Folclores de Racing x Independiente, o Clássico de Avellaneda

Abraçado por Rambert (sobrinho de vira-casaca) e Cagna, Hugo Pérez não comemora gol de 1994 que deu fim a duplo tabu do Independiente

A final da liguilla 2015 não deixa de ser um bom presente a um dos maiores clássicos do mundo. Afinal, o primeiro Racing x Independiente na elite argentina completará cem anos ainda neste ano. Mas o dérbi é tão rico que já tinha boas histórias antes. Hora de relembrarmos alguns dos personagens e episódios mais marcantes da dupla de Avellaneda, a menor das sete cidades que têm pelo menos dois campeões mundiais – Milão, Montevidéu, Buenos Aires, Madrid, São Paulo e Porto Alegre são as outras.

Tabus caseiros de quatorze anos

A primeira final, domingo, rendeu ao Racing sua primeira vitória em um clássico realizado no Estádio Libertadores de América, desde 2009 a nova casa rival. E também a primeira vitória na casa roja desde 2001, ainda nos tempos da Doble Visera – a Academia venceu fora de casa em 2004, mas o Independiente mandou essa partida no campo do Lanús. O curioso é que o inverso durou o mesmo período: os alvicelestes não perderam no Cilindro para o rival entre 1980 e 1994. O que nos leva ao próximo tópico…

Figuras em um que torcem para o outro

Já teve jogador que não comemorou gol no clássico, e duas vezes! A invencibilidade racinguista no Cilindro ruiu em 1994 com um 2-0. Quem abriu o placar, de falta, foi o volante Hugo Pérez, presente naquele ano na Copa do Mundo. Era o segundo gol que ali fazia diante do “seu” Racing: era ex-jogador do rival e não escondeu ao virar a casaca que sempre foi torcedor racinguista – herança de um tio, pois seus pais são ambos rojos. El Perico (“O Periquito”) Pérez foi o último campeão em comum na rivalidade, sendo reserva pela Academia na Supercopa de 1988 e titularíssimo no Independiente campeão argentino e da Supercopa naquele 1994. Hoje joga pela equipe sênior do Racing e pediu no twitter respeito mútuo entre os rivais de Avellaneda após o episódio do gás entre Boca e River na Libertadores 2015.

O Independiente, aliás, se deu muito bem ao cooptar corações rivais. Um dos maiores carrascos do Racing foi o profissionalíssimo Luis Artime (saiba mais), que marcou 22 vezes no clube do coração. Algumas dela, pelo Independiente, onde esteve de 1965 a 1968, quando foi ao Palmeiras (também jogou no Fluminense). Chegou a marcar duas vezes em um 4-0 em 1967 que garantiu o título nacional rojo e, de quebra, carimbava a faixa de campeão do mundo recém-conquistada pela Academia. Em 2014, contou à revista El Gráfico que um de seus passatempos ainda é assistir o Racing.

A careta e o sorriso enganam: Hugo Pérez (à esquerda, com Goycochea) era racinguista. À direita, Trossero (após marcar no rebaixado Racing em 1983) e Catalán (com a Supercopa 1988), que se consagraram no rival do coração

Enzo Trossero foi um grande zagueiro rojo dos anos 70 e 80 que deu azar de ser contemporâneo de Daniel Passarella, ainda melhor, e canhoto como ele, inviabilizando de atuarem juntos na seleção. Capitão da última Libertadores e Mundial vencidos pelo Independiente, em 1984, sempre deixou claro ser racinguista. O que não o impediu de marcar de pênalti naqueles 2-0 em 1983 sobre o recém-rebaixado Racing, em jogo que também deu o título nacional ao rival. Lateral campeão em 1978, Jorge Olguín se relacionou mais a San Lorenzo e Argentinos Jrs, mas foi à Copa de 1982 como jogador rojo embora o coração bata até hoje pelo Racing (“meu ídolo era Perfumo”).

