Há cerca de dois anos, retratamos a ascensão da fase mais brilhante do São Paulo até então, quando o Tricolor ganhou nos pênaltis sua primeira Libertadores, sobre o Newell’s do então volante Gerardo Tata Martino e do jovem técnico Marcelo Bielsa: leia aqui. Esse período glorioso dos comandados de Telê Santana se encerrou com roteiro parecido há exatos 20 anos: perdeu fora de 1-0, devolveu o placar em casa e foi aos penais, frente a um clube argentino que lutava para sair do médio porte: dessa vez o Vélez Sarsfield, que dava a largada para aos seus anos mais felizes.
O Vélez, se hoje é tão prestigiado, na época era um clube de só dois títulos argentinos (mesma quantidade do rival Ferro Carril Oeste, hoje sumido) em vez dos dez atuais e que acabava de sair de fila de 25 anos. Seu primeiro título argentino foi em 1968, com Carlos Bianchi sendo uma jovem promessa a atacante. O Fortín seguiu forte até o início dos anos 70, mas as taças não vieram mais. Passou a entrar na contramão de sua tradicional receita, que era aproveitar os jogadores da base, algo natural para um clube de apelo popular (e de sócios) restrito basicamente a seu bairro de Liniers e arredores.
Nos anos 80, o Vélez buscou voltar às cabeças contratando medalhões: Omar Larrosa, Daniel Killer, Norberto Alonso, todos campeões da Copa 1978, não tiveram êxito, assim como outros que, embora não tenham jogado a Copa, fizeram parte da seleção pouco antes do mundial (casos dos defensores Osvaldo Piazza e Vicente Pernía, pai do ex-seleção espanhola Mariano Pernía). Na virada para os anos 90, essas tentativas prosseguiram, com outro campeão de 1978, o goleiro Fillol, vindo se aposentar em Liniers.
Oscar Ruggeri, campeão em 1986, veio também, assim como o atual técnico palmeirense, Ricardo Gareca (torcedor velezano mas cujos triunfos só lhe viriam no clube já como treinador. Na época, era um astro ex-Boca, River e seleção) e o homem que fizera os gols decisivos para o River vencer em 1986 sua primeira Libertadores, Juan Funes. Bianchi regressou como técnico no início de 1993, exatamente pouco após as saídas de Gareca e Ruggeri – Funes falecera em 1991. O treinador recebeu um mimo raro para a época: um contrato de 3 anos que lhe deu tranquilidade para retomar a fórmula original em aproveitar as revelações das categorias inferiores misturadas com compras baratas.
“Quando entrei em contato com a gente do Vélez, o primeiro que lhes disse é que minha inquietude era poder trabalhar a longo prazo com um projeto que emoldure o seguimento do jogador desde as divisões inferiores. Porque, por exemplo, um marcador de ponta ou certos postos, o clube os tem que formar e não sair a busca-los afora. O Vélez tem divisões inferiores muito boas e não tem que investir somas de dinheiro nestes postos”, afirmou Bianchi em declaração que já havíamos reproduzido, no Especial que retratou o título do Clausura 1993 (clique aqui). Os frutos se colhiam logo na primeira temporada sob El Virrey, posteriormente conhecido como Mr. Libertadores.
Dos treze que entraram em campo no Morumbi há duas décadas, só quatro não se iniciaram na base velezana: nenhum campeão de Libertadores usou tantos pratas-da-casa no jogo do título. Nove, que viram dez se considerarmos o técnico. As exceções eram o lateral Roberto Trotta, ex-Estudiantes e o zagueiro Flavio Zandoná, ex-San Lorenzo, nomes baratos, e outros com mais renome, mas em baixa: o volante José Basualdo havia ido à Copa 1990 e chegou após passagem não muito frutífera no Racing. Em Liniers, foi exatamente com Bianchi que El Pepe deixou de cumprir obrigações só defensivas e ganhou liberdade para se distribuir mais. Acabaria voltando à seleção e indo à Copa 1994.
