Há 15 anos, enfim o Newell’s se tornava a maior força rosarina na liga argentina: é penta!
O ataque unia o jovem Ignacio Scocco, o veterano Ariel Ortega e chegou a ter até Jardel – ele mesmo, o Super Mário. Ironia: na era dos torneios curtos, o Newell’s vencedor do Apertura 2004 ainda é o campeão com menos gols marcados. Foram 21 em 19 rodadas. Para tanto, precisava-se confiar na defesa e de fato só cinco times sofreram menos gols nessa era, fazendo com que dois beques da Lepra viessem ao futebol brasileiro em breve (Sebá Domínguez ao Corinthians, aguardado como um “novo Gamarra”, e Julián Maidana ao Grêmio). Ainda assim, não faltaram gritos à torcida rojinegra. Ali, enfim, o Ñuls passava o arquirrival em número de títulos argentinos, além de coroar enfim um velho ídolo, o agora técnico Américo Gallego.
Afinal, El Tolo Gallego, representante leproso na seleção campeã da Copa de 1978, estreara como jogador do clube em 1974, mas justamente já após a conquista do Metropolitano daquele ano. Aquela taça, exatamente a primeira do Newell’s no campeonato argentino, foi garantida em pleno Clásico Rosarino na casa rival, mas o Rosario Central (que já tinha sido campeão duas vezes, e a primeira delas foi após eliminar justo o vizinho na semifinal, em 1971) pôde seguir sorrindo mais. Os canallas ganharam a Argentina em 1980 e também na temporada 1986-87, da qual vieram da segunda divisão para emendar um raríssimo bicampeonato com a elite – e deixar de vice justamente o “inimigo”. O placar de 4-1 na contagem de títulos seria igualado em prazo até curto, em 1992, ao longo da Era Marcelo Bielsa. Ergueram-se os campeonatos da temporada 1987-88, da de 1990-91 e do Clausura 1992.
O Central devolveu com o único troféu internacional da província, a da Copa Conmebol de 1995. O Newell’s, por sua vez, batera na trave da Libertadores duas vezes, nas finais de 1988 e de 1992. Assim, o título do Apertura 2004 servia como uma reparação de honra à população sangre y luto. E para presentear, ainda que com atraso de um ano, o centenário do clube do Parque Independencia. O time decepcionou e então contratou Gallego, a reestrear em 29 de fevereiro daquele bissexto 2004 (substituindo o técnico do fracassado centenário, Héctor Veira) após trabalhos reconhecidos por River e Independiente. O 6º lugar obtido no Clausura já era a melhor colocação do time em muito tempo; desde um 3º lugar enganoso no Clausura de 1997, o clube custava a terminar até entre os dez primeiros.
A diretoria tratou de empolgar a torcida, indo buscar Ortega e Jardel (que, a despeito de dois anos recentes ruins na Europa, ainda tinha relativamente fresca a chuteira de ouro de 2002 com o último Sporting campeão português), além do também veterano Rubén Capria, um dos mais talentosos meias jamais aproveitados pela seleção. Também viria o ídolo Damián Manso, regressado de empréstimo junto ao Independiente. E, sem o mesmo ruído, chegou do Libertad o seguro goleiro paraguaio Justo Villar. Assim, 25 mil torcedores compareceram animados na estreia, ainda que Ortega, já instalado na cidade, precisasse assistir da arquibancada – pois o pagamento por ele ainda não havia sido feito. Jardel, sim, jogaria. Foi uma decepção geral. O brasileiro e outros reforços não funcionaram. Um dos poucos jogadores de outros carnavais a se salvar, o prata-da-casa Fernando Belluschi, foi expulso. Naquele 15 de agosto, o Vélez dominou o jogo e venceu por 1-0. Mas nada como um clássico para curar a ferida…
Entenda-se: em 2004 já havia exatos vinte anos que Rosario não via sequer um vira-casaca em uma das rivalidades mais ferrenhas do mundo – esse tabu ainda se mantém, aliás. O Newell’s não vencia havia seis dérbis e jogaria fora de casa. Scocco começou titular no lugar de Jardel e o brasileiro não recuperaria mais a titularidade da estreia, terminando por ser usado em apenas três partidas na campanha. Quem terminou herói foi outro recém-chegado – o zagueiro Julián Maidana, que já havia sido o protagonista do título do Talleres na Copa Conmebol de 1999 com um gol no último minuto, estreava ali e anotou nos 15 minutos finais o único gol naquela tarde no Gigante de Arroyito em 22 de agosto. Gallego tinha plena consciência da importância da partida, declarando que terminaria demitido se a perdesse. Mas El Tolo, defendendo paternalmente como uma fera seu grupo das críticas (não lhe ajudava uma relação conturbada com a imprensa, autorizada a comparecer apenas uma vez por semana aos treinos; o técnico queria ficar à vontade para intercalar piadas e insultos conforme o necessário), tinha os comandados consigo na mão.
