Há exatos vinte anos, Maradona se tornava parte da religião para meia Rosario. Ou, segundo declaração dele nesta semana sobre isso, para “75%” de Rosario. Em um time abençoado: contou não só com ele, mas com o maior artilheiro da seleção, Batistuta. E é por quem bate o coração do maior jogador do planeta, Messi, e seu técnico no Barcelona, Martino. A equipe argentina da moda: o Newell’s.
“Parte da religião”? Um livro do Clarín sobre o centenário do clube foi mesmo nesse sentido: “a ressurreição havia começado. Sim, porque aos seus 33 anos, talvez por um vício bíblico, todos o davam como morto”, uma alusão ao filho de José e Maria que curava até lepra. Foi justamente essa a resposta que dera a parcela do arquirrival Rosario Central que conseguiu reagir com humor: “Salvemos Maradona, a Lepra se cura…”. Aos que não sabem, Lepra é o apelido da equipe rubronegra.
E a origem do apelido veio, de certa forma, em razão do Central: no início do século XX, pediu-se aos dois arquirrivais que disputassem amistoso beneficente em prol dos que possuíam a doença. O Newell’s aceitou, e o rival, não. Daí surgiu o apelido centralista: os auriazuis foram tachados de “canalhas” pelo “co-irmão”, no que responderam rotulando-o de “leproso”. Como comum na Argentina, os xingamentos foram assumidos orgulhosamente pelos próprios alvos como identidade. Hoje, a própria palavra canalla, em Rosario, remete primordialmente ao torcedor do Central, e não a pessoa vil.
Maradona estava decadente. Em 1991, um antidoping escancarou-o como usuário de cocaína, ocasionando-lhe suspensão de um ano e meio. Escorraçado do Napoli, ao fim da punição acertou com o Sevilla para a temporada 1992-93. Lá, trabalhava um de seus fiéis escudeiros, o técnico Carlos Bilardo. Maradona foi no máximo razoável. E razoável para um jogador comum, não para o nível fora-de-série ao qual deixava acostumado a todos. Nada que em um primeiro momento recaísse sobre ele: os dirigentes ofereçam-lhe demitir Bilardo para que Dieguito fosse jogador-técnico. Mas, descobrindo que eles monitoravam sua vida noturna via detetives, saiu do time andaluz.
Na época, o Newell’s ainda respirava seu auge e naturalmente atraiu El Diez. Até 1987, o clube estava em larga desvantagem em relação ao rival. Tinha um título argentino, em 1974, contra quatro do Central. O último, naquele 1987, tendo a própria Lepra como vice. Foi então que, entre 1988 e 1992, os rubronegros não só se igualaram aos quatro títulos como chegaram ainda a duas finais de Libertadores, revelando o técnico Marcelo Bielsa: dedicamos já três especiais a esta era (aqui, aqui e aqui). Em 13 de setembro, a volta de Maradona ao futebol argentino foi então selada, após onze anos. Poucos argentinos com menos de 16 anos puderam conscientemente ver-lhe no futebol nacional.
E a estreia não poderia ter sido mais auspiciosa. Naquele 13 de setembro de 1993, o Newell’s apresentou seu reforço em amistoso contra os equatorianos do Emelec. A ocasião faria, a princípio, que o resultado fosse irrelevante. Até porque Maradona, longe do peso extra no Sevilla, estava magro, em forma como um garoto em início de carreira. Mas não foi. O Ñuls venceu por 1-0, gol de Dieguito. Um golaço de fora da área. E, raridade: de perna direita! O time havia estreado no Apertura 1993 no dia anterior, perdendo por 1-3 para o Deportivo Mandiyú em Corrientes. Derrota logo esquecida.
O grande problema é que ficaria naquilo mesmo.
O jogo seguinte do novo clube, no dia 19, foi nada menos que o clássico rosarino. Ficou no 1-1, sem Maradona – sua estreia oficial, no campeonato argentino, foi marcada para uma data “cabalística”: para El Diez, o dia 10 do mês 10. Em 10 de outubro, o Newell’s recebeu o Independiente. Diego não deixou de expor seus lances plásticos. Ele até quase marcou de rabona, como os argentinos chamam o toque de letra: pelo flanco direito na cara do goleiro, era a única maneira que tinha para chutar com a perna boa, a canhota. Mas o goleiro, Luis Islas, que era da seleção, apareceu como estraga-prazeres e neutralizou aquela tentativa e outras também. E os visitantes venceram por 3-1.
Apesar do revés, a disposição de Maradona convenceu Alfio Basile, o técnico da seleção argentina. Basile, que assumira a Albiceleste após a Copa de 1990, só usara Maradona duas vezes até então. E, mesmo assim, vinha se dando muito bem: a Argentina, depois de mais de 30 anos, voltou a vencer a Copa América. E foi bi seguida: 1991 e 1993, tornando-se na época a maior vencedora do torneio. Ela ganhou ainda a Copa das Confederações de 1992 e alcançou um recorde de 31 jogos seguidos invictos. Só que a boa fase se encerrou nas eliminatórias para a Copa de 1994. Por um triz, a desclassificação não veio – explicamos em especial da semana passada (aqui). A seleção precisou da repescagem.
