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Fernando Cáceres, 50 anos: nenhum zagueiro argentino foi (e é) tão lutador

Erguendo a Recopa Europeia de 1995, que seu Real Zaragoza ganhou sobre o Arsenal

Boca, River e Independiente são os três mais vencedores clubes argentinos. Embora defender o trio não seja historicamente tarefa para tão poucos, só um esteve em todos eles passadas quase duas décadas de século XXI – Jesús Méndez. Seu antecessor foi o zagueiro Fernando Gabriel Cáceres, que hoje faz 50 anos e tinha muito mais coisa para se gabar: participante da última conquista da seleção; foi titular em uma Copa do Mundo; um raro a jogar pela Argentina vindo tanto de River como do Boca (e sem títulos por nenhum!); membro ativo de páginas douradas de equipes espanholas pouco vencedores, chegando mesmo a ser o segundo estrangeiro com mais jogos em La Liga. Mas, desde 2009, a façanha percorrida por El Negro Cáceres é muito maior.  

Cáceres começou no generoso semillero do Argentinos Jrs, clube que soube viver seu período mais vencedor mesmo já sem Diego Armando Maradona, que despedira-se ainda em 1981 de La Paternal. Naquele mesmo ano, sem Dieguito, o time de fato só escapou na última rodada do rebaixamento, ao ganhar o confronto direto com o San Lorenzo e decretar a inesperada queda inédita de um gigante. Em pouco tempo, porém, o Bicho passou a ter uma mentalidade vencedora, injetada pelo mito Ángel Labruna. A antiga lenda do River não colheu os frutos, falecendo ainda em 1983 em pleno exercício do cargo, mas lapidou muita gente que já em 1984 levantou o primeiro título do Argentinos na elite – logo emendado com um bicampeonato seguido em 1985. Semanas após o bi, aquele timaço ia ainda mais longe, faturando a Libertadores.

Cáceres ainda não estava nesse ciclo, mas já era observado em meio a outras joias para a próxima fornada: naquele mesmo ano de 1985, integrou a seleção participante do primeiro Mundial sub-17 promovido na história. O Argentinos Jrs só teve menos convocados que o River na ocasião, cedendo Cáceres e outro jovem chamado Fernando Redondo, além do obscuro Gabriel Marino e de… Hugo Maradona, irmão de Diego e ainda visto seriamente na época como promessa. A campanha no mundial não foi tão boa, com a eliminação ainda na fase de grupos. Cáceres, mesmo zagueiro, marcou um gol na Alemanha Ocidental. Ainda assim, aquela seleção ficou querida na Argentina, em função do título sul-americano da categoria previamente conquistado no próprio país, sobre o Brasil de Romário.

Após quase ser campeão mundial em 1985 em cima da Juventus (por sete minutos não foi…), o Argentinos Jrs manteve-se no páreo para 1986. Ausente da campanha de 1985, Cáceres já era relacionado para o banco de reservas na Libertadores, embora não atuasse – o clube soube, na rodada final do triangular-semifinal, vencer por 2-0 o River dentro do Monumental e assim forçar um jogo-extra, pois ambos ficaram igualados. Só aí o River pôde avançar para seu primeiro título em La Copa. Enquanto o clube ainda conciliava a Libertadores com o campeonato argentino, Cáceres, Redondo e Carlos Mac Allister ganhavam no torneio nacional seus primeiros minutos regulares no futebol adulto. Não com calmaria: o quarto lugar (a dois pontos do vice) na temporada 1985-86 foi seguido por um 17º na temporada 1986-87 e por um morno oitavo na de 1987-88.

No Argentinos Jrs com o colega Fernando Redondo e na Copa de 1994

Após essa entressafra, o Bicho recuperou-se com um ótimo primeiro turno em 1988-89: ocupava a quinta colocação, a quatro pontos dos líderes. O ímpeto caiu na metade final, em sétimo, mas sobreveio uma caminhada até as semifinais tanto da liguilla pre-Libertadores como da Supercopa (com Cáceres deixando um gol em 2-0 sobre o Cruzeiro). Aqueles jovens já eram até apelidados de Globetrotters de La Paternal. Após um nono lugar em 1989-90, El Negro e colegas subiram para a 4ª colocação no Apertura 1990. Ainda que no Clausura 1991 descessem para penúltimo, subiram para uma enganosa nona colocação no Apertura 1991, a três pontos do terceiro lugar. O defensor rápido, de boa antecipação e jogo aéreo e seguro nas divididas, capaz de atuar bem em qualquer sistema tático no setor, chamou a atenção do River, que o levou no início de 1992.