Em 25 de agosto, a terceira rodada seguida em Rosario rendeu a visita do Huracán da cidade de Tres Arroyos, estreante na elite (enquanto o original, do bairro portenho de Parque de los Patricios, amargava uma estadia na segundona). Após vencer o clássico, a expectativa era de goleada em casa sobre os novatos. Que nada: a partida foi parelha, com o goleiro adversário Pardal sendo a figura do jogo, pegando tudo… até a última. Foi quando Marino acertou com fúria um chute desde o meio da área na trave esquerda para garantir a vitória mínima. Três dias depois, era a vez do duelo rojinegro da província de Santa Fe, visitando-se o Colón. O 0-0 fora de casa poderia em tese não parecer um negócio ruim, especialmente quando o goleiro leproso Justo Villar salvou no último minuto uma boa tentativa de Gandín. Só que o Colón realmente jogou melhor e Gallego parecia não ter encontrado ainda a equipe. Para piorar, o recém-regressado Manso virou baixa para o resto do semestre, ao lesionar seriamente o joelho direito.
Àquela altura, o Newell’s ainda estava a três pontos dos líderes, Vélez e a dupla Boca & River, mesmo em sexto. Após pausa de duas semanas, o campeonato foi retomado e a 5ª rodada marcou, enfim, a estreia de Ortega, com grana em caixa após a venda de Mauro Rosales ao Ajax no dia 30 de agosto – Rosales havia sido campeão olímpico dois dias antes, e como o futebol nos Jogos de Atenas durou de 11 a 28 de agosto, acabou não participando da campanha. Quanto a Ortega, aquilo serviu ainda de reestreia geral no futebol – El Burrito não atuava havia dezenove meses, decorrentes do litígio com o Fenerbahçe, o que rendeu toda a uma festa de recepção nas arquibancadas. Só que o Banfield se mostrou um visitante indigesto e abriu o placar, com o jovem Rodrigo Palacio (recém-adquirido junto ao Huracán de Tres Arroyos, por sinal). Scocco empatou e os donos da casa buscaram a virada, mas de modo desconexo. A torcida já parecia impaciente com apenas oito pontos logrados em um contexto de cinco rodadas iniciais todas na província.
Pois foi justamente na primeira viagem a Buenos Aires que a equipe pareceu se acertar, mesmo já desfalcada de Ortega, lesionado. A ausência do astro não impediu um brilhante primeiro tempo, com Belluschi e Germán Ré anotando cada um seu gol. Gols à parte, o elenco fez uma boa apresentação: Belluschi se movimentava, Ariel Rosada cortava, Sebá Domínguez (que após cinco anos de clube acabava de virar o novo capitão) anulava e Capria conduzia. No segundo tempo, Leonardo Pisculichi descontou para o Argentinos Jrs, mas, a despeito de nada menos que três expulsões (de Hugo Iriarte, Luciano Vella e Rosada), o triunfo por 2-1 foi segurado pelos visitantes em La Paternal. A 7ª rodada, enfim, pôde render uma primeira grande ovação em casa, após o time reforçar que não estava para brincadeira. Ainda sem Ortega, Belluschi, Capria, Marino e Iván Borghello atuaram bem em um 3-0 categórico, gols de Borghello, do seu substituto Steinert e de Belluschi sobre o Instituto de Córdoba.
