Pode-se dizer que o Racing vendeu a alma ao Diablo, apelido do rival Independiente. Pelo que veio a curto e longo prazo, faria sentido mesmo. O ex-meia José Omar Pastoriza, que sabia destruir as jogadas adversárias e também armar as próprias com categoria, não foi um jogador fora de série como Ricardo Bochini, indiscutivelmente o maior ídolo do time vermelho de Avellaneda: entenda. Mas talvez foi quem mais se personificou com o clube. Foi um dos poucos casos de pessoas campeoníssimas tanto como jogador como treinador na mesma equipe. E foi ainda como técnico dos Rojos que, por volta das 4 e meia da manhã de 2 de agosto de 2004, seu coração (vermelho) parou de bater.
Uma quase tragédia o levou à dupla de Avellaneda. Nascido em Rosario em 23 de maio de 1943, começou em 1957 nas inferiores do clube pelo qual torcia, o Rosario Central, com a renda ainda vindo como eletromecânico de uma ferroviária. Profissionalizou-se como jogador em outro clube de sua província natal de Santa Fe, o Colón, em 1961. Ali, jogando na terceira divisão, foi descoberto por Néstor Rossi, ex-xerife do River e seleção nos anos 40 e 50. Rossi àquela altura era o técnico dos millonarios e pediu em 1965 contratação do meia. Pastoriza ia a Núñez assinar o contrato quando acidentou-se na moto que dirigia e quebrou seis costelas. Quando ele se recuperou, Rossi já treinava o Racing e voltou a pedir por El Pato. Naquele ano de 1965, o Independiente se sagraria pela segunda vez, seguida, o vencedor da Libertadores. Foi o primeiro clube argentino a vencê-la.
O Racing responderia em breve: germinava o elenco que, já sob outro técnico, seu ex-atacante Juan José Pizzuti, venceria o torneio em 1967 e iria além, sendo o primeiro time do país a ganhar a Intercontinental. Mas antes de chegar lá, La Academia encantava em casa, passando 39 jogos seguidamente invictos entre 1965 e 1966. Até hoje, só outro elenco conseguiu mais: o super Boca de Carlos Bianchi da virada do século parou nos 40 em 1999. Pastoriza jogou 17 jogos da série do Racing, onde nem tudo ia tão bem: as finanças alvicelestes exigiam uma boa venda e o medalhão originalmente pensado pela diretoria foi o zagueiro Roberto Perfumo, depois ídolo no Cruzeiro.
Aí o Independiente propôs no início de 1966 cerca de 12 milhões de pesos por Pastoriza mais a transferência de Miguel Mori. O troca-troca pareceu bom ao Racing: Mori virou titular no rival, onde foi campeão argentino naquele 1966 e esteve nos títulos internacionais de 1967. Mas, ao menos na poesia, o sucesso a curto prazo proporcionado pelo Diablo cobrou preço alto. O Racing desde então se acostumou ao medíocre, sendo rebaixado em 1983 e só vencendo a Supercopa 1988 e o Apertura 2001. Um sinal foi dado ainda em 1967: o Independiente, treinado pelo brasileiro Osvaldo Brandão, foi campeão argentino com um recorde ainda não batido de aproveitamento, cerca de 87% (veja).
A taça foi sacramentada em um Clásico de Avellaneda vencido por 4-0. Pastoriza estava lá, assim como em outro clássico decisivo de última rodada, novamente favorável aos rojos, campeões em 1970 com um 3-2 de virada no arquirrival. Em 1970, ele também estreou pela seleção, vencendo no Beira-Rio o Brasil futuramente tricampeão mundial. A Argentina, ironicamente, não iria à Copa do México, na única vez em que foi eliminada em campo. Pastoriza havia ido, mas sem jogar, à Copa 1966, onde foi apelidado de Pato. “Não lembro de outro reserva tão torcedor dos titulares”, já declarou o mesmo Perfumo. A tristeza maior veio na volta, ao saber da morte dos dois avós que haviam lhe criado.
