A perda precoce do uruguaio Santiago Morro García (em litígio com o Godoy Cruz, onde era simplesmente seu maior artilheiro na primeira divisão argentina – na qual fora goleador máximo da temporada 2017-18) nesse fim de semana para a depressão traz novamente à tona discussões acerca de uma doença terrivelmente subestimada. Não fosse ela, provavelmente ontem o ex-goleiro Alberto Pedro Vivalda celebraria seus 65 anos. Vale aproveitar a oportunidade para, sobretudo, reiterar os canais de ajuda apresentados em nossa nota sobre o caso de Mirko Saric.
O futebol argentino perdeu Saric em 2000. Em 2003, seu mestre Oscar Ruggeri declarava que seguia “sem entender. Preenchia tudo para que tivesse uma vida feliz: família bárbara, tinha contrato assinado, as novinhas tinha que tirar da concentração porque corriam atrás dele por todos os lados, jogava no San Lorenzo, era gente boa. Isso te leva a pensar que nem tudo passa por dizer a alguém ‘que lindo é jogar o futebol’; às vezes, é importante ter profissionais ao lado”. Vivalda, inclusive, tinha pinta de galã feito Saric. Filho único de um delegado dos juvenis do River, formou-se por lá e foi para o gol após o avaliarem muito mal como atacante. Estreou no time adulto justamente no ano histórico de 1975.
Ele era apenas o terceiro goleiro em Núñez, com o titularíssimo Ubaldo Fillol tendo no confiável Luis Landaburu seu reserva imediato, mas ainda assim Vivalda pôde atuar em um jogo ou outro na campanha que encerrou a pior seca do Millo (dezoito anos). Landaburu, inclusive, relataria que Vivalda era visto como o goleiro de mais futuro: “no clube, o estereótipo é Amadeo Carrizo, e os que viemos do River tínhamos esse selo de jogar adiantados, de saber usar os pés, de chutar com estilo. Foi o mais parecido com Amadeo que eu vi. Vinha o escanteio pela direita, agarrava com uma mão e, como no basquete, passava a bola por trás da costa e a arremessava pelo outro lado, uma coisa espetacular. Eu era três anos mais velho e tenho que agradecer-lhe por ter saído do River, porque senão, não teria jogado nunca, nem engraxava seus sapatos”.
As palavras acima foram proferidas já em 2017, em reportagem onde o autor Diego Borinsky também tratou de consultar Fillol: “tinha um estilo mais similar ao de [Hugo] Gatti que ao meu, mas era um goleiro de tremenda personalidade, goleiro de equipe grande”. De fato, como a lenda Carrizo e como o também histórico Gatti, Vivalda acabaria apelidado de El Loco, embora também fosse chamado de Beto. Diante de lesão conjunta de Fillol e Landaburu, pôde estrear na 32ª rodada do Torneio Metropolitano, em 20 de julho, em derrota em casa para o Atlanta por 1-0. A mais lembrada, porém, foi a 37ª e penúltima. Vivalda foi justamente o goleiro titular na partida que assegurou a reconquista argentina.
É que o sindicato dos profissionais entrara em greve exatamente na ocasião daquela partida, obrigando o líder a apresentar-se com juvenis no compromisso com o Argentinos Jrs. A exceção foi Vivalda, segundo o obscuro Ramón Gómez, um dos juvenis improvisados: “quando se decretou a greve, Vivalda falou diante de todo o plantel de profissionais e lhes disse: ‘eu vou jogar essa partida porque estou desde os 8 anos no clube, levo a camisa no sangue, não como vários daqui. Se alguém tem um problema pessoal, que fale’. E te asseguro que ninguém falou”.
Naquela campanha, aquela noite rendeu a única aparição dos jogadores de linha utilizados na ocasião. Terminariam boicotados pelos rancorosos titulares, ausentes à força do jogo da consagração após todo o osso roído (para muitos, após anos a fio). Um pouco por isso e um pouco para ter mais minutos, Vivalda rumou em 1976 ao Chacarita; ainda em 1975, seu River logrou um bicampeonato seguido faturando o Torneio Nacional, sem que a terceira opção de goleiro chegasse a ser acionada.
Treinado por um iniciante Alfio Basile, o Chaca já não lembrava a potência que no início da década sabia bater de frente até com o Bayern Munique, brigando contra as últimas posições tanto no Metropolitano como no Nacional entre os anos de 1976 e 1978 – apesar de um elenco que no papel reunia outros finalistas de Libertadores como Basile, a exemplo do veterano Roque Avallay (do Independiente campeão de 1965) e dos jovens Carlos Salinas (que levantaria pelo Boca as de 1977 e 1978) e Carlos Ischia (que aguardaria até 1985 para decidi-la pelo América de Cali, saboreando como assistente técnico de Carlos Bianchi por Vélez e Boca).