Com o triunfo, o Ñuls voltava a ficar a três pontos da liderança – ocupada justamente pelo próximo adversário, o River. Não deu para igualar-se na ocasião, mas o 2-2 soou bem, dentro do Monumental, olhando-se o copo meio cheio. O meio vazio é que os visitantes conseguiram estar duas vezes à frente do placar. E volta-se ao meio cheio, pois de fato mostraram grande evolução: exibiam segurança, manejo, velocidade, toques e triangulações que resultaram nos gols de Capria e do reserva Marcelo Penta, embora Marcelo Gallardo e Nelson Cuevas buscassem o empate. A liderança, enfim, veio na rodada seguinte. Após um bom tempo em baixa, o Estudiantes, ainda invicto, pintava como uma sensação. O jogo em Rosario foi equilibrado, fazendo a diferença os garotos Marino, Scocco e Belluschi, que sofreu o pênalti a resultar no único gol, convertido por Ortega.
A liderança motivou uma caravana a de cinco mil leprosos a Sarandí para o jogo com o Arsenal. Ainda sem estar 100% fisicamente, Ortega foi poupado e começou no banco. Foi acionado no decorrer de um jogo feio e forneceu algum melhor trato de bola, mas incapaz de romper o ferrolho dos próprios donos da casa, prevalecendo um 0-0 esquecível. A liderança foi perdida momentaneamente, mas recuperada na rodada seguinte. Parecia auspicioso receber em casa um Racing em crise, para variar – o time de Avellaneda vinha sem ganhar havia sete jogos, incluindo seis derrotas, resultando na renúncia da lenda Ubaldo Fillol como técnico. Mas a Academia fez jogo duro, com os rosarinos se desafogando uma única vez, no gol de Belluschi no minuto 40, em petardo tamanho que furou a própria chuteira. A Lepra se igualava ao Vélez na ponta, curiosamente, com uma ajudinha do rival: o Central batera o Fortín em pleno bairro de Liniers.
O bom futebol voltou no compromisso seguinte, exibindo-se uma solidez defensiva, um meio dinâmico e um ataque veloz contra o Quilmes. Marino abriu o placar com um golaço, carregando a bola desde a sua própria área até a contrária, e Ortega fechou o placar em 2-0 ao converter um pênalti, pois os donos da casa preferiram depois se poupar ao invés de ampliar. Nada que impedisse um “dale campeón” já audível nas arquibancadas do Coloso del Parque, embora a liderança seguisse compartilhada com o Vélez. Uma primeira chance de se isolar veio já em 31 de outubro; o concorrente já havia perdido na rodada, para o Colón, mas o Ñuls não aproveitou a visita ao frágil Almagro. Em seu último regresso à elite, o Tricolor brigava para não cair e de fato não resistiria, apostando no contra-ataque mesmo em casa. Mas ali venceu por 1-0, em tarde sem maior brilho de Ortega, Capria e Marino.
Se a derrota não tirava o Newell’s da ponta, ela foi desocupada na rodada seguinte. Em casa, o time sofreu com imprecisão nas jogadas ofensivas e ficou no 0-0 com o Lanús, sendo ultrapassado momentaneamente por aquele Estudiantes do técnico Reinaldo Merlo – El Mostaza já havia tirado em 2001 o Racing de um jejum nacional de 35 anos e parecia apto a quebrar seca de 21 vivida em La Plata. Só que os alvirrubros não saíram de um 0-0 com o Boca na Bombonera e os rosarinos cumpriram papel de candidato em Buenos Aires: Scocco abriu o placar empatado por Barrientos, mas a onze minutos do fim a cabeça de Borghello decretou o 2-1 sobre o San Lorenzo dentro do Nuevo Gasómetro. Pela frente, o antepenúltimo colocado, o Olimpo. Parecia presa fácil para o Coloso. Cientes da inferioridade, porém, os aurinegros de Bahía Blanca se fecharam na defesa. No minuto 45, então, Ortega descarregou seu arsenal de dribles para abrir o placar – foi seu terceiro e último gol na campanha e o único de bola rolando. De trato humilde, se destacou mais como uma referência para permitir que outros brilhassem.