O outro era o jogador mais decisivo da história do Vélez. Bianchi não tinha o que fazer em relação ao titular entre as traves: “não me perguntes o nome dos outros 4, porque não os sei, mas estou certo de que hoje Chilavert está entre os 5 melhores do mundo”. O goleirão paraguaio havia feito sucesso no San Lorenzo e fora adquirido do Real Zaragoza, que o reprimira: Chila, que adorava tentar seus gols, fora proibido de chutar penalidades após comemorar demais um gol seu e, no reinício da partida, sofrer um do meio de campo por conta das metas ainda estarem sem ele de volta. Após ser o herói principal naquela Libertadores, enfim pôde marcar seu primeiro gol de falta pelo Vélez em outubro.
“Esse vestiário era terrível, todos vencedores. (…) Havia muito temperamento, muita raça, por isso é mais meritório ainda o careca, que havia que manejar esses leões”, declarou sobre Bianchi o corpulento atacante Omar Asad, outro homem decisivo: foi quem fez o gol da vitória sobre o São Paulo no jogo de ida. Contra o descrédito geral, havia mesmo muita confiança entre o plantel, que, paralelamente, no Clausura 1994, terminou em antepenúltimo justamente pelo enfoque dado à Libertadores.
Em um grupo duríssimo com Boca, o grande Palmeiras da época e o Cruzeiro, aquele elenco prata-da-casa, apesar de começar empatando em Liniers com o Boca, demonstrou força desde o início e se classificou por antecipação. Já no segundo jogo, o mesmo Asad se destacaria, trazendo um 1-1 no Mineirão após o jovem Ronaldo Fenômeno abrir o placar no 1º minuto. El Turco também marcaria nos três jogos seguintes: 1-0 no Palmeiras em casa, 2-1 no Boca na Bombonera (vitória heróica, onde o Vélez jogava desde os quinze minutos com um a menos e venceu no último minuto com gol de José Basualdo, depois importante no próprio Boca de Bianchi) e 2-0 no Cruzeiro em casa, com Trotta marcando o outro. Já classificado, o clube mandou reservas perderem de 4-0 para o Palmeiras.
Mas Libertadores só começa nas oitavas, como ensinou o profeta Riquelme. E ali Chilavert começou a brilhar. O líder do grupo da morte teve vida mais complicada do que poderia supor contra o Defensor, com quem empatara em Montevidéu por 1-1 (gol do zagueiro Héctor Almandoz). Os uruguaios endureceram em Liniers e mantiveram o 0-0, resultado que hoje lhes desclassificaria mas que na época forçou decisão por pênaltis. Esteban González, artilheiro do título de 1993, perdeu sua cobrança e sairia de cena do Vélez, mas Chila compensou pegando as de Almada e Dos Santos. A vida foi mais fácil contra o Minervén: 0-0 na Venezuela e 2-0 em casa, gols de Asad e sua dupla de ataque, o também tanque José Turu Flores, hoje técnico velezano e rara combinação de habilidade e potência.
O grande teste veio mesmo na semifinal. Os colombianos tinham uma geração de ouro na década (o Atlético Nacional seria o vice para o Grêmio na Libertadores 1995; o América de Cali, para o River na de 1996 e o Deportivo Cali, para o Palmeiras em 1999) e seu principal expoente, Carlos Valderrama, estava naquele Atlético Junior. Em Barranquilla, o oponente venceu por 2-1, com Turu Flores descontando os dois gols de Iván Valenciano, que voltaria a assombrar na Argentina: fez o gol cafetero após o talentoso volante Christian Bassedas e novamente Flores terem aberto 2-0. O novo 2-1, agora para os argentinos, forçou nova disputa por pênaltis, onde os fortineros iam decisivamente se aprimorando. Mas não sem enorme susto, outra vez. Em uma das noites mais emocionantes já presenciadas no estádio José Amalfitani, o Vélez esteve muito perto da eliminação.