O Millo é o clube do coração dele e de sua família e, embora campeão daquele Apertura 1991, vinha de uma grande decepção na final da Supercopa: após abrir 2-0 na Argentina, tivera noite irreconhecível no Mineirão ao perder de 3-0 e ver o Cruzeiro ser campeão. No Clausura 1992, o clube ficou só em quinto, o que não impediu que El Negro enfim estreasse pela seleção principal – em 23 de setembro de 1992, em 0-0 com o Uruguai pela velha Copa Lipton, em Montenvidéu. O Millo em seguida foi vice do Apertura 1992 e terceiro no Clausura 1993, sem que Cáceres comprometesse: voltou à seleção para a disputa da Copa América de 1993. Na reserva do capitão Oscar Ruggeri, substituiu-o no intervalo das semifinais contra a Colômbia e a partir dos 40 minutos da decisão contra o México.

O título, ainda o último da seleção principal da Argentina, rendeu ao reserva Cáceres um currículo capaz de seduzir o Real Zaragoza, que já vinha de uma temporada satisfatória – havia sido o vice da Copa do Rei de 1992-93. Cáceres não tardou muito a se adaptar ao futebol espanhol. O Zaragoza fez uma de suas temporadas mais brilhantes, terminando em terceiro, atrás somente da recordada disputa entre Barcelona e Deportivo La Coruña. Até hoje, o clube só teve uma colocação melhor em La Liga, com o vice de 1975. Além do bronze no campeonato, o time, sobretudo, teve revanche na Copa do Rei. Cáceres, que já era o cobrador oficial de pênaltis em seus últimos meses de Argentinos Jrs, converteu o primeiro de sua equipe na decisão por penais contra o Celta do goleiro Santiago Cañizares. Em paralelo, o zagueiro conseguiu alguma assiduidade nas eliminatórias à Copa sem se queimar: não atuou naqueles 5-0 da Colômbia em Buenos Aires.

Aquele vexame foi responsável por reformular substancialmente o time-base campeão da Copa América de 1993 para o que figuraria um ano depois na Copa do Mundo. Sergio Vázquez e Jorge Borelli, que se alternavam com Ruggeri na zaga, foram mantidos na convocação aos EUA, mas passaram à reserva para dar lugar ao Negro Cáceres, que atuou em todos os minutos da Argentina no mundial. Após a Copa, Cáceres ausentou-se das primeiras convocações do ciclo iniciado com o novo treinador, Daniel Passarella. Foram onze meses de ausência, mas nova temporada fantástica do Zaragoza falou mais alto. Se o time fraquejou nos torneios domésticos (sétimo na liga, oitavas-de-final na copa), terminou campeão continental, batendo o Arsenal na final da Recopa Europeia. O zagueiro foi então titular na Copa América, com Néstor Fabbri e a revelação Roberto Ayala revezando-se na dupla com Cáceres.

Nas três principais camisas do futebol argentino, Cáceres não conseguiu títulos. Mas é figura querida e respeitada entre torcedores, especialmente após sua tragédia

Os últimos bicampeões seguidos do continente caíram ainda nas quartas, com a mão de Túlio, e não encerraram o ano bem – El Negro esteve em derrotas amistosas para a Espanha, por 2-1 em Madrid, e em novo revés contra o Brasil, que venceu dentro de Buenos Aires por 1-0. Em paralelo, a fase do Zaragoza entrava em declínio, com um 13º em La Liga de 1995-96. Mesmo torcedor do River, Cáceres viu em uma oferta do Boca a oportunidade de manter-se mais próximo do radar de Passarella, que o usara só uma vez no primeiro semestre de 1996 (em derrota de 2-0 para o Equador em Quito). Como recém-chegado aos auriazuis, participou daquele 1-1 com o Uruguai recordado pelo gol de falta do goleiro José Luis Chilavert no Monumental.

Cáceres foi titular no Boca, mas a estadia xeneize não foi boa, com os comandados de Carlos Bilardo terminando em 10º, com mais derrotas (oito) do que vitórias (sete), ressentidos dos anos sabáticos tirados por Maradona, que fora tratar-se contra os vícios, e Caniggia, cuja mãe suicidara-se. O zagueiro, apesar da má fase coletiva, pôde ainda assim entrar para o grupo dos doze que defenderam a Argentina vindos de River e Boca. O zagueiro foi o último a conseguir isso no século passado. E, se apenas um o sucedeu como jogador de Boca, River e Independiente, apenas um o sucedeu como jogador de seleção como xeneize e millonario – Nelson Vivas (que alcançou isso em 2003). Ainda com renome na Espanha, foi contratado pelo Valencia em meados da temporada 1996-97.