O belo lance parecia abrir uma festa, mas ela foi aguada aos 17 do segundo tempo, com o empate bahiense através de Páez. Gallego não se conteve: “perdemos meio campeonato”, lamentou. Afinal, o jogo seguinte era uma visita a Bombonera. Por outro lado, o Boca usaria um time misto, focando em sua primeira conquista na Copa Sul-Americana; além disso, com o River ainda no páreo pelo Apertura, pairava a suspeita de que os xeneizes não ofereceriam maior risco. Fato é que, sob grande tarde de Ortega, o Newell’s aplicou um 3-1, com dois de Borghello e outro de Maidana assinalando o placar descontando pelo jovem Mauro Boselli. Gallego, agora, dizia que “ganhamos 80% do campeonato”, com seu time três pontos à frente do Vélez e do Estudiantes. No primeiro treino após o jogo, El Tolo reuniu a todos para, quebrando a tensão, perguntar qual o restaurante escolhido para a tradicional reunião semanal das quartas-feiras. Já não parecia o homem sisudo que impunha multa e disciplina militar quando chegara no início do ano, rendendo-se até a churrascos com os pupilos (ainda que financiados pelas multas cobradas).
Restavam duas rodadas. Se o Estudiantes estava na briga, era auspicioso saber que ele e o Vélez fariam um confronto direto, que poderia significar uma morte conjunta abraçada, ao passo que o compromisso leproso seria em casa contra o Gimnasia LP. Belluschi, de cabeça, e outra jogada de videogame de Marino realmente sumularam um 2-0 sob a trilha “qué vamo’ a salir campeones!” entoada pelas tribunas do Parque Independencia. Mas Belluschi tratou de pôr os pés no chão: “ainda nos falta um ponto”. Pois o Vélez, em jejum desde 1998, ainda estava vivo ao triunfar dentro de La Plata sobre o Pincha. A animação em Rosario, porém, era total. O jogo derradeiro seria uma visita ao Independiente, cuja torcida é tradicionalmente amiga da Lepra, ligação reforçada após o belo trabalho de Gallego no Rojo campeão argentino (pela última vez, até hoje) do Apertura 2002 – ironicamente, o time de ataque mais positivo na história dos torneios curtos, por sinal.
Que nada. Após o minuto de silêncio a José Luis Cuciuffo, o campeão mundial com a seleção em 1986 falecido na véspera, de fato se cantaria ao final um “el que no salta es de Racing y Central”. Só que o Independiente (que, curiosamente, também fracassou com a contratação de um brasileiro naquele Apertura – Sérgio Manoel) venceu por 2-0, gols de Jairo Castillo e Federico Insúa sobre a melhor defesa do campeonato: o sóbrio Justo Villar, Maidana, Sebá Domínguez, Ré e Vella sofreram onze gols ao todo, menos apenas que os oito do próprio Newell’s no Clausura 1992, que os sete do Vélez do Clausura 1993, que os oito do Estudiantes do Apertura 2010, que os seis do Boca do Apertura 2011 e que os dez do Lanús de 2016. Ortega quase diminuiu, acertando o travessão em uma falta, mas foi preciso se resumir à secagem: se o Vélez vencesse em casa, forçaria um jogo-extra. Porém, o Arsenal surpreendeu e arrancou um 1-1 em Liniers, inclusive abrindo o placar – a falha de Gastón Sessa no gol de Santiago Hirsig queimaria para sempre o filme do folclórico goleiro perante a torcida do Central, seu ex-clube e onde fora figura querida entre 1997 e 1999.
“Ya se acerca Noche Buena, ya se acerca Navidad, para todos los canallas, el regalo de Papá” e “Qué bonito, qué bonito, la fiesta es en el Parque y el velorio, en Arroyito” já tomavam conta da plateia ensandecida pela ultrapassagem em Rosario. Haveria quem brincasse com o retorno de Maradona de seu tratamento antidrogas em Cuba para passar as festas de fim de ano, sob a versão de que Dieguito viera na verdade comemorar o título do clube que defendera na temporada 1993-94 e que tanto o abraçou a despeito do fiasco esportivo. Nem a esposa de Gallego, torcedora centralista, escapou do marido, a dedicar-lhe a conquista. Com a moral de quem, enfim campeão no clube do coração, também se tornava o segundo técnico campeão argentino por três clubes (após José Yudica, comandante do Quilmes de 1978, do Argentinos Jrs de 1985 e do próprio Newell’s em 1988).
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