No ano de 1912, uma era do futebol argentino ia chegando ao fim: a do domínio dos clubes oriundos da comunidade britânica, que lançaram o futebol no país e vinham conquistando todos os títulos do campeonato argentino, realizado desde 1891 (o mais antigo do mundo fora do Reino Unido). O último deles, em um jogo que completa cem anos hoje.
O ano do naufrágio do Titanic foi também o do primeiro cisma do futebol argentino, em que clubes dissidentes da Associação Argentina de Futebol, oficialmente reconhecida naquele mesmo ano pela FIFA, passaram a organizar-se na chamada Federação Argentina de Futebol e ter um campeonato próprio.
Os historiadores costumam levar em consideração ambos os campeonatos travados nesses períodos, uma vez que os principais clubes do país estavam separados por eles. Os dois órgãos se uniriam em 1915, mas nova separação viria em 1919, agora com a AAF dividindo atenções com a Associação Amadora, o que duraria até 1926.
O último cisma ocorreu em 1931, com as principais equipes do país aderindo oficialmente ao profissionalismo. As amadoras remanescentes, que detinham o reconhecimento da FIFA, razão pela qual a seleção só enviou amadores para a Copa de 1934, só conseguiriam manter seu campeonato próprio até o mesmo ano daquela Copa. Um dos clubes que continuariam amadores foi o campeão do campeonato dissidente de 1912, da FAF.
Trata-se do Club Atlético Porteño, criado por irlandeses, súditos da coroa britânica até 1922. Falamos mais dele, hoje no rúgbi, neste outro especial. Foi um dos três clubes da elite da AAF que se desligaram. Os outros, curiosamente, também manusearam a bola oval: o Estudiantes de La Plata, que a largou nos anos 20; e o Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, que deixou a bola redonda após ser rebaixado em 1917 e, ainda hoje, mantém-se nas disputas de rúgbi. O GEBA liderara a separação por entender que seus sócios não deveriam pagar ingressos para jogos onde o clube era mandante.
A FAF recrutou ainda quatro clubes da segundona da AAF. Três teriam tradição: o Argentino de Quilmes, o Atlanta e, principalmente, o Independiente de Avellaneda. O outro era o Kimberley, de Buenos Aires (não confundir com o homônimo de Mar del Plata, famoso por ter emprestado sua camisa à seleção francesa na Copa de 1978). Também afiliou-se a recém-formada Sociedad Sportiva Argentina. O certame começou em 11 de julho, esvaziando a elite da AAF, que ficou em seis equipes: Quilmes, San Isidro, Racing, Estudiantes de Buenos Aires, Belgrano Athletic e River Plate.
A seleção argentina chegaria a usar somente jogadores da FAF em jogo contra o Uruguai, em setembro: Juan José Rithner (Porteño), Antonio Apraiz, Arturo Reparaz (ambos do GEBA), Juan Johnston (Argentino), Ernesto Sande (Independiente – primeiro rojo na seleção), Gerónimo Badaracco, Pedro Calomino (ambos do Argentino; Calomino, mais tarde, seria grande ídolo do Boca Juniors), A. Márquez, Antonio Piaggio (ambos do Porteño), Santiago Sayanes (GEBA) e Pascual Polimeni (Argentino) perderiam por 0 a 1.
A “caçula” Sociedad Sportiva foi o saco de pancadas, perdendo todos os seus 14 jogos. O Kimberley foi o vice-lanterna, com 6 pontos. Logo acima, o Atlanta somou 12. Os demais, representados naquela seleção, tiveram uma briga mais equilibrada: o quinto, o Argentino, teve 17, enquanto o futuro campeão Porteño, 20. Entre eles, o GEBA alcançou 18 e o Estudiantes, 19. Também com 20 pontos, ficou o Independiente, que seria o campeão pelo melhor goal average (quociente dos gols marcados pelos sofridos). O Rojo teve justamente o artilheiro do campeonato: Enrique Colla, que marcou 12 vezes.
