O tri riverplatense na Libertadores teve vários pontos em comum com o primeiro título: jogo sob chuva e presença uruguaia marcante (Carlos Sánchez e Camilo Mayada ontem, Nelson Gutiérrez e Antonio Alzamendi em 1986) são alguns mais evidentes, assim como o desafogo – ontem por encerrar um jejum de 19 anos, em 1986 pela primeira vez. Mas prestando-se mais atenção pode-se detectar semelhanças entre os treinadores e os talismãs das duas conquistas.
O jovem Marcelo Gallardo tinha como credenciais como técnico apenas títulos no decadente campeonato uruguaio com o Nacional. Se não foi recebido com resistência, com os supersticiosos lembrando os sucessos recentes de antigos ídolos como técnicos de início de carreira (Daniel Passarella, Ramón Díaz, Américo Gallego), também não empolgava.
Imagine então Héctor Veira, um homem sem qualquer passado por Núñez, e sim pelo San Lorenzo (foi eleito o maior ídolo deste clube, no centenário sanlorencista, em 2008). “Cheguei no River em setembro de 1984. Os dirigentes estavam muito preocupados pela baixa média do rebaixamento e havia um indubitável temor no clube. Eu não tinha muito nome nem muita experiência, salvo meu passo pelo Banfield e pelo San Lorenzo. Creio que me contrataram pelo futebol audaz que havia proposto com aquela equipe do San Lorenzo. Um futebol que se ajustava perfeitamente à tradição e à história do River”.
Explica-se: Veira, ex-Corinthians nos anos 70, foi um endiabrado meia-esquerda do San Lorenzo nos anos 60 que não foi mais longe por se desleixar no físico. Folclórico, manteve a idolatria mesmo jogando também no rival Huracán e declarando-se torcedor dele na transferência (ele de fato foi criado no bairro de Parque de los Patricios, sede huracanense: veja aqui). A ponto de ser insolitamente o carregado pela torcida azulgrana quando o ex-clube venceu a segunda divisão em 1982: isto porque ele era técnico do Banfield, adversário do San Lorenzo no jogo do acesso – o treinador do campeão era José Yudica.
Sem clima, Yudica deixou o San Lorenzo e Veira assumiu a velha casa em 1983. Com um time que acabava de voltar da segundona, disputou até a última rodada o título da elite naquele ano, perdendo só por um ponto na última rodada para um Independiente que no ano seguinte faturaria Libertadores e mundial. O River havia vivido péssimo ano (teria sido rebaixado se o sistema de promedios não fosse implantado exatamente ali, condenando no lugar o Racing) e de pouco ajudou chegar à final do Nacional de 1984, no primeiro semestre: perdeu de 3-0 em pleno Monumental para o nanico Ferro Carril Oeste.
“Quando ultrapassamos o fantasma do rebaixamento, passamos a duas metas seguintes: formar um plantel competitivo e lutar com tudo pelo campeonato. E fui armando a equipe aos pouquinhos. Corri algumas peças. Avancei Francescoli quinze ou vinte metros no campo. Passei Alfaro como volante pela esquerda e Enrique como volante para a direita – El Negro (Enrique) jogava de ponta. Roque (Alfaro) e Héctor (Enrique) tinham muitas dúvidas porque as coisas não lhes havia ido bem no River, e outros estavam caídos animicamente eram Gordillo e Montenegro. Com os quatro falei pacientemente, os convenci que podiam, os banquei porque sabia que eram excelentes profissionais e caras honestos”.
“Se agregaram o talento de Morresi, a quem conhecia do Huracán; e as diagonais e gols de Amuchástegui. Tínhamos um zagueiro da categoria de Ruggeri; um goleiro sóbrio, seguro e experiente como Pumpido; o ofício de Gallego para cortar no meio; Saporiti ou Borelli para bloquear no fundo. Os fomos mentalizando para jogar sempre igual em qualquer lado, para respeitar uma ideia de futebol, para pensar permanentemente no arco rival, para manter a dinâmica nos noventa minutos. Tudo começou a se aceitar”.
O River não era campeão desde o gol de Mario Kempes (em final contra o Ferro, aliás) em 1981. A contratação de Kempes em dólares foi economicamente um desastre, porém, com a desvalorização da moeda em razão dos desmandos da ditadura e derrota nas Malvinas desmanchando o elenco e trazendo recessão a Núñez. Foi necessária meia década para a taça nacional voltar, jejum longo demais para quem desde 1975 só ficara em 1976 de mãos vazias. Esses cinco anos foram o maior período sem troféus até a decadência recente entre 2008 e 2014. A taça voltou ao fim da temporada 1985-86, mas teve seu preço: o astro Francescoli foi vendido em seguida e não jogaria a Libertadores, iniciada no segundo semestre.