Os Ches vinham de um vice em La Liga, mas não tiveram grandes campanhas nas duas temporadas em que contaram com o argentino: um décimo e um nono lugar no campeonato e duas quedas nas oitavas da Copa do Rei. Assim, o zagueiro só fez mais um jogo pela Argentina. Curiosamente, exatamente nessa despedida ele marcou seu único gol pela Albiceleste principal – foi no 1-1 contra a Colômbia pelas eliminatórias em novembro de 1997, partida em Buenos Aires realizada em La Bombonera para evitar algo perto daqueles 5-0 sofridos no Monumental nas eliminatórias anteriores. Passarella preferia um esquema com três defensores e via opções melhores em Roberto Ayala, José Antonio Chamot, Nelson Vivas e até no veterano Néstor Sensini para esse rodízio, levando ainda Pablo Paz como opção de reserva. O que parecia um declínio foi o ponto de partida para nova grande fase do zagueiro.

Cáceres foi transferido para o Celta de Vigo, tornando-se figura ativa do aclamado Eurocelta da virada do século. Foram seis temporadas na Galiza, que renderam até uma filha com o nome galego Xoana (é pai também de Ezequiel, Micaela e Paula, frutos de dois casamentos). Em um time historicamente mais modesto, sem nenhum título além das divisões inferiores, Cáceres foi titular nas melhores campanhas celestes em La Liga (o 5º lugar de de 1998-99 e de 2001-02 e o 4º lugar de 2002-03) e na Copa do Rei, onde foi vice em 2000-01 (em que o time obteve ainda um satisfatório 6º lugar no campeonato).

Por Zaragoza, Valencia e Celta, Cáceres chegou a ser o segundo estrangeiro com mais partidas na elite espanhola

Já veterano para Marcelo Bielsa, não viu as boas campanhas do Celta lhe colocarem na seleção como faziam com Pablo Cavallero, Gustavo López e Eduardo Berizzo, mas Cáceres segue adorado em Vigo mesmo integrando também o surpreendente rebaixamento de 2003-04, temporada em que o clube disputou pela primeira vez a Liga dos Campeões (superando grupo com Ajax e Milan até cair para os Invencibles do Arsenal no mata-mata). Ficou mais um semestre na Espanha, disputando pelo Córdoba a segunda divisão antes de acertar um regresso ao futebol argentino. Foi quando chegou ao Independiente, que em paralelo vivia a preocupante 15ª colocação no Apertura 2004. Cáceres ficou um ano e meio em Avellaneda, como titular de um Rojo que, despedindo-se de sua Doble Visera antes da demolição para a construção do estádio Libertadores da América, soube chegar ao quarto lugar do Apertura 2005.

À beira dos 40 anos, El Negro programou um retorno ao Argentinos Jrs para a temporada 2006-07, que não foi o sonhado: rompeu os ligamentos do joelho e teve que antecipar a aposentadoria, voltando ao Independiente sob convite de treinar a equipe de aspirantes. O sossego acabou em 10 de novembro de 2009: ao dar marcha a ré para tentar escapar da abordagem de menores de idade que buscavam roubar-lhe o veículo, terminou alvejado severamente. O ex-zagueiro, além de perder o olho direito (substituído por uma prótese de vidro), teve danos cerebrais seríssimos e o prognóstico inicial quando chegou ao hospital era de que não teria mais de dois dias de vida.

Surpreendeu a todos com melhoras progressivas, incluindo a manutenção da lucidez, ainda intercaladas com súbitas pioras que voltavam a lhe pôr em risco (como a rejeição do organismo a uma placa de titânio no crânio, que segue afundado na lateral esquerda) e uma necessidade constante de fisioterapia. Em todo esse tempo, a cadeira de rodas foi companhia constante. Nos seus 50 anos, Cáceres foi abordado pela imprensa galega, com uma nota de esperança: quase dez anos após o atentado, declarou que é esperado que em menos de um mês já consiga caminhar sozinho. Ele nunca perdeu o humor, ainda que auto-depreciativo, nessa trajetória. Já se posicionou, inclusive, contra a redução da maioridade penal na Argentina, vendo a medida como ineficaz para frear a criminalidade juvenil (segundo declarações suas ao Infobae em 2017 e ao La Nación em 2018).

Cáceres, homenageado em 2010 com um jogo de veteranos do Uruguai e da Argentina (incluindo Maradona), preferiu fundar um clube que leva seu nome com o intuito de afastar os jovens das más influências. Transcrevemos a conclusão de nota que a revista El Gráfico fez sobre ele em 2012, quando já conseguia pôr se de pé por alguns segundos, sob auxílio – a revista indagou-lhe se apreciava o treinador Pep Guardiola, personagem de uma capa recente: “Como não? O enfrentei muitas vezes como jogador. Esse não te dava tempo para nada, quando chegavas ao lado dele já não tinha a bola, não sei como carajo fazia, mas já não a tinha”, respondeu o ex-jogador. O repórter então concluiu: “Como carajo. Como carajo faz o Negro Cáceres para rir, para sonhar, para viver. Se tem tantas ganas de seguir andando…”

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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