeitar a uma repescagem para ir ao mundial.

Maradona sequer havia se arranjado, mas sua volta já era admitida pelo técnico Basile; na verdade, tal apelo já era noticiado antes mesmo da goleada, com o Jornal do Brasil destacando o pedido da torcida vizinha já após um 0-0 com o Paraguai. Quatro dias depois do vexame com os colombianos, a surra já não repercutia tanto na mídia esportiva argentina. E sim que El Diez acertara com o Newell’s. De fato, pelo contexto da época parecia não haver equipe melhor para somar-se ao craque. A Lepra vivia simplesmente seu auge histórico.

Instantes antes da estreia, no amistoso contra o Emelc

Até 1987, o clube rosarino estava em larga desvantagem em relação ao rival Central. Tinha um título argentino, em 1974, contra quatro do vizinho – o último, naquele 1987, tendo a própria Lepra como vice. Foi então que, entre 1988 e 1992, os rubronegros não só se igualaram aos quatro títulos como chegaram ainda a duas finais de Libertadores, revelando o técnico Marcelo Bielsa: dedicamos já quatro especiais a cada etapa desta era (aqui, aquiaqui e aqui). Ainda assim, o acerto com Maradona não foi bem aceito fora dali. Ele chegou a sofrer diversas ameaças telefônicas, não só da torcida rival como também de fanáticos do Argentinos Jrs, que viam-lhe como traidor. Isso repercutiu até no diário Mundo Deportivo, de Barcelona.

Assim, entre a contratação naquele 9 de setembro e a estreia, passou-se cerca de um mês. Em 6 de outubro, o Newell’s estreou no Apertura 1993, perdendo de 3-1 fora de casa para o Deportivo Mandiyú. A derrota foi logo esquecida: no dia seguinte, o Coloso del Parque recebeu o Emelec para o amistoso de apresentação do reforço dos rosarinos – Messi, inclusive, estava presente nas arquibancadas, embora pouco se recorde do jogo em si. Sendo um amistoso, o resultado talvez fosse irrelevante. Mas não foi. Maradona, longe do peso extra no Sevilla, estava magro, em forma como um garoto em início de carreira. E o Ñuls venceu por 1-0, gol dele. Na realidade, um golaço de fora da área. E, raridade: de perna direita (veja no vídeo ao fim)!

O grande problema é que ficaria naquilo mesmo.

Sua estreia oficial, no campeonato argentino, foi marcada para uma data “cabalística”: para El Diez, o dia 10 do mês 10. Em 10 de outubro, o Newell’s visitou o Independiente. Diego não deixou de expor seus dribles e lançamentos plásticos e nem de mostrar vontade. Colocou ao menos duas vezes os colegas na cara do gol e teve ele próprio dois arremates bem salvos pelo goleiro – notadamente, um de rabona, como os argentinos chamam o toque de letra: pelo flanco direito, era a única maneira que tinha para chutar com a perna boa, a canhota. Mas o goleiro, Luis Islas, que era da seleção, apareceu como estraga-prazeres e neutralizou aquela tentativa e outras também.

A letra que Islas impediu de entrar. Talvez o lance mais famoso de Maradona como leproso

No primeiro tempo, 0-0 contra o Rojo, que mesmo em casa jogou de camisa branca. Mas logo aos 45 segundos do segundo tempo, Carlos Alfaro Moreno começou seu show, desviando um cruzamento para matar no contrapé o goleiro rojinegro Norberto Scoponi. Scoponi já vinha sendo convocado à seleção e iria mesmo à Copa de 1994 como terceiro goleiro, mas cometeu duas falhas-relâmpago aos 27 e aos 32 minutos. Na primeira, simplesmente estava avançado até o meio-campo e deixou o gol vazio para um cruzamento longo achar novamente a cabeça iluminada de Alfaro Moreno. No outro, Alfaro Moreno cabeceou na marca do pênalti uma bola defensável se o goleiro saltasse melhor.