Mas o Racing deve seus três títulos internacionais a pelo menos dois hinchas rivais: Juan José Pizzuti era o técnico da Libertadores e Mundial de 1967 e foi em razão dele que aquele elenco foi apelidado de Equipo de José. Pizzuti já havia brilhado também como jogador no Racing, sendo um grande artilheiro e campeão dos anos 50 ao início dos 60. Omar Catalán, que fez sobre o Cruzeiro o gol do título da Supercopa 1988, era outro de coração rojo. Outros declarados torcedores do Independiente que trabalharam no outro lado foram o goleiro Sergio Goycochea (que frisou ter sido importante sua passagem pela Academia, entre 1990 e 1991, por desfrutar diretamente na Argentina o auge de seu prestígio no país) e o técnico Diego Maradona.

Abandono de campo, goleadas homéricas, avião, apagão…

A história do primeiro clássico, em 1907, é famosa: com o Independiente recém-mudado a Avellaneda após ter sido fundado em Buenos Aires dois anos antes, travaram pela segunda divisão o primeiro dérbi. Os novatos haviam sofrido derrota incrível de 21-1 (isso, vinte e um a um!) para o Atlanta e foram provocados de que apanhariam por quarenta gols dos vizinhos, sedimentados desde seus inícios na cidade, em 1903. Os veteranos, porém, perderam de 3-2. Menos conhecido é o troco, já em 1908: Racing 4-0, em jogo onde o “co-irmão” se retirou antes do fim para não levar surra ainda maior.

O primeiro clássico profissional, em 1931, registrou a mais elástica vitória racinguista, 7-4. Poucos sabem que teve vários trocos em um: havia dez anos que a Academia não vencia dentro da própria casa o rival e sete em que não o derrotava no geral; vinha de quatro clássicos seguidamente perdidos – um deles, exatamente por 7-4, em 1927; para completar, o 7-4 de 1931 igualou ambos em número de vitórias na elite, dez para cada um. E o Racing ainda venceu fora de casa por 4-1 o dérbi seguinte.

Bochini nos 5-1 em pleno Cilindro em 1975. Em 1998, o vira-casaca Morales não liga para o ainda cabeludo Cambiasso e faz o seu. O Racing ameaçava dar o troco na Doble Visera, mas um suspeito blecaute parou nos 3-1

A resposta roja veio com juros em 1940, com a maior goleada do clássico, e a maior envolvendo dois dos cinco grandes argentinos: 7-0, com muitos racinguistas multados em seguida pela diretoria. Um desengasgo veio em 1949: o Racing voltou a ser campeão após 25 anos com direito a um 5-2 fora de casa na campanha, sua maior goleada no campo rojo no dérbi. E foi o primeiro de quatro clássicos seguidamente ganhos e de nove seguidamente invictos.

O Independiente abusou nos anos 70. Seu primeiro jogo após ser campeão mundial pela primeira vez, em 1973, foi o clássico, na casa rival. Desfilou com a taça antes da partida e a venceu por 3-1. A década ainda reservou dois 5-1 em pleno Cilindro, em 1974 e em 1975, outros anos onde os diablos venceram a Libertadores. São as piores derrotadas de um mandante na rivalidade. Ainda em 1975, porém, a Academia teve o gosto de vencer por 5-4 no primeiro encontro entre eles depois do recordista tetra seguido do Independiente na Libertadores. Detalhamos neste outro Especial.

Os últimos clássicos antes da quebra da invencibilidade alviazul em 1994 foram cheios de provocações: em 1992, Claudio García fez com a mão nos 2-1 pela Supercopa. Quatro clássicos depois, ainda em 1993, a trapaça ainda lhe rendia insultos, respondidos com ele abaixando as calças para a plateia rival – o dérbi seria vencido por 1-0. O último antes do fim do tabu havia sido no próprio estádio do Independiente. O Racing igualou em 2-2 a menos de quinze minutos do fim. Durante o clássico, um avião sobrevoou o campo exibindo os dizeres “rojo amargo, onze anos sem ganhar”, pois a invencibilidade racinguista era geral desde 1983.