“A equipe, com o tempo, mudou alguns nomes e algumas características. Quando o clube transferiu Amuchástegui, me perguntaram se eu gostava de Alzamendi (que faria o gol do título mundial) e disse que sim, que era o cara ideal para substituir o cordobês. E quando Francescoli se foi, chegou Centurión (que seria o artilheiro dos campeões da Libertadores). Tinha, além, Alonso no lugar de Morresi (que entrou em decadência após o título nacional). Com a pegada de Alonso e a velocidade de Alzamendi e de Centurión, o River se transformou em uma temível equipe de contra-ataque”.
A Libertadores era duríssima e só o líder do grupo avançava à segunda fase. Como em 2015, o River deixou o Boca naquela ocasião, além do temível Peñarol e do Montevideo Wanderers. A diferença é que foi sem sufoco, com cinco vitórias e um empate, na Bombonera. Pela semifinal, o campeão anterior, o maior Argentinos Jrs da história, que conseguiu impôr um 2-0 no Monumental. Foi necessário jogo-desempate que teve até prorrogação, finalizada em um duro 0-0 que beneficiou o saldo melhor do River.
E foi na fase semifinal que o River contratou um desconhecido: Juan Gilberto Funes, um jogador do interior do país assim como Lucas Alario. Mas enquanto Alario vinha do tradicional Colón de Santa Fe, os inícios de Funes (sem parentesco com o zagueiro Ramiro Funes Mori, autor do terceiro gol ontem) foram mais obscuros, no Huracán de San Luis, Jorge Newbery de Villa Mercedes e Gimnasia y Esgrima de Mendoza. Foi no Gimnasia que, após destacar-se nos nacionais de 1983 e 1984, passou ao forte narcofútbol colombiano da época. Foi artilheiro no Millonarios de Bogotá.
Mas enquanto Alario não sentiu a pressão de repor a ausência do recém-vendido Teo Gutiérrez e mostrou credenciais imediatamente, com um gol e duas assistências nas semifinais de 2015 contra o Guaraní, Funes lesionou-se. El Búfalo nem queria jogar a primeira final, temendo que agravasse a lesão. Veira o convenceu: “praticamente estava descartado. O levei do mesmo jeito à viagem, mas ao mesmo tempo havia anunciado Morresi na equipe. De todos os modos, joguei uma última carta: na manhã da partida fui com Juan em uma caminhonete a um campinho afastado do hotel”.
“Lhe disse: ‘veja, Juan… esta gente te respeita muito e tua presença na equipe sem dúvida os vai pressionar. Tens que jogar 50%’. O provei durante 20 ou 25 minutos com chutes ao gol. Até os jornalistas argentinos acreditavam que tudo era um truque meu e que Funes, finalmente, não ia jogar”. A final era na mesma Colômbia onde o centroavante havia brilhado, contra o América de Cali. Veira contava que, se Funes não jogasse bem, ao menos atrairia a marcação, deixando colegas mais livres.
Saiu melhor que a encomenda. Com 23 minutos, o reforço abriu o placar da final, assim como Alario faria (já aos 45) em 2015. O River terminaria vencendo por 2-1. Na volta, El Búfalo se consagrou de vez, marcando o único gol no Monumental. A descrição de Veira explica o apelido: “Funes era um contra-golpeador feroz. Quando partia em velocidade, se fazia praticamente incontível. E se dava um espacinho de vantagem na área, matava”.
Que Gallardo e Alario tenham melhor sorte que seus antecessores. Pois Veira, apesar dos títulos históricos, não teve o contrato renovado pelo novo presidente em 1987 – e foi comunicado disto por telefone. Já Funes não repetiu o deslumbrante desempenho da Libertadores nos torneios seguintes. Não vingou na seleção (quatro jogos, todos perdidos, sendo três em Buenos Aires, e zero gol) e deixou o River em 1988 com apenas 5 gols em parcos 29 jogos pelo campeonato argentino.
O pior viria depois: após uma temporada na Grécia, veio ao Vélez em 1989 e retomou a boa forma, a ponto de começar a negociar com o Boca em 1991. Mas um problema cardíaco matou-o precocemente antes que estreasse. Dentre aqueles que inspirou, o goleador do próprio Vélez nas finais da Libertadores e Mundial de 1994, Omar Asad – ele torcia para o River, tinha Funes de ídolo e no início da carreira tinha até o mesmo corte de cabelo. El Turco Asad, por sinal, começara a carreira quando o Vélez tinha o próprio Veira de técnico e outro personagem de 1986, o defensor Ruggeri.
“Não o pude conhecer por pouquinho. Quando cheguei ao Vélez ele havia acabado de ir-se. Mas há uma história incrível atrás: comecei a treinar com o time principal do Vélez mas seguia tomando banho no vestiário juvenil, até que um dia apareceu Ruggeri. ‘Neném, o Bambino (apelido de Veira) não lhe disse para se trocar conosco?’, me segurou e me levou pelos cabelos, todo ensaboado, ao vestiário deles. ‘De agora em diante vais a usar este box, sabes quem se trocava aqui? Juan Gilberto Funes’. Eu queria morrer!”.
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