Maradona teve de se contentar em registar uma assistência, habilitando aos 38 o galope do paraguaio Carlos Morales, que se mostrou mais veloz que a marcação para fuzilar Islas. Apesar do revés, o desempenho relativamente satisfatório do veterano astro convenceu Alfio Basile: o jogo seguinte de Maradona não seria pelo Newell’s, mas já pela seleção. Até porque os rubronegros só voltariam a campo no dia 30, mas Diego estava ocupado com a Albiceleste, que no dia 31 enfrentaria em Sydney a Austrália pela repescagem mundial.

O carimbo para a Copa veio após um 1-1 lá e um 1-0 no Monumental, já em 17 de novembro. Diego voltou à Lepra no dia 21. Aí começaram os problemas: derrota em Córdoba para o Belgrano, bem forçado com dois ex-colegas de Diego nas Copas de 1986 (o zagueiro José Luis Cuciuffo) e 1990 (o goleiro Fabián Cancelarich). No velho Chateau Carreas, o atual estádio Mario Kempes, os cordobeses se impuseram largamente mesmo com um 1-0 mentiroso, pois ainda tiveram duas tentativas salvas pelo travessão. Por outro lado, Maradona sofreu um pênalti não assinalado pela arbitragem, mas tempos depois assumido pelo infrator Claudio Rivadero…

No dia 24, empate sem gols em casa contra o Gimnasia LP onde nem Diego impediu noite pobre dos dois times, mais satisfeitos em anular um ao outro do que em propor jogadas. No dia 28, recebeu emotiva recepção na Bombonera para o jogo contra seu amado Boca, cumprimentando efusivamente o treinador oponente, ninguém menos que César Menotti. Movimentação não faltou, mas suas jogadas foram bem neutralizadas por marcação atenta, frequentemente dupla – mas quem levou cartão amarelo foi o próprio Dieguito. Que perdeu por 2-0…

Maradona enfrentando o Boca. O técnico adversário era Menotti. Foi bem recebido, mas perdeu de 2-0

Já haviam se passado quatro jogos do Newell’s com Maradona pelo campeonato e o time não conseguira vencer. Em 2 de dezembro, parecia que a escrita terminaria. Fora de casa, ia ganhando do Huracán – Maradona cobrou um escanteio mal afastado pelo goleiro adversário e na sobra El Chino Rodolfo Aquino imediatamente usou um potente cabeceio que ainda desviou em um oponente. Mas ainda aos 35 minutos de jogo Dieguito pediu substituição ao sentir uma contratura muscular em um pique. E o jogo ficou no 1-1, alcançado pelo time da casa já no segundo tempo.

Os resultados ruins provocaram a demissão do técnico Jorge Solari, que vinha permitindo algumas folgas a Diego. O sucessor, Jorge Castelli, se mostrou mais rígido. E Maradona não foi o único atingido: o goleiro Norberto Scoponi e os volantes Juan José Llop e Gerardo Martino, nada menos que os três que mais jogaram e mais vezes foram campeões pelo clube, deixaram-o em 1994. Maradona, cujo contrato o obrigara a estar em 80% dos jogos do clube, se antecipou: seu retorno, em 26 de janeiro de 1994, foi também seu último jogo. Foi um amistoso em Rosario contra o Vasco da Gama, a marcar a estreia cruzmaltina de Ricardo Rocha, ele próprio futuro jogador do Newell’s.

Diego jogou 72 minutos (“2 a mais do que me havia obrigado a televisão por um contrato com o clube e saí”, segundo ele mesmo), deixando o gramado revoltado por sentir-se caçado pelos brasileiros em partida meramente amistosa, embora chegasse a parabenizar o desempenho do craque oponente Dener. Faltou nos seis dias seguintes aos treinamentos – e a um segundo amistoso agendado com os vascaínos, em Mar del Plata. No sétimo dia de ausência, 2 de fevereiro, teve o contrato rescindido.

