Futebol argentino relembra o passado

Racing que venceu pela 9ª e última vez o campeonato amador, em 1925. Era o maior campeão nacional

Nos últimos dias, o público do futebol argentino vem redescobrindo o passado do esporte no país, cujo cenário nacional era então costumeiramente reduzido aos campeonatos profissionais iniciados em 1931. Uma revisão reforçada hoje pela Asociación del Fútbol Argentino.

1936 com dois campeões argentinos

Para começar, o San Lorenzo recebeu um título extra. A AFA, que entre 1967-85 e desde 1991 instituiu um cenário em que há dois campeões argentinos por ano, determinou um antecedente a isso para 1936. Justo no primeiro ano em que a entidade organizou o campeonato que desde 1931 era formulado pela Liga Argentina de Football. Fundada em 1934, a AFA reconheceu as antecessoras e, em sua “estreia”, ensaiou o que faria décadas depois: dois campeonatos de pontos corridos em turno único para um ano.

Em seu livro de Memória e Balanço do ano de 1935, a AFA assim previu-os, antecipando que o vencedor do primeiro receberia o troféu da Copa Honor Municipalidad de Buenos Aires, antiga competição travada entre 1905-1920 sob o formato clássico de Copa: mata-matas desde o início, mas que naquele 1936 premiaria um campeão de liga mesmo. Ali, ficou com o San Lorenzo.

Já o segundo certame premiaria o vencedor com o troféu chamado de Copa Campeonato de Primera División, concedido aos vencedores da extinta Asociación Argentina entre 1900 e 1926. Ficou com o River Plate. Como no livro de Memória e Balanço de 1936 a AFA registrou que o San Lorenzo venceu um torneio tradicionalmente disputado em formato de Copa, a imagem passada foi que os cuervos venceram outro do tipo e que só o River era campeão de 1936.

San Lorenzo campeão de 1936: a Copa Honor passou a valer como título de liga

Essa impressão foi corroborada pelo fato de que o River venceu o San Lorenzo pela Copa Oro, um tira-teima também já previsto em 1935 para os vencedores dos dois torneios de 1936. Só que ele não servia para definir o campeão da temporada, como seria muito apontado, e sim, tão-somente, para definir quem representaria a Argentina na Copa Río de la Plata, tradicional tira-teima daqueles tempos entre o campeão argentino e o uruguaio.

A AFA, que a partir do ano seguinte resolveu retomar o que já vinha sendo feito (campeonato único por ano, em pontos corridos e em turno e returno), enfim veio a assumir em 4 de julho último a oficialidade do título sanlorencista de 1936 como um campeonato argentino a mais.

Os campeonatos amadores (1891-1934)

Um das maiores incongruências do futebol argentino, a ter grandes efeitos nas discussões dos torcedores, foi “desfeita” pelo Clarín em 2 de agosto passado.  A imagem mais propagada pela mídia argentina é a de que o campeonato começou com o advento oficial do profissionalismo, em 1931. Pior para Racing e Huracán, que tiveram a maior parte de seus títulos nacionais no período amador; a contradição vem do fato de que o próprio amadorismo sempre foi reconhecido pela AFA, que o considerou em 1937 para definir quais clubes teriam votos de mais peso nas deliberações.

Só Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo atendiam ao requisito mais restritivo: mais de 15 mil sócios, 20 anos de participação ininterrupta na elite (o que, obviamente, passaria pelo período amador) e ao menos dois títulos nela – medida que, se não considerasse o amadorismo, impediria a dupla de Avellaneda (Racing e Independiente), então com zero títulos profissionais, de estar entre os chamados “cinco grandes”. O San Lorenzo também ficaria de fora, por conta do não reconhecimento do título de 1936; só teria o de 1933.

Gráfico do Clarín (clique para ampliar) na contramão da visão mais difundida (e equivocada). Inclui a Copa Honor de 1936 convertida em campeonato para o San Lorenzo

O irônico é que foi no amadorismo, especialmente nos anos 20, que o futebol do país, em sua primeira geração de ouro (leia aqui), se impulsionou como fenômeno de massas. Naquela década, 4 vezes, a seleção argentina enfim passou a vencer a Copa América. Não à toa, os clubes campeões daquele decênio se configurariam nos mais populares do país, exceção feita ao Gimnasia LP, que ainda assim sai muito beneficiado: seu título de 1929 é justamente o único que conseguiu na elite e vinha sendo ignorado ou considerado menos importante até que a Copa Centenario, realizada em 1993.

Os demais campeonatos dos anos 20 foram todos vencidos pelos futuros cinco grandes ou pelo Huracán, que por um bom tempo foi seriamente considerado simbolicamente como “sexto grande” e inspiraria diversos clubes do país a adotarem seu nome – o de Corrientes e o de Tres Arroyos já jogaram na primeira divisão. Até a era profissional, onde foi campeão só em 1973, o Huracán, das equipes ativas, só tinha menos títulos argentinos (4) que Racing (9) e Boca (6), superando o rival San Lorenzo (3), o Independiente (2) e o River (1).

Com a visão unificada, o Racing passa a dividir com o arquirrival Independiente a 3ª colocação dentre os campeões argentinos, cada um com 16. O equívoco de só considerar o profissionalismo o colocava como último dentre os grandes, com 7, estando atrás dos 10 do “intruso” Vélez. O San Lorenzo, também com 10 títulos, passa a 14, somando seus 3 amadores àquele renegado de 1936. O Huracán, de 1, passa a ter 5, se aproximando dos 6 dos hoje mais respeitados Newell’s e Estudiantes e tendo mais que Rosario Central e Argentinos Jrs. O Quilmes “dobra”, com 2 títulos em vez de 1.

