Para encerrar a série sobre as relações entre futebol e política na Argentina, é hora de lembrar de seu fruto mais evidentemente nocivo nos últimos anos. O campeonato com quase 40 clubes que a AFA planejou e que aparentemente ainda não está totalmente fora dos planos.
Primeiro é preciso entender a cisão entre Buenos Aires e as províncias. Desde a independência argentina é uma relação complexa, em que os provinciais temem o domínio portenho, e a capital tenta se impor sobre as demais regiões do país. Basta lembrar que mesmo no auge do federalismo, no segundo quartel do século XIX, na prática as províncias eram comandadas pela mão de ferro do ditador Juan Manuel de Rosas, chefe político da província de Buenos Aires.
Isso se apresenta até hoje como parte essencial da cultura argentina. A oposição se manifesta na contraposição entre o tango e a milonga ciudadana portenhos e a zamba, a milonga campera, a chacarera, o chamamé e demais ritmos provinciais. Entre o tipo das ruas de Buenos Aires, com afinidades com o malandro carioca, que fala o lunfardo (uma espécie de dialeto portenho), e o “gaucho”, figura típica do interior, com muitas semelhanças com o “gaúcho” brasileiro, associado ao churrasco (“asado”), ao chimarrão (“mate”) e à cultura “criolla”.
Um efeito político muito visível desse corte é a presença persistente entre portenhos reacionários de uma permanente ojeriza frente a tudo o que vem do interior do país. Não é algo generalizado entre os boenarenses: é o equivalente local do paulista que odeia nordestinos e do carioca que vê o resto do Brasil como provinciano e atrasado. Mas é o bastante para gerar muito ressentimento entre os provinciais, que se creem vítimas do preconceito portenho. Em especial as provincias do norte argentino (Salta, Jujuy, Tucumán, etc.), que são os equivalentes no imaginário local do nordestino no Brasil, com sua cultura riquíssima em uma região pobre.
Agora o futebol. Até 1967 o campeonato argentino era quase que exclusividade dos clubes portenhos. Mas naquele ano, com a criação do campeonato nacional a coisa mudou, e o interior mostrou sua força. Mas atualmente a situação é outra. Desde o Clausura 1992, vencido pelo Newell’s (portanto, há quase 20 anos), o interior venceu apenas um torneio, o Apertura 2004, conquistado pelo mesmo clube, uma situação inédita desde a nacionalização do futebol do país, há quase 45 anos.
Pior: a temporada 2010/11 do futebol argentino teve 16 equipes do entorno de Buenos Aires na primeira divisão. Se somarmos o Olimpo (de Bahia Blanca, a 600 km da capital, mas situado na provincia de Buenos Aires), sobraram apenas três clubes do interior na divisão principal do futebol do país: Colón, Godoy Cruz e Newell’s. O Rosário Central, símbolo da força do futebol provincial, com sua torcida imensa, seus títulos importantes e sua imensa tradição (foi o primeiro time do interior a ser campeão nacional, em 1971) estava de fora. A importantíssima cidade de Córdoba também, assim como todo o norte do país (na temporada atual a situação se modificou, com o ascenso de quatro clubes do interior e o descenso de quatro da grande Buenos Aires).
Esse foi o contexto da proposta do campeonato gigante da primeira divisão. Um momento em que estavam marcadas eleições para a AFA, em que o grande opositor a Julio Grondona era o empresário Daniel Vila. Muito ligado ao interior do país, onde controla um enorme império de comunicações, Vila também é presidente do Independiente Rivadavia, de Mendoza, clube da B Nacional. E o mote de sua campanha de oposição a Grondona era precisamente a incorporação do interior ao futebol argentino.
Assim, o campeonato gigante teve muito pouco a ver com o descenso do River Plate. No máximo houve a esperança de que a presença do Milo na B Nacional faria com que sua gigantesca torcida apoiasse a idéia. Mas os motivos mais importantes foram outros. A AFA quis mostrar seu interesse pelo futebol do interior em um contexto em que o mesmo estava em seu pior momento, para neutralizar seu maior inimigo político. E o governo, ainda que não tenha sido exatamente um protagonista do processo, gostou da possibilidade de ver o futebol incluindo novos atores.
A reação generalizada impediu temporariamente a realização do mega-campeonato, cujos objetivos nada têm de esportivos, e são politicamente motivados. Mas o fantasma segue vivo. E o anúncio recente da AFA de que a próxima temporada do futebol argentino aposentará os torneios curtos apenas reacendeu o medo de que tal fórmula possa ser aplicada.
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