El Loco Vivalda teve muita contribuição para tardar o rebaixamento funebrero, consumado justamente no ano em que ele deixou os tricolores, 1979. O goleiro saiu em alta, contratado por um gigante feito o Racing como opção ao veteraníssimo Agustín Cejas – que volta e meia precisava desdobrar-se como jogador-treinador, como ocorreria em 1980. La Acadé teve um ano aceitável em 1979, perdendo por dois pontos a vaga nos mata-matas do Metropolitano enquanto que no Nacional liderou seu grupo, caindo nas quartas-de-final.
Já o ano de 1980 foi medíocre: 10º no Metro, vice-lanterna no grupo do Nacional, onde o Racing brilhante foi o de Córdoba mesmo, o vice-campeão. Cejas, ainda assim, cavou uma transferência ao River. Para novo técnico, a diretoria racinguista ousou, chamando José Omar Pastoriza, todo um símbolo do Independiente. El Pato vinha de títulos seguidos no Rojo, mas entrara em rota de colisão com o astro-mor Ricardo Bochini. Deu certo nas circunstâncias: o 5º lugar no Metropolitano de 1981, a um ponto do bronze, foi a melhor campanha do time de Avellaneda entre o vice do Metro 1972 e o bronze na temporada 1987-88. Ambas campanhas guarnecidas pela lenda Fillol, por sinal.
Os defensores Julio Olarticoechea e José van Tuyne, o volante Juan Barbas e o atacante Gabriel Calderón terminariam chamados à seleção para a Copa de 1982 por conta daquele Metro 1981. Vivalda e colegas inclusive quase tiraram o título do Boca maradoniano na rodada final. Curiosamente, cabe ao Loco a “honra” dividida com Fillol como goleiro mais vazado por Diego no futebol argentino (oito vezes em sete duelos, no caso de Vivalda). Mas ali só foi vencido numa cobrança de pênalti, no honroso 1-1 segurado pelos visitantes em La Bombonera – que, se vencessem, forçariam o Boca a um jogo-desempate contra a surpresa Ferro Carril Oeste, vice-campeão por um pontinho a menos.
Só que aquela boa campanha logo resultou em desmanche geral por conta da seríssima situação financeira do Racing: ainda em 1981, para o Torneio Nacional o coringa Olarticoechea (que, àquela nota de Borinsky, revelou que Vivalda, por economia e como exercício extra, pedalava mais de cem quadras desde sua residência no bairro de Caballito até Avellaneda) foi cedido ao River e Calderón, ao próprio rival Independiente. O clube naufragou no Torneio Nacional de 1981 e de 1982. Barbas ainda cavaria um negócio exitoso com o Real Zaragoza. Já Pastoriza rumou ao Millonarios e tratou de levar Vivalda consigo ao clube de Bogotá, bem como o zagueiro Van Tuyne. Saíram na hora certa: a campanha no Metropolitano de 1982, travada no segundo semestre, iniciaria o promedio que resultaria no rebaixamento racinguista outro ano mais tarde.
Nos campos que germinavam aquela dourada geração colombiana, o goleiro, apesar da falta de títulos (foi bronze em 1982 e 1983, vice em 1984 e outra vez bronze em 1985), enfim foi ídolo histórico de um clube. “Tinha força de pernas, era líbero, saía jogando, cortava com uma mão. Não chegou a ser campeão por essas coisas do futebol, mas deixou uma marca grande. Era um Beatle, por sua genialidade, por seu estilo inovador, por sua estética”, garantiu o autor do livro Las 1001 Anédoctas de Millonarios. Logrou ainda recorde de 585 minutos sem sofrer gols a despeito de seu estilo adiantado – que serviu de inspiração não-assumida a seu reserva, René Higuita, então um arqueiro descrito como de atuação restrita à linha do gol. Outro jovem ícone entre os azuis era Carlos Valderrama.
Vivalda foi repatriado no fim de 1985, após perder o pai para um câncer. Parecia sinalizar também um fim de carreira ao acertar seguidamente com dois clubes marcados pela fuga contra o rebaixamento: primeiramente, o Unión, na segunda metade da temporada 1985-86. Para a de 1986-87, o veterano serviu o Platense, que protagonizou uma das mais épicas salvações do futebol argentino – embora Carlos Fortunato fosse o arqueiro naquela virada sobre o River. Ainda assim, o próprio River recontratou seu antigo juvenil no pacotão de reforços para a temporada seguinte. Mas outra vez El Loco não passou de terceiro goleiro em Núñez, agora em hierarquia com Nery Pumpido e o reserva imediato Sergio Goycochea.