As polêmicas não diminuíram: um dia depois da rescisão, em 3 de fevereiro, ele e amigos simplesmente alvejaram com tiros de ar comprimido jornalistas de plantão na porta de sua casa. Mesmo “clubisticamente” inativo no primeiro semestre, Maradona acabou indo à Copa, com a AFA ainda considerando-o como jogador do Newell’s. Diego jogou oficialmente nove vezes pela Argentina como leproso, mais do que pela própria Lepra!

Contra o vascaíno Pimentel, na última partida pelo Newell’s, e em aparições posteriores com a camisa leprosa, em 2004 (logo antes de passar mal), 2009 e no vídeo de 2013

Assim, esportivamente sua passagem pela camisa Sangre y Luto foi um fiasco. O saudoso Roberto Fontanarrosa, cronista célebre na Argentina e famoso torcedor do arquirrival Rosario Central, metaforizou assim: “o do Maradona em sua enunciação pareceu que ia ser muito grave. E depois quase resultou numa gozação ao contrário. É como se o mais insuportável dos teus vizinhos comprasse um Rolls Royce. Te matou. E depois não o pode tirar da garagem”, declarou em uma mesma entrevista em que destacou que a assinatura do contrato havia sido a única ocasião além da declaração de guerra das Malvinas em que sua esposa se permitiu em lhe acordar fora do horário habitual.

Mas a passagem maradoniana no Parque Independencia segue relevante para fins marqueteiros: quem vos escreve descobriu a existência do Ñuls em 1999, ao ler aos dez anos de idade texto sobre a trajetória a carreira de Diego. O Newell’s também tem importância nas estatísticas dos gols da lenda: após um ano sem jogar, para tratar-se contra as drogas na temporada 1996-97, Maradona regressou pela última vez no futebol em amistoso contra o ex-clube em 10 de julho de 1997, marcando de falta. Semanas depois, em reencontro contra os rubronegros, marcou seu último gol, de pênalti, em 14 de setembro de 1997, na mesma partida que marcou a estreia e o primeiro gol do ídolo boquense Guillermo Barros Schelotto. O goleiro vazado foi justamente um célebre pegador de penais, Sergio Goycochea.

O fraco desempenho nos gramados também não impediu Diego de ser ídolo para a torcida, que o vê como troféu simbólico. Ausente das festas do centenário, em 2003, ele retornou ao estádio em 10 de abril de 2004 para vestir com atraso a camisa dos cem anos do ex-clube. Foi ovacionado e ainda viu a equipe vencer por 5-2 o Gimnasia. “Tomara que os outros clubes em que joguei a gente e os dirigentes me recordem como fazem os do Newell’s. Para minha carreira, foi muito importante essa etapa em Rosario porque me permitiu voltar ao futebol argentino e entrar ao plantel da seleção quando muitos me davam como morto”, afirmou emocionado. E ele quase morreu mesmo: uma semana depois, passou mal após ver Boca-Nueva Chicago na Bombonera, chegando a cair no coma e necessitar de aparelhos para respirar.

Recuperado, foi tratar-se em Cuba. Quando voltou no fim daquele ano à Argentina, para passar as festas de fim de ano com a família, torcedores do Newell’s brincaram que na verdade ele voltara para comemorar o título recém-conquistado do Apertura 2004. Maradona demonstrou outras vezes seu carinho pelo ex-clube, como no vídeo alusivo aos 20 anos de sua vinda, em 2013: “Sou, fui e sempre serei leproso como 75% da cidade de Rosario. (…) Me chamo Diego Armando Maradona e sou Newell’s”.

A idolatria do Newell’s a Maradona é atestada também por provocação do rival Rosario Central: “teu ídolo usou minha camiseta” – na realidade, a imagem é uma montagem, pois na foto real Diego usava a do Talleres de Córdoba

https://twitter.com/Jorge_Canob/status/922947911922737152

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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