Ao todo, foram 18 jogos pela Albiceleste, o último também no Brasil, na Taça Independência, contra a Iugoslávia em 1972. Foi nesse torneio, que celebrava os 150 anos da independência brasileira, que ele marcou seu único gol pela seleção, no 1-0 na URSS. Já o Independiente seria campeão argentino também em 1971 e ganhou nova Libertadores em 1972, a primeira de um tetra seguido na competição, ainda um recorde. Pastoriza deixou o clube após o título inaugural da série, o único em que a volta olímpica pôde ser dada em Avellaneda (o meia foi jogar no Monaco, onde encerrou a carreira em 1976; já havia sido sondado pelo Palmeiras, que trouxe Norberto Madurga, do Boca). Falamos dela aqui.
Apesar dos festejos, pessoalmente o ambiente dele com os dirigentes não vinha bem: El Pato era entusiasta dos direitos dos jogadores, chegando a presidente do sindicato de categoria. Já havia liderado até greve, em 1971. Bem longe da milionária realidade atual, os jogadores argentinos na época não tinham direitos trabalhistas como a fixação de salário mínimo, férias normais, indenizações por acidente de trabalho e outros, e eram impedidos pela FIFA de recorrerem à justiça comum por salários atrasados. Os dirigentes de início não cederam e realizaram jogos com garotos da base (um dos mais célebres Boca-River foi assim: confira), mas o público sumiu dos estádios e a ditadura de Lanusse, temerosa por outras greves no país, resolveu intervir. Foi nesse ambiente que outro líder, justamente Perfumo, também deixou o país, indo ao Cruzeiro.
Em 1976, a atmosfera estava mais amena (Perfumo, por exemplo, viera jogar no River) e Pastoriza retornou ao Independiente, mas como técnico para um novo ciclo após o fim da série de quatro Libertadores seguidas. Se no continente o clube dominava, em casa nem tanto. A pendência foi resolvida com o nacional de 1977, talvez a mais épica final argentina: contra o bom time do Talleres, os Rojos foram campeões com oito jogadores em campo marcando o gol do título no final do jogo, fora de casa. Pastoriza já disse que nunca comemorou gol como aquele e tivera papel fundamental para aquilo: os gols adversários e as expulsões vieram de um juiz tendencioso ao adversário e outros diablos, revoltados, queriam deixar o campo, mas foram demovidos da ideia pelo treinador.
Eduardo Sacheri, escritor do livro que originou O Segredo de seus Olhos (onde o vilão é um torcedor do Racing), Oscar de filme estrangeiro em 2010, agradeceria-lhe: “obrigado, senhor Pastoriza. Por esse Nacional 77 que me deu a oportunidade de dar a última volta olímpica com meu velho, enquanto ele dava seus últimos dribles na morte”. Contamos mais dessa epopeia neste outro Especial. A própria torcida roja inteira já lhe gritava Gracias Señor Pastoriza em 1979, ano em que deixou o clube após não se classificar às quartas-de-final do torneio nacional por não usar Bochini após o jogador faltar quatro treinos na semana. Pastoriza já havia mesmo ganhando muito (havia sido campeão argentino em 1978 também). Mas o melhor ainda viria. Antes, treinou justo o Talleres em 1980 (3º colocado) e voltou ao Racing entre 1981-82. Em junho de 1983, começou seu segundo ciclo como técnico diablo.
O Independiente vinha de dois vices argentinos para o Estudiantes. Com El Pato de volta no comando, o time, que não era campeão desde 1978, voltou a ser o melhor do país, em outro título argentino histórico: veio com outra vitória sobre o Racing, rebaixado naquele torneio (falamos aqui). E aqueles campeões venceriam a Libertadores 1984 após nove anos de jejum, então a maior seca do Rey de Copas na competição, quebrada pela atual: foi a sétima e também a última Libertadores do Independiente, garantida com um 1-0 sobre o Grêmio em pleno Olímpico. Pastoriza havia pessoalmente visto o Tricolor jogar dias antes e detectara que se anulasse Renato Gaúcho (o Hamburgo, na Intercontinental 1983, não o conhecia e se preocupou mais com o veterano Paulo Cézar Caju, mais famoso) a taça estava encaminhada. Contamos isso domingo passado, quando a conquista completou 30 anos.
