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Futebol e Política: as transmissões de TV

De todas as intervenções recentes do governo argentino no campo do futebol, nenhuma é tão polêmica quanto a questão dos direitos de transmissão das partidas dos torneios locais pela TV. Uma questão que envolve muitos temas e que não pode ser visto apressadamente.

Efetivamente há uma crítica praticamente incontestável: o fato de se utilizar dinheiro público para tal finalidade. O que fica ainda pior pelo fato de a AFA ter tamanho controle sobre as transmissões. Uma consequência é o fato de por vezes os telespectadores serem  “brindados” com editoriais lidos por Marcelo Araujo (que narra os principais jogos dos torneios domésticos) na abertura das jornadas, dirigidos diretamente aos desafetos de Julio Grondona.

Mas há um outro lado na questão: a situação anterior ao Futbol para Todos (ou simplesmente FPT; é o nome dado à parceria governo/AFA para transmissão das partidas), que tinha elementos francamente abusivos. Se passava apenas uma partida por TV aberta, normalmente jogos inexpressivos, sem a presença dos grandes ou de equipes que lutassem pelo título. A maioria dos jogos, incluindo as partidas que envolvessem os grandes e os líderes da tabela, bem como os clássicos, só eram vistos pelo Pey-Per-View mantido por uma associação entre o canal TyC Sports e o Grupo Clarín.

O que significa que, ainda que a TV a cabo tenha uma relativa abrangência no país, a maioria da população ficava impedida de ver as partidas que realmente interessavam (havia algo como 800 mil assinantes, em um país de 40 milhões de habitantes). Mas a parte mais odiada pela população era a proibição de que os gols da rodada fossem exibidos por outros canais de TV antes da emissão do programa Futbol de Primera nas noites de domingo pelo canal 13 (propriedade do Grupo Clarín). Assim, os não assinantes do PPV sequer podiam ver os gols das partidas antes das noites de domingo.

A cereja no bolo era a insatisfação dos clubes com a situação, inclusive porque julgavam receber muito pouco em troca dos fabulosos lucros que o futebol proporcionava aos detentores dos direitos. Em meados de 2009, endividados, pediram uma renegociação, que não foi aceita pelas empresas de comunicação. Em guerra com o Grupo Clarín, com quem mantinha rusgas violentas desde a crise com os agricultores e a ley de medios, o governo viu a chance de se promover e impor uma derrota brutal ao inimigo. Propôs à AFA a quebra unilateral do contrato, em troca de dar à entidade de Grondona o controle total sobre as transmissões e triplicar os valores pagos (de 230 para 720 milhões de pesos). A exigência era que todas as partidas deveriam ser transmitidas por sinal aberto.

O FPT foi um grande negócio para a AFA. Com o programa (este ano estendido também à B Nacional), Julio Grondona passou a ter um poder ainda maior que antes, gerenciando as transmissões e uma verba muito maior de TV. Por seu lado, o kirchnerismo ganhou mais um argumento para a tese de que é o grande defensor da maioria, contra os odiosos monopólios que beneficiam os mesmos de sempre.

A partir de então o que se vê é uma discussão bastante polarizada. Os principais veículos da imprensa argentina, alinhados com a oposição, só vêem defeitos na iniciativa, e sequer se lembram que ela não teria existido se não fosse a abusiva situação anterior. Por seu lado, os defensores do governo garantem que Cristina Kirchner não teve outro remédio a não ser intervir diretamente em uma situação que de fato era lamentável, ainda que nesse caso se evite a discussão sobre se não haveria outra forma de intervir sem envolver dinheiro público.

Na imprensa não alinhada explicitamente com governo ou oposição, o programa é visto com cautela. Os outros canais de TV vêem com simpatia, já que passaram a ter o direito de mostrar os gols da rodada quando desejassem (e alguns passaram a emitir partidas, já que a TV Pública não mostra todas). O narrador uruguaio Victor Hugo Morales, da rádio Continental (talvez o mais popular do país) foi um dos que defendeu a intervenção governamental, considerando absurdo que a população estivesse privada de ver os jogos de futebol do país. Mas a questão do uso de dinheiro público e o aumento dos poderes da AFA frequentemente são ressaltados como problemas do FPT.

O que se vê ao fim é uma situação muito polarizada, que possivelmente não seja boa para o país. De um lado, os que são contra o projeto, atacam todos os seus aspectos e acham plenamente razoável que só pessoas que paguem PPV possam ver partidas interessantes ou até os gols da rodada. De outro, os que não vêem limites para a intervenção governamental do futebol. O que o FPT de fato mostra é que há pouca gente disposta a pensar numa solução boa para clubes e público sem dinheiro público envolvido. Política e interesses pessoais parecem ser as únicas motivações dos envolvidos.

 

 

Tiago de Melo Gomes

Tiago de Melo Gomes é bacharel, mestre e doutor em história pela Unicamp. Professor de História Contemporânea na UFRPE. Autor de diversos trabalhos na área de história da cultura, escreve no blog 171nalata e colunista do site Futebol Coletivo.

4 thoughts on “Futebol e Política: as transmissões de TV

  • Diogo Terra

    Tiago, Clarín e La Nación estão “unidos” por seu conflito com o governo, porque não dá pra chamar um espectro que inclui Macri, Duhalde, Alfonsín filho (um milésimo da capacidade do pai) de opositores decentes…

    Lembro da final Boca x Real Madrid, em 2000, quando os demais canais fora do eixo TyC ficaram proibidos até mesmo de mostrar os bastidores. Só depois do jogo, com a vitória consumada, é que foram vistos gols, volta olímpica, etc.

    Carlos Avila ficou marcado pela opinião pública, mas os jornalistas “domesticados” tiveram que fazer cara de pastel para não admitir que havia esquema monopolista.

    Uma coisa é certa: o que o governo paga pelas transmissões é ninharia perto do que vai se roubar por aqui com a Copa. Mesmo levando em conta que a economia argentina é 1/7 da nossa…

  • Tiago de Melo Gomes

    Na minha modesta opinião uma coisa que tem atrapalhado muito a Argentina é a ausencia de uma oposição digna do nome. O que se tem agora é um amontoado de pessoas medíocres, com um discurso lamentável, que só tem em comum o fato de odiar o governo (possível exceção é o pessoal socialista de Santa Fé). Na minha ultima viagem a Argentina, em agosto, o que mais ouvi foi: “não morro de amores por esse governo, mas essa oposição não tem a menor condição, entao voto em Cristina”

  • Rafael Kafka

    Desde a lei de Medios a Argentina destruiu a Liberdade de expressão e virou uma ditadura. Da mesma forma que a Ditadura dos anos 70, Cristina usa o futebol dentro da velha tática de Pão e Circo. Em nenhum país sério se admitiria a ideia imoral de se usar dinheiro público para se comprar transmissões de futebol.

  • canalha_RS

    Acordo com Rafael Kafka. Nao gastaria tanto dinheiro em futebol, é ridiculo mesmo isso.

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