FP 10 Anos: quem defendeu o quarteto Boca, River, Racing e Independiente?
Em 9 de abril de 2009, era criado o Futebol Portenho, ainda que o anúncio oficial só ocorresse no dia 13. Como modo de marcar a data, vamos relembrar quem esteve nas duas principais duplas do futebol argentino: Boca & River e Racing & Independiente, quarteto que lidera o número de títulos nacionais e de torcedores no país e que forma com o San Lorenzo “os cinco grandes” do país; até hoje, ninguém defendeu todos os cinco, mas alguns poucos passaram por quatro. No mês passado, prévias dessa nota saíram nas matérias Quem defendeu Boca, River e Independiente? e Quem defendeu Boca, River e Racing?. Agora é hora de se aprofundar nos seletos nomes em comum em ambas – e ainda haverá mais nos próximos dias!
Zoilo Canaveri: nascido no Uruguai, virou uma personificação do vira-casaca. À primeira vista, por defender a seleção argentina (duas vezes), e sempre contra o Uruguai natal, ainda que fosse filho de argentinos. Mas sobretudo pelos clubes em que atuou. Sua família tinha raízes em Avellaneda, ficando associada ao Independiente – Canaveri estava no elenco vice-campeão de 1912, na primeira vez em que o Rojo chegou perto de um título na primeira divisão. Dali atravessou o Riachuelo para um time do bairro portenho de La Boca: na época, o River, onde só jogou uma vez em 1913. De 1914 a 1917, o ponta-direita então defendeu o Racing no período do recordista hepta argentino seguido da Academia, época em que Canaveri chegou à seleção. Canaveri foi campeão em todos esses anos de jogador racinguista.
Ainda entre 1916 e 1917, ele defendeu o Boca em alguns amistosos, mas seguiu carreira primeiramente em um rápido retorno ao Rojo em 1918. Voltou ao Boca no biênio 1919-20, quando os xeneizes venceram pela primeira vez a elite. Marcou doze vezes em 32 jogos como auriazul, mas não se firmou diante da concorrência contra o primeiro grande ídolo do clube, Pedro Calomino. Voltou então ao Independiente para fazer história: passou o restante da década no clube, integrando o famoso ataque Diablos Rojos, a virar sinônimo do próprio time. Esteve nos dois primeiros títulos da equipe no campeonato argentino, em 1922 e em 1926. De quebra, ainda foi o primeiro técnico do Rojo na liga profissional, em 1931. Dedicamos já esse Especial a Canaveri.
Vladislao Cap: de origem romena e polonesa, o defensor surgido no Arsenal de Llavalol despontou no Quilmes na segunda divisão de 1953. O Cervecero só ficou em quinto, mas El Polaco foi adquirido pelo Racing. Participou do título de 1958, no qual a Academia reigualou-se ao Boca como time mais vezes campeão argentino, virando em seguida jogador de seleção. Cap transferiu-se em 1961 a um Huracán ambicioso, a contratar outros membros recentes da seleção (casos de Norberto Menéndez, Juan Castro e Juan Bertoldi). O pacotão não engrenou, mas Cap seguiu como pôde trazendo segurança e foi contratado pelo River. Como recém-chegado ao novo clube, foi convocado à Copa do Mundo de 1962 mais pelas boas exibições como huracanense, ainda que não virasse ídolo histórico.
O River sofria desde 1957 sofria um jejum já incômodo, sem imaginar que a seca duraria nada menos do que dezoito anos, até 1975, em que pese os grandes elencos formados no período. Cap foi millonario até o fim da temporada 1965, vivenciando reiterados desgostos de títulos perdidos nas retas finais: foram quatro vices (1962, 1963 e 1965) e um terceiro lugar a um ponto do segundo em 1964. De modo mais cruel, o rival Boca era carrasco, isolando-se na liderança a partir de Superclásicos nas retas finais para ser campeão em 1962 (quando encerrou seu próprio jejum, de oito anos), 1964 e 1965 ou apenas para estragar os planos rivais mesmo – quando em 1963, fora da disputa após focar-se na Libertadores, venceu no Monumental e ajudou a taça a ficar com o Independiente. Cap pendurou as chuteiras em 1966, no Vélez.