Depois, veio a segunda e última Intercontinental, em 1984 sobre o Liverpool, encontro temperado pela ainda fresca Guerra das Malvinas. O Independiente só deixou de ser o argentino com mais mundiais em 2003, quando o Boca faturou seu terceiro, sobre o Milan. O Fluminense, então campeão brasileiro, resolveu contratar Pastoriza para a Libertadores de 1985. Mas em menos de um mês, ainda em junho, (o Flu estrearia ao fim de julho), o argentino pediu demissão, irritado com o que julgava falta de apoio dos dirigentes. E em 25 de agosto reestreava no comando técnico do Independiente. Diversos meios da internet citam que El Pato chegou a treinar o Grêmio em 1985, mas isso não é verdadeiro: quem checar fontes da época verá que o clube gaúcho passou o ano inteiro sob Rubens Minelli.
O terceiro ciclo nos rojos já não teve títulos e em 1988 Pastoriza foi ao Boca, que atravessava séria crise desde o início da década. O último título do Boca havia sido o argentino de 1981 com o reforço Maradona, mas a dinheirama para trazer o astro e a crise financeira acentuada pela Guerra das Malvinas deixaram os auriazuis no vermelho pelo resto da década. Nova taça argentina só viria em 1992. Foi sob Pastoriza que os xeneizes tiveram seu melhor momento na crise, em 1989: vices nacionais justo para o Independiente, que levou o troco na Supercopa, derrotado em casa nos pênaltis pelo novo time de Pastoriza e outros ex-rojos, como o volante Claudio Marangoni e o ponta Alejandro Barberón.
Aquele trabalho no Boca foi o último de Pastoriza com algum sucesso, apesar de começar já polemizando, “aposentando” o goleiro quarentão Hugo Gatti, um dos maiores ídolos do clube. Voltou rapidamente ao Independiente entre 1990-91, treinou o Atlético de Madrid em 1992 (explosivo, durou pouco após insultar o presidente Jesús Gil nos vestiários) e em 1993 foi rebaixado com o Talleres, no primeiro descenso do outrora poderoso time albiazul de Córdoba. Após passagens por Bolívar, Argentinos Jrs e seleção de El Salvador, trabalhou de novo no Talleres em 1998, na temporada em que La T voltou à elite, mas o técnico do jogo do acesso já era Ricardo Gareca (hoje no Palmeiras). El Pato depois treinou a Venezuela – era ele quem dirigia a Vinotinto naquele 7-0 para o Brasil com célebre gol de Ronaldinho Gaúcho. Deixou o cargo em 2001, com a seleção ainda sendo o saco de pancadas das eliminatórias.
Após passar pelo Chacarita em 2002 e novamente pelo Talleres, em 2003, voltou à velha casa em fevereiro de 2004, quando o Independiente retornava às disputas da Libertadores após nove anos. O outrora Rey de Copas foi eliminado nos play-offs da primeira fase pelo São Caetano: contamos aqui. Embora já meio antiquado (ele já havia sofrido uma arritmia em 1984, a dois meses do título da Libertadores), sua morte foi bastante sentida. A camisa de Jairo Castillo passou até a levar a palavra Pato no peito após o colombiano cansar de levar amarelos ao celebrar gols levantando-a para exibir outra por baixo com homenagens ao treinador.
Talvez o episódio que melhor o personificou no Independiente veio em 1973, já no Monaco. Pastoriza havia deixado os diablos após os 3-0 sofridos contra o Ajax na Intercontinental 1972. Um ano depois, o ex-clube enfim foi campeão mundial pela primeira vez. Ao saber disso, El Pato saiu a comemorar com a camiseta roja pelas ruas de Monte Carlo…
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