Maradona havia jogado só uma vez “valendo”; depois daquele 10 de outubro, o clube só voltou a campo pelo Apertura no dia 30, sem seu novo astro: o jogo de ida da repescagem seria no dia 31, em Sydney, contra a Austrália. Com Diego voltando a jogar pela Argentina, o carimbo para a Copa veio após um 1-1 na Oceania e um 1-0 no Monumental de Núñez, em 17 de novembro. Ele voltou à Lepra no dia 21: derrota para o Belgrano em Córdoba. No dia 24, empate sem gols em casa contra o Gimnasia y Esgrima La Plata. No dia 28, recebeu emotiva recepção na Bombonera para o jogo contra seu amado Boca Juniors, que em campo não foi um bom anfitrião: venceu por 2-0…
Já haviam se passado quatro jogos do Newell’s com Maradona pelo campeonato e o time não conseguira vencer. Em 2 de dezembro, parecia que a escrita terminaria. Fora de casa, ia ganhando do Huracán. Mas Maradona teve uma lesão muscular, a primeira em treze anos. E o jogo ficou no 1-1. Os resultados ruins provocaram a demissão do técnico Jorge Solari, que vinha permitindo algumas folgas a Diego. O sucessor, Jorge Castelli, se mostrou mais rígido. E Maradona não foi o único atingido: o goleiro Norberto Scoponi e os volantes Juan José Llop e Gerardo Martino, nada menos que os três que mais jogaram e mais vezes foram campeões pelo clube, deixaram-o em 1994.
Maradona se antecipara: seu retorno, em 26 de janeiro de 1994, foi também seu último jogo, em amistoso contra o Vasco. Jogou 72 minutos (“2 a mais do que me havia obrigado a televisão por um contrato com o clube e saí”, segundo ele mesmo) e chegou a parabenizar o craque oponente Dener após a partida. Faltou nos seis dias seguintes aos treinamentos e no sétimo, 2 de fevereiro, teve o contrato rescindido. As polêmicas não diminuíram: um dia depois, em 3 de fevereiro, ele e amigos simplesmente alvejaram com tiros de ar comprimido jornalistas de plantão na porta de sua casa.
Mesmo inativo em campo no primeiro semestre, acabou indo à Copa, com a AFA ainda considerando-o como jogador do Newell’s. Diego jogou oficialmente nove vezes pela Argentina como leproso, mais do que pela própria Lepra. Esportivamente, sua passagem pela camisa Sangre y Luto foi um fiasco. Mas não deixou de ajudar a divulgar o clube: quem vos escreve descobriu a existência do Ñuls em 1999, ao ler aos dez anos de idade texto sobre a trajetória de Maradona. O Newell’s também tem importância nas estatísticas dos gols maradonianos: o último deles foi sobre os rubronegros, pelo Boca, de pênalti, em 14 de setembro de 1997, na mesma partida que marcou a estreia e o primeiro gol do ídolo boquense Guillermo Barros Schelotto.
A fraca estadia de Maradona no Parque Independencia, de qualquer forma, não o impediu de ser ídolo para a torcida, que o vê como troféu simbólico. Ausente das festas do centenário, em 2003, ele retornou ao estádio em 10 de abril de 2004 para vestir com atraso a camisa dos cem anos do ex-clube. Foi ovacionado e ainda viu a equipe vencer por 5-2 o Gimnasia La Plata. “Tomara que os outros clubes em que joguei a gente e os dirigentes me recordem como fazem os do Newell’s. Para minha carreira, foi muito importante essa etapa em Rosario porque me permitiu voltar ao futebol argentino e entrar ao plantel da seleção quando muitos me davam como morto”, afirmou emocionado. E ele quase morreu mesmo: uma semana depois, passou mal após ver Boca-Nueva Chicago na Bombonera, chegando a cair no coma e necessitar de aparelhos para respirar.
Recuperado, foi tratar-se em Cuba. Quando voltou no fim daquele ano à Argentina, para passar as festas de fim de ano com a família, torcedores do Newell’s brincaram que na verdade ele voltara para comemorar o título recém-conquistado do Apertura 2004. Maradona demonstrou outras vezes seu carinho pelo ex-clube, como na última segunda-feira, em vídeo alusivo aos 20 anos de sua vinda, completados hoje: “Sou, fui e sempre serei leproso como 75% da cidade de Rosario. (…) Me chamo Diego Armando Maradona e sou Newell’s”: veja aqui. Um novo vídeo está prometido para este dia 13…
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