Se como jogador El Polaco Cap jogou por Racing e River, como técnico trabalhou nos rivais. Apareceu no Independiente em 1971, com o Rojo aparentando entressafra após desmanchar-se de nomes históricos dos anos 60 – em especial os pontas Aníbal Tarabini e Raúl Bernao e o centroavante Héctor Yazalde. Ainda assim, conseguiu um título argentino inesperado, que parecia cair no colo do Vélez do supergoleador Carlos Bianchi até El Fortín surpreendentemente perder de virada em casa para um instável Huracán e acabar ultrapassado pelo Rojo. Com esse título, o Independiente pôde entrar na Libertadores de 1972 e assim iniciar seu recordista tetracampeonato em La Copa, embora Cap já não estivesse no comando desse ciclo. O ex-defensor ainda sofreria uma turbulenta passagem como técnico da seleção na Copa de 1974 antes de um bom trabalho no Platense quarto colocado em 1980. No natal de 1981, então, foi anunciado como novo comandante do Boca de Maradona, recém-campeão do Metropolitano mas precocemente eliminado no Nacional.
Porém, Cap pouco pôde contar com Maradona, desde fevereiro de 1982 concentrado com a seleção para a Copa do Mundo – esse longo período de concentração havia sido implementado em 1978 e, como deu resultados, foi repetido para 1982. O time caiu ainda na primeira fase do Nacional, o que não impediu que o River (também eliminado na primeira fase após ser o clube largamente mais desfalcado por conta da Copa) contratasse seu antigo zagueiro – em caso único não só de um técnico a rumar diretamente de um a outro mas também de comandar em um mesmo ano a dupla principal do país. O treinador, porém, durou pouco: em pleno exercício do cargo, foi vitimado por um infarto em setembro.
Osvaldo Pérez: na Argentina e no Uruguai, quem tem olhos puxados é comumente apelidado de El Chino (“O Chinês”), casos do goleiro Sebastián Saja e do armador Álvaro Recoba. Como esse já era o apelido do pai de Pérez, esse lateral-esquerdo foi mais originalmente alcunhado de El Japonés. Após Canaveri e no profissionalismo, Pérez é o único que jogou pelos quatro. Ele primeiramente defendeu o River nos anos finais do pior jejum do clube, sendo um dos pratas-de-casa constantemente valorizados a partir de 1970 pelo técnico brasileiro Didi. Muitos deles seriam protagonistas no fim da seca, mas não o lateral, que exatamente no início de 1975 (ano em que a seca terminou) passou ao All Boys.
No clube do bairro da Floresta, Pérez teve maior protagonismo como um lateral-artilheiro, recebendo duas oportunidades na seleção como jogador do Albo, algo raríssimo, ainda que os jogos não fossem oficiais – foram amistosos contra os clubes Aldosivi e Newell’s. No decorrer do ano, marcou no Metropolitano gols na dupla de Avellaneda (1-0 sobre o Racing e 1-1 com o Independiente) e no clássico com o Argentinos Jrs (3-2 para o time de Maradona). Para o Torneio Nacional, já aparecia como jogador do Independiente campeão epicamente com oito jogadores em campo na casa adversária. Deixou inclusive um gol nas semifinais com o Estudiantes, além de aplicar a “lei do ex” no All Boys na fase de grupos.
Não foi o suficiente para Pérez ir à Copa de 1978, mas ele adicionou ao currículo também a edição seguinte do Torneio Nacional, na edição 1978. Sem repetir na Libertadores o êxito do início da década, o Rojo iniciou entressafra e em 1981 El Japonés atravessou o quarteirão para firmar com o Racing, que tinha de vira-casacas também o goleiro Carlos Gay (outro a jogar em quatro grandes: não só defendeu ainda River e San Lorenzo como também o rival sanlorencista, o Huracán), o atacante Miguel Ángel Giachello e o técnico José Omar Pastoriza. No canto do cisne antes do rebaixamento em 1983, a Academia terminou em uma satisfatória quinta colocação, uma a frente do rival e a um ponto do pódio. A crise financeira, porém, não tardou a desmanchar o elenco: Julio Olarticoechea foi ao River a o ponta Gabriel Calderón fez a via inversa de Pérez, Gay, Giachello e Pastoriza, rumando ao Independiente.