Todos de ambos os times foram convertendo: Trotta, Valenciano, Chilavert, Mendoza, Zandoná, Valderrama, Pompei e Mackenzie. Na quinta e última cobrança da casa na série inicial, o herói Turu Flores teve seu arremate no lado direito espalmado por José Pazo. Se o Junior convertesse, eliminava o Fortín em pleno Liniers. Os vídeos do Youtube (abaixo, um) só mostram os instantes das cobranças e não os 3 minutos de silêncio nas tribunas e apreensão que se passaram entre o erro de Flores e a cobrança colombiana seguinte, com discussões entre Chilavert, o árbitro e o técnico adversário.
httpv://www.youtube.com/watch?v=9rKfCYNzXX8
O paraguaio não se abateu, foi na mesma direção e encaixou a cobrança de Héctor Méndez, explodindo a euforia velezana e forçando às cobranças alternadas. Basualdo, no meio do gol, não comprometeu. A responsabilidade se voltou contra os colombianos e Ronald Valderrama, irmão de Carlos, acertou a trave direita. E o Vélez, que até dois anos antes lutava pelo meio da tabela, estava meteoriamente em uma final de Libertadores. Pela frente, o campeão das duas últimas edições. Mas os fortineros não tomaram conhecimento em Buenos Aires e o oportunista Asad, após falha de André Luiz, infiltrou-se para fuzilar Zetti aos 35 minutos. O 2º tempo foi morno. O São Paulo não jogou bem e se satisfez com a derrota mínima. Os argentinos também se preocuparam mais em manter a vantagem do que ampliá-la, mas foram reconhecidos por Telê Santana: “o Vélez venceu a primeira com todos os méritos. Não podemos repetir os erros do jogo anterior”.
Mas a derrota não arrefeceu os são-paulinos: o Jornal do Brasil não se inibiu em escrever que “se o Independiente, campeão argentino, não é adversário para o São Paulo, calculem o Vélez, penúltimo [sic] colocado. Que venha o Milan”, em alusão ao campeão europeu de 1994. O Morumbi teve uma centena de milhares de espectadores naquele 31 de agosto de 1994. O Vélez, assumidamente, buscava defender-se, e foi muito bem: os tricolores dominaram o jogo ofensivamente, mas não achavam espaço para concluir bem, e a partir de determinado momento a armação de jogadas pelo meio deu lugar ao desespero dos chuveirinhos. Essa postura só fez aumentar após a expulsão de Raúl Cardozo. Segundo Asad, o medo maior não veio quando Müller empatou o placar agregado, de pênalti, e sim nesse cartão vermelho: “nos cagamos quando expulsaram o Pacha e faltavam 30 minutos. Bianchi tirou o Turu e eu tive que correr de um lado para o outro: era uma guerra de empurrões, cotoveladas, pisadas”.
Bianchi também foi expulso e declarou que os minutos seguintes foram os mais longos da sua vida. O 1-0 prevaleceu e os argentinos, bastante confiantes em Chilavert, comemoraram. O São Paulo não sabia, mas passaria uma década tendo de se contentar com algum Estadual ali e um Rio-São Paulo aqui até se reacostumar com a grandeza. Chila pegou “só” um tiro, de Palhinha, logo na primeira tricolor. Mas não precisou de trabalho extra: tarimbados nos pênaltis, dessa vez todos os colegas acertaram: Trotta, o próprio Chilavert, Zandoná, Almandoz até o volante Roberto Pompei, que substituíra Basualdo, acertar a cobrança do título (a bola chegou a bater no travessão antes) e simbolizar bem aquele Vélez de Bianchi: estava emprestado ao sumido Talleres de Escalada quando La V Azulada fora campeã em 1993. Regressara à casa por ordem do Virrey.
Pompei perdera o título nacional mas pôde decidir em favor do clube no momento mais propício possível. Ou não, pois segundo Chilavert haveria mais: “se não fores, perderás ver o Vélez campeão do mundo”, procurou convencer ao jornalista Jorge Guinzburg, torcedor do clube, para ir a Tóquio no fim daquele ano (Guinzburg iria e foi “autorizado” pelos campeões a participar da volta olímpica…). Já sobre aquela noite de vinte anos atrás, o desbocado paraguaio se saiu com esta: “foi épico. O motorista nos levou por onde estava a torcida organizada do São Paulo e nos atiravam de tudo, mas esse time do Vélez podia ter jogado no Vietnã em guerra que sairia campeão”.
httpv://www.youtube.com/watch?v=3KgbyqbkjHI
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