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Há 100 anos, a Argentina perdia seu Santos Dumont, padroeiro do Huracán

Pioneiro da aviação argentina, Jorge Newbery também foi um multiesportista. Ganhou troféus no boxe; integrou time de rúgbi da Faculdade de Engenharia, a primeira equipe desse esporte no país formada fora da comunidade anglo-argentina (seu sobrenome inglês veio de um pai imigrante dos EUA mesmo; até estudaria lá, sendo inclusive aluno de Thomas Edison); praticou ainda natação, esgrima, vôlei, automobilismo… Mas sua faceta esportiva mais conhecida é sua relação com o tradicionalíssimo Huracán, do qual chegou a ser presidente de honra. E foi pouco após a ascensão do clube que o aviador faleceu, há exatos cem anos.

A Primeira Guerra Mundial, primeiro grande conflito a usar aviões como arma, se aproximava. Mas o aparelho era ainda bem novo em um mundo que era bem mais cadenciado que hoje, décadas de Revolução Industrial à parte. Assim, o balonismo causava grande sensação também. Newbery, fundador do primeiro aeroclube argentino, experimentou os ares em 1907. E, assim como os prostíbulos, jamais os largou, mesmo com um irmão jamais sendo reencontrado após perder-se justamente em um voo de balão.

E foi a bordo de um balão que Newbery chegara à Argentina como herói em 9 de novembro de 1908. Foi após viagem trinacional da terra natal até Bagé, no Rio Grande do Sul, cruzando o Uruguai a bordo do El Huracán. Ali bateu um recorde sul-americano de duração de voo (13 horas) e de distância (550 quilômetros). Oito dias antes, era refundado um time que por coincidência se chamava justamente de Huracán – “furacão” em castelhano. O clube já havia existido nos idos de 1903 com esse nome e vinha se reorganizando. Quando a equipe finalmente se afiliou na liga argentina, em 1911, o feito de Newbery seguia fresco a ponto dos jogadores pedirem formalmente autorização a ele para usarem um balão como distintivo.

A resposta do aviador foi essa: “tive o agrado de receber sua muy atenta nota com data 3 do atual, na qual se serve me comunicar que fui nomeado delegado honorário deste Centro. Ao agradecer a distinção de que sou objeto, dou minha conformidade, já que se serve você solicitá-la, para usar o distintivo que menciona, esperando que o team que o levará sobre o peito saberá fazer as honras correspondentes a esse balão que em um voo cruzou sobre três Repúblicas”.

O ano de 1911 também viu o time deixar seu bairro original de Nueva Pompeya e se fincar no vizinho de Parque de los Patricios, onde havia espaço para um campo de dimensão nos requisitos da liga. E foi um entusiasmado Newbery, usando suas conexões com a prefeitura por ser diretor de iluminação pública, quem arranjou-lhe um terreno apropriado. Ainda faltava alguns outros requisitos sem atendidos, o que foi contornado após Newbery usar do seu prestígio (tamanho que o blindava de vaias dos conservadores após ter escrito leis de segurança trabalhista com seu amigo Alfredo Palacios, primeiro deputado socialista eleito nas Américas) ao conversar com Hugo Wilson, presidente da liga.

Outro ano se passou. E em 1912 o Huracán inscreveu-se na terceira divisão. O campeão foi exatamente o estreante. E pelo regulamento, ele, como campeão da terceirona, já estaria garantido na semifinal da segundona de 1913. E a semifinal acabaria casualmente funcionando como virtual final: é que um dos finalistas calhou de ser o time B do Ferro Carril Oeste, que não poderia subir de divisão mesmo se fosse campeão, pelo time A desse clube já pertencer à elite. Assim, quem vencesse aquela semifinal entre Huracán e Gimnasia y Esgrima de Flores já poderia comemorar por antecipação o acesso.

E aquela semifinal, em jogo único no estádio neutro do Racing, foi mesmo dramática: o Huracán perdia até os últimos 9 minutos, quando Laurenzano empatou em 1-1 e forçou prorrogação. Animados, os huracanenses conseguiram no tempo extra virar com outros dois gols, de Salvarredi e González. O Ferro B seria mesmo o campeão, após dois jogos (o primeiro terminou em 1-1 mesmo após prorrogação, e no segundo o adversário venceu por 2-0). Mas nada que estragasse o festejo do time de Parque de los Patricios, que em telegrama assim informou a seu maior mecenas: “cumprimos. O Club Atlético Huracán, sem interrupção, conquistou três categorias, ascendendo à Primeira Divisão, tal como o balão que cruzou três repúblicas”.

Newbery esteve vivo para celebrar o acesso final. Entretanto, por 28 dias este dândi perdeu o primeiro jogo do Huracán na primeira divisão argentina, em 29 de março. O aviador passara a pilotar aviões em 1910, tempos em que Buenos Aires deixava de ser “a grande aldeia” para firmar-se como a “Paris da América do Sul”, industrializando-se rapidamente (por exemplo, sua primeira linha de metrô, também a primeira do Hemisfério Sul, foi inaugurada em setembro de 1913).

O ídolo nacional acabara de bater o recorde mundial de altura em avião, a bordo de um Morana-Saunier a 6.225 metros do chão em 10 de fevereiro de 1914. E foi nele, cerca de duas semanas depois, que saiu de cena ao chocar-se com um maciço andino. Estava em Mendoza estudando a paisagem e meteorologia locais a fim de definir a altura necessária para se tornar o primeiro a sobrevoar a Cordilheira dos Andes, chegando via avião ao Chile. Algumas damas pediram-lhe para vê-lo voar e ele não conseguiu estabilizar a aeronave nos caracteristicamente cortantes ventos mendoncinos após realizar um looping.

50 mil foram a seu funeral. E o Huracán, em seu primeiro jogo na elite, saiu vencedor por 4-2. Justamente contra o time A do Ferro Carril Oeste.

A adoção do balão como escudo renderia ao Huracán os apelidos de Globo (“balão”, em castelhano) e Globito e o clube logo vivera sua época dourada, nos anos 20 – quando ganhou quatro de seus cinco títulos argentinos e teve como alguns jogadores o criador do gol olímpico (Cesáreo Onzari) e o artilheiro da primeira Copa do Mundo, a de 1930 (Guillermo Stábile). Newbery também está eternizado no nome do Aeroparque de Buenos Aires, o segundo aeroporto mais importante do país.

Huracán que subiu à elite, com um balão enorme no peito: José González, Juan Berni e José Tealdi, Juan Laurenzano, Pedro Martínez, Vicente Chiarante e o bandeirinha Mario Bassadone, Ernesto Dellisola, Eduardo Martínez, Federico Brana, Martín Salvarredi e Abelardo González
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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