Só que a equipe de Avellaneda lograra a conquista sobre uma equipe reserva do Argentino, que, já sem chances, levou de 0 a 5. Na época amadora, tal atitude dos quilmenhos era entendida como uma enorme falta de fair play. Para não compactuar com ela, o campeão abdicou da conquista e propôs que ele e o Porteño travassem um jogo-extra entre si, para decidir com quem ficaria a taça. Foi essa final a partida travada há exatamente um século.
Em 22 de dezembro de 1912, no neutro campo do GEBA (onde se realizariam as primeiras Copa Roca, em 1914, e América, em 1916), os “ex-campeões” adentraram com William Peterson, Juan Idiarte, L. Calneggia, Manuel Deluchi, Sande, A. Lanatta, Zoilo Canavery, Bartolomé Lloveras, J. Rodríguez, Colla e Francisco Roldán. O Teño se alinhou com Juan José Rithner, H. Viboud, R. González, V. Abadía, Pedro Rithner, B. Berisso, M. Genoud, Piaggio, A. Galup Lanús, A. Márquez e F. Ramos.
O jogo estava no 1 a 1, gols de Pedro Rithner (irmão do goleiro Juan José e futuramente também na seleção, mas pelo Baradero) e Lloveras. Aos 42 minutos do segundo tempo, então, os de Avellaneda teriam feito outro gol. Porém, o árbitro Carlos Aertz não o validou. Como protesto, os vermelhos deixaram o campo. No dia seguinte, sem nova partida, a FAF considerou o Porteño como campeão. O título do clube da cidade de San Vicente (na época, era sediado no bairro portenho de Palermo) seria o último da era britânica: o Quilmes, também anglo-saxão, ficara meses antes com a taça da AAF.
Em 1913, em seus dois campeonatos, o futebol argentino conheceria dois novos campeões, ambos criados por descendentes dos colonizadores espanhóis (os criollos) e outros imigrantes: Racing, no da AAF, iniciando um heptacampeonato seguido que ainda lhe é um recorde nacional; e Estudiantes de La Plata, no da FAF. O Porteño ainda seria campeão em 1914, mas a série britânica findara: as próximas conquistas de clubes originalmente anglo-argentinos só viriam a partir dos anos 70, com o Rosario Central, o Newell’s Old Boys e o Quilmes. Na década seguinte, foi a vez do Ferro Carril Oeste. Àquela altura, todos já estavam “nacionalizados”, como o futebol do país.
O Teño decairia bastante nos anos 20, ficando diversas vezes em último até o rebaixamento voltar a ser implementado e condená-lo em 1928 à segundona. Perdendo o bonde da história, o clube continuou amador após 1931, largando o futebol e afiliando-se a outro esporte até hoje compulsoriamente amador na Argentina: o rúgbi, assim como outros clubes “britânicos”, alguns dos quais campeões antes do Porteño. Já o Independiente teria que esperar até o campeonato de 1922, só encerrado em 1923, para ser campeão, com um ataque cujo apelido viraria sinônimo também do time: Los Diablos Rojos.
Compunham a linha ofensiva de 1922 Alberto Lalín, Luis Ravaschino, Manuel Seoane, Raimundo Orsi (campeão do mundo pela Itália em 1934) e Zoilo Canavery, único remanescente do vice de um século atrás. Ele seria também o primeiro técnico do clube na era profissional. Uruguaio de nascimento, personificou o vira-casaca na Argentina: jogou pela seleção alviceleste, passou por River Plate e Boca Juniors (campeão neste em 1919, primeiro título nacional xeneize) e esteve no Racing em meio ao hepta que fez este clube ficar conhecido como Academia. É um dos poucos a passarem por quatro dos cinco grandes (só não esteve no San Lorenzo) e campeões nos dois rivais de Avelleneda.
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