Ter um troféu a mais, especialmente quando é continental, é sempre enriquecedor. E a Recopa Sul-Americana já serviu para apontar, três vezes, os maiores campeões internacionais do mundo, outorgando primeiro ao Independiente (como poderia ter sido se ela já existisse nos anos 70, a exemplo da congênere europeia, a Supercopa?) e depois ao Boca o brilhante trocadilho de Rey de Copas como alcunha. Se os brasileiros dominam o troféu, os argentinos foram quem mais decidiram-no juntos.
A primeira vez completa hoje vinte anos e ocorreu nos tempos mais charmosos da Recopa, quando era disputada no Japão, injetando ares de Mundial Interclubes entre os oponentes: Kobe foi o cenário em 1992, 1994 e 1996 e o icônico Estádio Nacional de Tóquio, palco das velhas Copas Toyotas, sediou as “argentinas” de 1995 e 1997. A competição foi instituída em 1989 e era um tira-teima entre os campeões do ano anterior na Libertadores e na Supercopa Libertadores, criada em 1988.
Naquele 9 de abril de 1995, o belo Independiente de Miguel Ángel Brindisi e Gustavo López, vencedor da Supercopa 1994, enfrentou o super Vélez de Carlos Bianchi e José Luis Chilavert. O choque argentino acabou tendo um árbitro também hermano, Francisco Lamolina. Após três décadas empilhando taças em série pela América e pelo mundo, o Rojo teve naqueles meados dos anos 90 seu canto do cisne em conquistas contínuas: em 1994 vieram Clausura e Supercopa, e em 1995 aquela Recopa e nova Supercopa. Foi com aquele jogo-único ao sol nascente que o Independiente, na época, superou em um título internacional as conquistas do Milan, voltando a ser literalmente o clube mais copeiro do mundo.
Só houve um gol, do zagueiro José Serrizuela, empurrando cruzamento de Claudio Arzeno aos 25 do segundo tempo. Nove minutos depois, outro zagueiro, Pablo Rotchen, evitou com a mão o que seria o empate do Vélez. Lamolina assoprou o apito, mas para marcar falta do velezano Omar Asad em trombada com o goleiro Luis Islas. “Há que aguentar, não gosto de chorar”, resignou-se Carlos Bianchi.
Foi o fim de um ciclo: muitos símbolos daquele Independiente, pela boa fase acumulada e em contraste com resultados ruins no campeonato argentino, saíram. Luis Islas ao Newell’s; os atacantes Sebastián Rambert, à Internazionale (chegou mais badalado que Javier Zanetti, contratado junto ao Banfield na mesma época) e Albeiro Usuriaga, ao Necaxa; e o próprio técnico Brindisi saiu, passando nada menos que ao Racing; por muito pouco não conseguiu o feito único de ser campeão em um mesmo ano pelos rivais de Avellaneda, pois seria pela Academia vice no Apertura – para o Vélez.
O próprio autor do gol, Serrizuela, também iria ao rival, em 1996. Foi com um futebol mais fraco, sobressaindo-se mais o substituto de Islas no gol, o futuro-mais-velho-das-Copas-do-Mundo Faryd Mondragón, que os remanescentes faturariam meses depois o bi da Supercopa, sobre o centenário Flamengo no Maracanã. Enquanto decaíam em 1996, o futebol argentino como um todo ia muito bem. A seleção foi vice nas Olimpíadas e todos os troféus sul-americanos ficaram na Grande Buenos Aires: o River com sua última Libertadores, o Vélez com a Supercopa e o Lanús com a Copa Conmebol.
Vélez e River rivalizavam em taças contínuas também: os de Núñez com Apertura 1993, Apertura 1994, Libertadores 1996, Apertura 1996, Clausura 1997, Supercopa 1997 e Apertura 1997. E os de Liniers com o Clausura 1993, Libertadores 1994, Mundial 1994, Apertura 1995, Clausura 1996 (até hoje o único bi nacional do clube), Supercopa 1996, aquela Recopa em 1997 e o Clausura 1998. Um equilíbrio acirrado que se reproduziu bem na Recopa, com pênaltis decidindo durante e após os 90 minutos.
Um erro do zagueiro millonario Hernán Maisterra praticamente obrigou o goleiro Roberto Bonano a derrubar Patricio Camps aos 29 do primeiro tempo. Bonano foi expulso, e Maisterra, “punido” de outra forma, sendo substituído na hora por Ramón Díaz para que Germán Burgos passasse a defender os arcos do River. Do outro lado, outro goleiro, o ícone Chilavert, abriu o marcador. A taça ia se transferindo aos comandados de Osvaldo Piazza (Bianchi havia ido treinar a Roma em 1996) até os 38 do segundo tempo, quando foi a vez de o River ter direito a um pênalti, convertido pelo ídolo Enzo Francescoli.
Na decisão por pênaltis, Chilavert começou como vilão. Ele, que se recusara a posar com o troféu na véspera para uma sessão de fotos de promoção do evento (“em 1995 fiz isso e perdemos o jogo para o Independiente”, explicou, supersticioso), teve a cobrança defendida por Burgos. Francescoli em seguida converteu. Camps empatou e o goleirão paraguaio na sequência se redimiu com alguma sorte: espalmou o chute de Marcelo Gallardo, com a bola ainda batendo na trave antes de ir para fora.