Se até domingo passado a última vitória racinguista no campo vizinho havia sido em 2001, a torcida guardava com mais carinho a de 1998. O Racing vivia um turbilhão institucional mas em menos de meia hora vencia por 2-0 e dava show. O segundo gol, de Ángel “Matute” Morales, ex-jogador do rival, onde havia feito todas as categorias de base (não comemorou o gol por respeito ao ex-clube, pois torce pelo Boca). Uma goleada se desenhava mas o clássico foi suspenso após um blecaute suspeito – o primeiro vídeo abaixo é impagável. Dias depois, foi reiniciado e o triunfo visitante estacionou nos 3-1. O técnico do Independiente era César Menotti, outro vira-casaca: defendera a Academia como jogador.

José Serrizuela jogou por ambos em 1996, e seu irmão também foi rojo. Úbeda foi rojo nos juvenis e capitão do Racing campeão de 2001

O novo milênio sorriu mais ao Independiente, que conseguiu um 4-1 fora de casa em 2002, mais um 4-1 em 2012, além de vitórias na temporada em que foi rebaixado (2-0) e na qual retornou (2-1). 2005 até o momento vem sendo o ano de clássicos mais memoráveis para ambos os lados no século XXI. Em abril, o Racing, tendo consigo o volante Diego Simeone se aposentando no clube do coração, venceu por 3-1 com dois gols nos últimos oito minutos, de Marcelo Guerrero e Lisandro López. Morales e Menotti, personagens de 1998, participaram novamente. A resposta veio em setembro, em um 4-0 inapelável com direito a gol do ainda adolescente Sergio Agüero pisando três vezes na bola para bailar o marcador. Ainda com 18 anos incompletos, em 2006, El Kun fez os dois gols em um 2-0 dentro do Cilindro.

Rotas e famílias alteradas

Miguel Brindisi quase foi campeão no mesmo ano treinando os dois: em 1995, vencera a Recopa pelo Independiente e depois foi vice nacional pelo Racing, onde já havia jogado. O os defensores Néstor Clausen (também em 1995, mas no sentido inverso), José Serrizuela (1996) e Martín Vitali (2001) defenderam-os no mesmo ano como jogadores. Vitali veio de péssima campanha roja no Clausura 2001 para integrar no Apertura o fim do tabu nacional racinguista de 35 anos. Vitali chegou a falhar no jogo do título, mas a torcida lhe louvou com música: “se fue del Rojo y vino a la Academia para ser campeón“. Hugo Pérez já havia recebido cântico na mesma linha.

O troco veio em 2010: três vencedores da Sul-Americana, o último título do Independiente, eram ex-racinguistas: Nicolás Cabrera, Cristian Pellerano e o fundamental goleiro Hilario Navarro. Para completar, a taça premiou os rojos com vaga na Libertadores, para tanto retirando a última vaga disponível no campeonato argentino, que teria sido do Racing. Capitão daquele de 2001, o lateral Claudio Úbeda jogara nas categorias juvenis rivais. Héctor Yazalde, ao contrário, passou ainda nos juvenis do Racing ao Independiente: chuteira de ouro europeu em 1974, ele marcara a nove minutos do fim o gol de uma virada fora de casa que garantiu o título nacional aos rojos.

Outro vira-casaca impúbere foi Gabriel Milito, que teve que acatar por dois anos a comodidade dos pais, que não podiam levar ele a um clube e o irmão Diego a outro, prevalecendo o clube do mais velho, Diego. Outras famílias envolvidas na rivalidade foram os Rambert (Néstor jogou nos dois nos anos 60, o sobrinho Sebastián foi ídolo rojo nos 90), os Serrizuela (participante da Copa de 1990, José jogou nos dois e o irmão Juan integrou o último Independiente campeão nacional, em 2002) e os Forlán Corazzo: o uruguaio Diego Forlán se profissionalizou nos diablos, onde o avô materno Juan Corazzo havia sido ídolo nos anos 30 depois de defender o rival.

O jogo do próximo domingo não será a primeira decisão entre os rivais de Avellaneda. Mas este capítulo tem um especial só para si: clique aqui. Abaixo, outros especiais:

Racing x Independiente: Uma concorrência feroz e saudável

105 anos do Superclássico de Avellaneda

Elementos em comum entre Racing e Independiente

Vitali ainda no Independiente em 2001 e tentando pelo Racing parar Agüero em um dos clássicos de 2005; e o goleiro Navarro: viraram a casaca para serem campeões

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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