O lateral foi ao Platense antes de aparecer no Boca no primeiro semestre de 1983. Só jogou dez vezes como xeneize e saiu após a eliminação no primeiro mata-mata do Nacional. Por outro lado, El Japonés Pérez escapou de estar presente nas duas campanhas cujos promedios condenaram o Racing ao rebaixamento ao fim de 1983. Ele atualmente trabalha no Independiente como um dos técnicos do time B, ao lado de Ricardo Pavoni.
César Menotti: meia-armador daqueles refinados para os fãs e lento para os críticos, ia bem no seu Rosario Central a ponto de chegar à seleção. No fim de 1963, até defendeu o River em amistoso contra a Juventus, mas fechou com o Racing mesmo. Teve desempenho interessante na Academia, que embora não terminasse no pódio tivera o melhor ataque do campeonato. Mesmo só atuando em metade do certame, El Flaco contribuiu com onze gols por um elenco que curiosamente reunia diversos jogadores que, como ele, passaram ou passariam pelo Santos – o goleiro Agustín Cejas e três outros componentes do quinteto ofensivo, casos do ícone alvinegro Dorval e dos dois juvenis que acompanharam o ponta-direita, os obscuros Luís Cláudio (centroavante) e Benedito Baptista (ponta-esquerda).
Menotti rumou então ao Boca. Esteve no time campeão argentino em 1965, mas já não foi tão bem. Saiu em 1966 rumo ao incipiente futebol dos EUA, com um gol seu sobre o Santos em surpreendente vitória do New York Generals atraindo-o para o clube paulista. Em comissões técnicas, começou com uma primeira heresia, ao trabalhar como assistente no Newell’s em 1970. Já como técnico consagrado com a Copa do Mundo de 1978, embora sem vingar no trabalho seguinte realizado no Barcelona, Menotti voltou ao Boca em janeiro de 1987. Chegou no meio da temporada 1986-87 e teve impacto imediato, tirando o time do 14º lugar a uma liderança provisória, embora perdesse fôlego na reta final. Ainda assim, chamou novamente a atenção espanhola, acertando com o Atlético de Madrid. O time figurou no pódio, mas sem competir seriamente pelo título de La Liga contra a Quinta del Buitre do Real Madrid.
Para a temporada 1988-89, El Flaco então acertou com o River, que fez muito barulho no mercado, em um time que mesclava campeões mundiais de 1978 e 1986 – no primeiro caso, além do treinador, chegava ainda o ídolo Daniel Passarella, demovido da ideia de aposentadoria pelo velho mestre. No outro, o volante Sergio Batista e o atacante Claudio Borghi, também ícones do Argentinos Jrs campeões da Libertadores de 1985, juntavam-se a Héctor Enrique, colega deles no mundial do México que remanescia no elenco. Vinham ainda três membros do Newell’s campeão da temporada anterior, casos dos laterais Julio Zamora e Fabián Basualdo e do atacante Abel Balbo, além de dois ex-comandados de Menotti no Boca: o atacante Jorge Rinaldi e o zagueiro Jorge Higuaín, pai de Gonzalo. Só que o timaço no papel jamais engrenou; o mais próximo que o elenco esteve das cabeças foi um terceiro lugar na 31ª rodada, a sete pontos do futuro campeão Independiente.
Menotti não renovou a estadia em Núñez e seguiu trabalhando por Peñarol e seleção mexicana até retornar ao Boca em 1993, em caso único do técnico que o clube teve antes e depois de uma passagem pelo rival. O Boca vinha de dez rodadas complicadas no Apertura 1993, onde só marcara seis gols. El Flaco assumiu na 12ª e, tal como em 1987, comandou uma grande reação, a incluir um 6-0 no Racing, para terminar o torneio a apenas dois pontos do campeão River. Porém, o desempenho não se manteve no Clausura e no Apertura de 1994, ano em que tanto foi goleado por 6-1 pelo Palmeiras na Libertadores como pôde ir à final da Supercopa – para então cair por 3-0 em La Bombonera para o River na penúltima rodada do Apertura, a última partida de Menotti à frente dos auriazuis.
Após um ano sabático, o técnico então chegou ao Independiente, time com o qual ficaria mais associado. Dos técnicos jamais campeões no Rojo, é provavelmente o mais querido pela torcida, com três passagens, entregando bom futebol ao menos na primeira: na temporada 1996-97, foi vice do Apertura e teve um enganoso quarto lugar no Clausura, pois entregou o cargo a quatro rodadas do fim (para poder acertar com a Sampdoria) deixando o Rojo na liderança após um 6-0 sobre o então líder Colón. Sem vingar na Itália, regressou a Avellaneda ainda em 1997 para ficar até 1999. Voltaria em 2004 e também como gerente, em 2009. Detalhamos neste Especial do ano passado.