Fernando Pandolfi colocou o Vélez na frente. Foi então que Roberto Trotta, que anos antes era o capitão e cobrador oficial de tiros livres de La V Azulada (a ponto de ficar irritadíssimo quando Chilavert, autorizado por Bianchi, acertou seu primeiro gol de falta, fazendo com o que o paraguaio só voltasse a tentar apenas em 1996, após a saída do colega ao River: veja aqui), falhou feio. Flavio Zandoná, rasteiro no canto, ampliou. Celso Ayala diminuiu, mas Mauricio Pellegrino confirmou uma nova Copa para o Fortín ao deslocar Burgos. Ainda é o último troféu internacional do Vélez.
O River perderia também a Recopa seguinte, para o Cruzeiro. Com a Supercopa sendo substituída pela Copa Mercosul em 1998, troféu com critérios mais históricos que técnicos, a Recopa deixou de ser disputada. Foi retomada em 2003, passando a opor o campeão anterior da Libertadores com o da nascente Copa Sul-Americana, que a partir de 2002 substituíra a Mercosul.
Uma nova final argentina então veio em 2008. O Boca, inicialmente, não teve trabalho para impor sua camisa frente o nanico Arsenal, ganhando de 3-1 fora (no estádio do Racing) e abrindo o placar na Bombonera em bela triangulação entre Palacio e Lucas Viatri, com Palacio emendando de primeira com um petardo após receber de volta. Mas o Arse se encheu de brios e em espaço de onze minutos, aos 14 e 25 do segundo tempo, virou a partida, com Sebastián Carrera aproveitando saída ruim de Mauricio Caranta; e Mauro Matos desviando de costas com a cabeça bola por entre Caranta e a trave.
A indefinição só se encerrou aos 48 do segundo tempo. E o último troféu internacional do Boca, simbolicamente, foi garantido com um gol de Juan Román Riquelme (cobrando falta). Também reigualou Boca e Milan como maiores campeões internacionais, meses após os rubro-negros passaram à frente em confronto direto no Mundial de Clubes – hoje ambos estão igualados com o Real Madrid.
A última final hermana está mais fresca na memória, ocorrendo em janeiro deste ano. O River, enfim, deu a forra, conseguindo o único título que lhe faltava. Primeiramente, conseguiu sua primeira taça internacional desde aquela Supercopa 1997, ao faturar no ano passado a Sul-Americana. E enfim copou a Recopa, com duas vitórias de 1-0 sobre o San Lorenzo. Clique aqui (ida) e aqui (volta) para acessar nossos relatos sobre essas partidas.
Eis as outras finais com argentinos na Recopa:
1989: Racing, campeão da Supercopa 1988, perdeu para o Nacional, no último troféu internacional do futebol uruguaio. Foi a revanche tricolor pela perda da Libertadores de 1967 para os racinguistas.
1990: Boca, campeão da Supercopa 1989, bateu os colombianos do Atlético Nacional, em Miami.
1996: Independiente, campeão da Supercopa 1995, perdeu para o Grêmio em Kobe, na revanche tricolor pela Libertadores 1984 (Jorge Burruchaga, autor do gol do título daquela Libertadores em pleno Olímpico, estava novamente em campo).
1999: apenas dois anos depois é que os campeões da Libertadores e da Supercopa de 1997 decidiram a Recopa, em dois jogos. O Cruzeiro venceu ambos do River, com um inapelável 3-0 dentro do Monumental.
2003: campeão da primeira Sul-Americana, o San Lorenzo perdeu em Los Angeles para o Olimpia.
2004: novamente nos EUA, dessa vez em Fort Lauderdale, o Boca perdeu nos pênaltis para o surpreendente Cienciano, que já havia batido o River na final da Sul-Americana 2003. Como seria um Superclásico válido por troféu continental?
2005 e 2006: em ambas agora como bi da Sul-Americana, o Boca segurou a vantagem contra o Once Caldas (ganhou de 3-1 na Bombonera e perdeu de 2-1 na Colômbia) na primeira. Na segunda, venceu por 2-1 na Bombonera com dois de Rodrigo Palacio e impunha o mesmo placar no Morumbi, com Palacio e Martín Palermo virando o marcador. Claudio Morel Rodríguez, contra, anotou o 2-2. Com essa taça, o Boca passou na época Real Madrid, Milan e Independiente como Rey de Copas.
2010: a grande LDU do técnico argentino Edgardo Bauza (o mesmo que levou o San Lorenzo à sua primeira Libertadores, ano passado) havia vencido outra vez o Fluminense, mas na final da Sul-Americana 2009. Teve seu canto do cisne frente o Estudiantes, com dois gols de outro argentino, o futuro palmeirense Hernán Barcos nos 2-1 em Quito. Em La Plata, segurou o 0-0.
2011: dessa vez o campeão da Libertadores se sobressaiu. O Independiente já havia sido um campeão contestável na Sul-Americana e venceu só de 2-1 em casa o Internacional. No Beira-Rio, perdeu de 3-1.
2014: talvez a mais sensacional das Recopas. Lanús e Atlético Mineiro reeditaram a turbulenta final da Copa Conmebol 1997. O Galo novamente levou a melhor. Mas, embora tenha saído da Argentina com vitória de 1-0, teve vida difícil no Mineirão mesmo abrindo o placar lá também. Os comandados dos gêmeos Barros Schelotto viraram, tomaram o empate e venceram no tempo normal aos 48 do segundo tempo. Mas sem critério de gols fora de casa, tiveram de encarar prorrogação e os atleticanos viraram na despedida de Ronaldinho Gaúcho.
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