O veterano rumou ao Ferro Carril Oeste para a temporada 1988-89. E parece ter evitado campanha ainda pior que o antepenúltimo lugar dos verdolagas, porque deixou o bairro de Caballito novamente recontratado pelo passado: o Racing havia perdido Fillol para o Vélez e, tendo em Carlos Roa alguém ainda verde demais, requisitou a antiga figura de 1981. El Lechuga, contudo, acabaria prevalecendo no decorrer da temporada 1989-90, a última da carreira de Vivalda. Cuja vida pessoal já vinha sob uma espiral negativa desde a perda paterna e foi majorada por financeiros, divórcio e distanciamento dos quatro filhos, que permaneceram na cidade natal da ex-sogra, a 600 Km de Buenos Aires.
O único filho que atendeu a reportagem de Borinsky relembrou que “para sintetizar, te posso dizer que houve muitas coisas, não foi uma só, se tratou de um processo. Gostávamos muito do meu velho, somos uma família unida e não nos esquecemos dele nem o abandonamos. O tivemos sempre presente”. Após a separação, contudo, os relatos dos ex-colegas que lhe encontravam casualmente convergiram para descrever alguém solitário, mal cuidado e que falava coisas sem sentido, inclusive de que tentaria uma carreira na Europa – dando margens à possibilidade de que sua depressão se combinava a uma esquizofrenia.
O destino mesmo foi mais de uma internação em clínicas psiquiátricas mais de uma vez. E nem a proximidade do 38º aniversário impediu que, seis dias antes, em 4 de fevereiro de 1994, ele preferisse estacionar calmamente sua moto na estação Vicente López da linha mitre e então atirar-se nos trilhos ao notar a movimentação do trem.
Ainda demoraria duas semanas para sua ausência ser notada.
Abaixo, reproduzimos o aconselhamento exposto naquela nota de Saric, criado tocantemente feito pelos amigos da Trivela, que o usaram também na nota que dedicaram ao caso de Morro García:
Caso você sofra de depressão ou possui algum entrave ligado à saúde mental, procure ajuda. Também o faça se você se sentir depreciado, com a autoestima baixa, desesperançoso com a vida e/ou se isolar das relações sociais. Não hesite em buscar auxílio ou o atendimento com um profissional – por exemplo, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de sua cidade ou região, ligado ao SUS, ou mesmo na Unidade Básica de Saúde mais próxima. Você também pode procurar o CVV, o Centro de Valorização da Vida. O canal realiza apoio emocional e prevenção ao suicídio. Através do número 188, atende gratuitamente pessoas que desejam conversar, sob total sigilo.
O contato também pode ser feito pelo site oficial, por e-mail ou mesmo por Skype. Quando você pede ajuda, você: “é respeitado e levado a sério; tem o seu sofrimento levado em consideração; fala em privacidade com as pessoas sobre você mesmo e sua situação; é escutado; é encorajado a se recuperar”. E se você conhece alguém em uma situação de risco, não deixe de procurar essa pessoa e de oferecer ajuda. O Ministério da Saúde também possui uma página em que orienta como identificar, agir e prevenir o suicídio. Reconheça os sinais, conforme a indicação da Superinteressante e do Ministério da Saúde:
“Frases ou publicações nas redes sociais que falem de solidão, culpa, apatia, autodepreciação, desejo de vingança ou hostilidade fora do comum; isolamento, não atendendo a telefonemas, interagindo menos nas redes sociais, ficando em casa ou fechadas em seus quartos, reduzindo ou cancelando todas as atividades sociais, principalmente aquelas que costumavam e gostavam de fazer; preocupação com sua própria morte ou falta de esperança, com sentimento de culpa, falta de autoestima e visão negativa de sua vida e futuro; diminuição ou ausência de autocuidado; aumentar o uso de álcool ou drogas, mudanças drásticas de peso, dirigir perigosamente; perguntas sobre métodos letais, como facas, armas ou pílulas; enaltecer e glamorizar a morte; desfazer-se de objetos pessoais e dar adeus”.
Vale ressaltar que, embora não seja a maioria das pessoas doentes que cogita ceifar a própria vida, os transtornos mentais são um fator de risco ao suicídio. Em compensação, há sempre uma saída. O avanço da medicina ligada à saúde mental é significativo e a atenção dada pelo sistema público de saúde ao tema cresceu nos últimos anos.
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