Bônus 1 – ao menos duas famílias também se fizeram representar no quarteto. A primeira foi a dos irmãos Bargas: seu nome mais célebre foi o do defensor Ángel Bargas, revelado pelo Racing de 1965 antes de vingar no Chacarita: integrou o único título desse clube na elite (em 1969) e adiante tornou-se o primeiro jogador que a seleção convocou do futebol europeu, indo à Copa de 1974 como atleta do Nantes. Héctor Bargas foi um dos juvenis que o River usou de emergência na rodada do desjejum da pior seca do clube, em 1975, que em contrapartida acabaram boicotados pelos titulares. Eduardo Bargas por sua vez foi profissionalizado no Independiente, em 1977, mas teve poucas chances tanto lá como no Racing (1981) e no Boca (1982). A carreira obscura de Héctor faz com que ocasionalmente se divulgue erroneamente que Eduardo teria sido o juvenil do River em 1975 e, assim, defendido o quarteto todo tal como El Japonés Pérez.
Outra família foi a dos Rambert, a única envolvida nos cinco grandes. Em Avellaneda, o atacante Néstor Rambert foi e voltou ao Independiente: profissionalizado lá em 1962, seguiu carreira no Chacarita e reforçou como opção de banco o Racing campeão argentino, continental e mundial entre 1966 e 1967 – para então trabalhar nos anos 90 como técnico juvenil no Rojo, sendo inclusive o primeiro treinador de Sergio Agüero. Seu sobrinho Sebastián Rambert (filho de Ángel Rambert, que defendera a seleção francesa nos anos 60) foi mais longe: também atacante, chegou à seleção na esteira de grande fase pelo Independiente que venceu entre 1994 e 1995 um Clausura, uma Supercopa (foi dele os gols vermelhos na final) e uma Recopa. E também reforçou em seguida a Internazionale, anunciado juntamente com Javier Zanetti, ironicamente o negócio menos ansiado pelos italianos na apresentação conjunta que tiveram.
Falamos dos Rambert neste Especial, a destacar uma faceta menos conhecida de Sebastián: El Pascualito ainda é o último jogador a transferir-se diretamente entre os rivais do Superclásico. Lesões lhe minaram espaço em Milão e ele então reforçou o Boca na temporada 1996-97, passando ao River ainda no início da temporada seguinte. Ficou em Núñez até 2000, ganhando três títulos argentinos e a Supercopa 1997, mas cedo perdeu a titularidade – embora desenvolvesse boa relação com o treinador Ramón Díaz. Teve novo ciclo no Independiente na temporada 2000-01 e, já com chuteiras penduradas, retomou a parceria com Ramón Díaz: foi seu assistente técnico no San Lorenzo campeão do Clausura 2007 e na malfadada passagem de Díaz pelo Independiente em 2012.
Bônus 2 – em 2017, fizemos um Top 17 de “judas” do futebol argentino, com o critério objetivo de quem defendeu ao menos duas duplas rivais no país. Abaixo de Boca & River e Racing & Independiente, duas rivalidades têm seus argumentos para serem consideradas à terceira colocação de mais importante do país: Newell’s x Rosario Central e Huracán x San Lorenzo. Menotti é o único a trabalhar nos dois lados do Superclásico e no Clásico Rosarino. E também o único a trabalhar no Clásico de Avellaneda e no Rosarino. Como seu primeiro grande trabalho foi no Huracán, só faltou-lhe o San Lorenzo para unificar tudo.
Considerando apenas Boca & River e a segunda rivalidade da capital que é Huracán & San Lorenzo, somente Adolfo Pedernera, José Varacka e Héctor Veira estiveram nos quatro – e Veira também esteve em Palmeiras e Corinthians também (!). Houve ainda dois que defenderam a segunda dupla da capital e a dupla de Avellaneda: o citado Carlos Gay e outro goleiro, Esteban Pogany. Esses três e outros vira-casacas das principais camisas do país serão detalhados em Especiais próximos nessa semana festiva. Por fim, o citado Juan Bartoldi é o único a ter sido canalla, leproso, cuervo e quemero.
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