O Boca salta de 24 para 30, se aproximando mais do River, que apenas soma 33 com seu único amador. Estudiantes, com 1 a mais (passam a ser os ditos 6) e Independiente também lucram pouco, especialmente o Rojo, que até então, com 14 taças profissionais, gabava-se de ter o dobro das 7 do Racing. Com a nova percepção, terá de aguentar o fato de ter se igualado ao rival.

Huracán campeão de 1928. Tinha Stábile, artilheiro da Copa do Mundo de 1930 (3º agachado, com o mascote), e Onzari, autor do primeiro gol olímpico (último agachado)

A tabela do Clarín ecoou em outros meios, especialmente após a AFA divulgar estatísticas do passado amador (houve quem dissesse que ele enfim foi reconhecido pela AFA, o que é uma inverdade: ela sempre o reconheceu), com um detalhe: ao menos o site reconhece 1891. Este foi o ano do primeiro campeonato argentino de futebol, fazendo dele a mais antiga liga nacional fora do Reino Unido, ainda que fosse geograficamente restrita à Grande Buenos Aires. Só que a então Argentine Association Football League, a organizadora, não conseguiu realizar um de 1892, sendo extinta. Uma nova AAFL foi formada e organizou o certame de 1893, reiniciando a história do campeonato. Falamos aqui e aqui.

A AFA vinha se considerando sucessora apenas desta segunda AAFL e o torneio pioneiro de 1891, vencido pelo St. Andrew’s, só vinha tendo valia para historiadores e alguma mídia. Tanto que o órgão celebrou seus cem anos não em 1991, mas em 1993, promovendo a tal Copa Centenario que o Gimnasia venceu. Embora já presente na web oficial da AFA a partir destes últimos dias (veja aqui), contudo, o título de 1891 ainda carece de um boletim oficial do órgão para enfim ser oficialmente assumido.  

Total de Campeonatos mais as diversas Copas

Copas

A Copa Argentina, disputada em 1969 e 1970 e retomada em 2012, não foi o primeiro torneio do tipo no país. Diversos foram realizados, sobretudo no amadorismo, relembrados hoje pela AFA, a publicá-los em suas estatísticas (clique aqui). Foram inclusas a Tie Cup Competition de 1900, vencida pelo Belgrano Athletic e primeiro título internacional de um clube argentino (visto que era travada por times das associações argentina, rosarina e uruguaia), passando pela dita Copa Honor de 1905-20, similar à Tie Cup mas com final sempre jogada em Montevidéu, a Copa Ibarguren (que reunia o campeão “argentino” com os das ligas regionais para definir moralmente o campeão nacional)…

Os finalistas da Tie Cup recebiam a Copa Jockey Club ou a Copa La Nación, conforme o órgão em que estavam afiliados. A Copa Estímulo ocorria quando o campeonato se paralisava por conta de jogos da seleção, mesma razão da Copa Suecia, jogada durante a Copa do Mundo de 1958, já na era profissional. O título argentino do Gimnasia em 1929 era originalmente uma Copa Estímulo, convertida no campeonato após a falta de um próprio para aquele ano.

Também na era profissional, a Copa Adrián Escobar reunia os sete melhores do campeonato. O embaixador do Reino Unido ofertava a Copa Británica George VICopa Beccar Varela e Copa Competencia foram algumas esporadicamente lançadas pela liga. Até o presidente argentino Pedro Pablo Ramírez também premiou Copas em seu nome. Por fim, a dita Copa Centenario de 1993, vencida pelo Gimnasia, e a primeira edição da Supercopa Argentina (tira-teima entre o campeão argentino e o da Copa Argentina), levantada em 2012 pelo Arsenal.

Alguns campeões coperos “reconhecidos” sequer disputam futebol hoje: Belgrano Athletic, Alumni, Porteño – que também venceram o campeonato amador -, Rosario Athletic e San Isidro (CASI) são todos hoje clubes voltados ao rúgbi. Os retratamos na seção voltada à bola oval, aqui.

O grande beneficiado é, outra vez, o Racing, a poder ostentar outros doze títulos, passando nacionalmente o Independiente. O Boca “recebe” 11. Independiente, 9, River, 7, Huracán, 6, Rosario Central, 5, Newell’s, 3 e Estudiantes, 2. Central e Huracán se beneficiam muito também: os auriazuis, com dois campeonatos argentinos a menos que o rival Newell’s, se igualam a ele em títulos nacionais; e os quemeros se colocam à frente do Vélez e se aproximam mais do rival San Lorenzo, lembrando os tempos de “sexto grande”.

Por fim, os nanicos Arsenal, Atlanta, Banfield, Central Córdoba de Rosario, Estudiantes de Buenos Aires, Gimnasia LP, Nueva Chicago, Quilmes, San Martín de Tucumán, Sportivo Balcarce, Sportivo Barracas e Tiro Federal de Rosario ficam lembrados com um título a mais cada.

*Agradecimentos especiais a Esteban Bekerman, do 442 Perfil.

O Racing é o maior beneficiado pela nova e mais séria visão. Fãs já reúnem orgulhosamente todas as taças
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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