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Fé, futebol e San Lorenzo: o Papa foi Copa!

O sócio 88.235 do San Lorenzo faleceu aos 88 anos às 2h35 no fuso horário de sua Buenos Aires natal, capital de um país alucinado por futebol e também por superstições – ou, no jargão local, por cábalas. Sim, essa palavra surgiu da cabala judaica. Como nada é tão argentino como uma idiossincrasia, mesmo os hermanos mais católicos e também os mais ateus não se importam em elegir creer a partir dessas coincidências incríveis demais. Muito antes de até publicidades enumerarem “sincronias” que justificavam confiança no título de 2022, a porção sanlorencista da Argentina sabia que os títulos comemorados entre 2013 e 2014 pela mesma equipe-base quase rebaixada em 2012 não eram obra do mero acaso.

Quando Jorge Mario Bergoglio tornou-se em março de 2013 o Sumo Pontífice, nossa nota a respeito destacava como o novo Papa “é torcedor de Los Santos“, um dos apelidos naturalmente atribuídos a um clube criado graças a um padre, apelidado de cuervo (“corvo”) por conta da cor preta de batinas, embora as cores do uniforme fossem o azul e grená normalmente atribuídos em pinturas ao profeta que renasceu em Páscoa. A nota também mencionava a aspiração do Sanloré em voltar à “terra santa” de Boedo.

A coincidência que aquela nota de março não chegou a mencionar tem a ver com o nascimento do Papa Francisco. É que somente que a partir de agosto de 2013 (como contado aqui, na época) é que a AFA reforçou a oficialidade de campeonatos então costumeiramente esquecidos: os torneios amadores prévios a 1931 e… a existência de dois campeonatos argentinos para o ano de 1936, ano até então creditado como sendo vencido somente pelo River. Mas atestou-se que título logrado em julho pelo San Lorenzo era um campeonato próprio, e não mero turno.

O timaço campeão de 1946, do qual o Papa era uma das últimas testemunhas: Colombo, Vanzini, Zubieta, Blazina, Grecco e Basso (ex-Botafogo); Imbelloni, Farro, Pontoni (ex-Portuguesa), Martino (ex-São Paulo) e Silva

Como se não bastasse, o San Lorenzo deixou de vice naquela conquista de 1936 justamente o seu mais tradicional rival, o Huracán – rixa de vizinhos elogiosamente mencionada para o mundo ver no filme Os Dois Papas. Francisco nasceria em 17 de dezembro, presumindo-se que teria sido concebido por volta de meados de março e não propriamente por alguma EMPOLGAÇÃO pela campanha do título, pois o torneio só começaria em abril. Mas será jurado que sim que já dava volta olímpica dentro do ventre…

Desde o conclave, diferentes títulos do Ciclón puderam ser associados a seu torcedor mais ilustre. Desde taças propriamente ditas como a reconquista do bairro de Boedo, onde o clube está em vias de reerguer casa nova (após acordo em abril de 2014 com o hipermercado que ocupava o terreno), autorizada de antemão no Vaticano para chamar-se “Estádio Papa Francisco”. Eis algumas de nossas notas a respeito:

Há 75 anos, o jovem Papa acompanhava o San Lorenzo campeão argentino

“Ao ler suas palavras, estão vindo à minha memória belas lembranças, começando desde a minha infância. Seguia, aos dez anos, a gloriosa campanha de 1946. Aquele gol de Pontoni!”. Isso está registrado em carta de 20 de março de 2013, com o selo do Vaticano, ao presidente do San Lorenzo. Era um documento formal do Papa Francisco apenas uma semana depois do conclave. O Sumo Pontífice assegurava que assistira todos os jogos que o time do coração (um deles, um histórico clássico com um Huracán reforçado com Di Stéfano) fizera em casa naquele ano, em que os azulgranas desmistificaram a endeusada La Máquina e tiveram o melhor ataque da década de 40: El Terceto de Oro, a repercutir também na Europa por saber vencer até as seleções de Espanha e Portugal. Foi a única conquista entre 1936 e 1959 do clube. Nota publicada em 2016 e republicada em 2021.

Campeões com o San Lorenzo em 1946, Pontoni e Martino brilharam mais na seleção do que por Portuguesa e São Paulo. Basso pôde ser ídolo no Botafogo

René Pontoni, ídolo do Papa no San Lorenzo e ex-Portuguesa, faria 100 anos

No mesmo ano de 2013, completou-se em maio trinta anos do falecimento do tal Pontoni mencionado na carta de Francisco, nos levando a fazer uma primeira nota sobre o craque. A ênfase sobre Pontoni ter jogado na Portuguesa logo a fez ser kibada até pelo Milton Neves. Quando o craque do título de 1946 teria completado cem anos, em 2020, fizemos versão ampliada sobre a trajetória de quem, no auge, deixava Di Stéfano no banco da seleção argentina.

Rinaldo Martino, “mais muito” que o 3º maior artilheiro do San Lorenzo

O título de 1946 teve um futuro jogador da Portuguesa ao lado de um futuro jogador do São Paulo. Era o caso de El Mamucho (daí o título da nota, derivado do apelido decorrente de um equívoco gramatical do folclórico atacante), primeiro jogador no mundo inteiro a ser campeão nacional em três países vencedores de Copa do Mundo. Possivelmente o primeiro afro da seleção italiana, Martino defendeu ela e a sua Argentina enquanto era campeão naquele San Lorenzo de 1946, tirava a Juventus de um impensável jejum italiano de quinze anos e vencia com o Nacional o título uruguaio no simbólico ano do Maracanazo. Confira em outra nota publicada em 2016 e republicada em 2021.

15 anos sem Oscar Basso, argentino (duas vezes) do time dos sonhos do Botafogo

Enquanto o ataque do San Lorenzo de 1946 tinha quem fosse futuramente jogar na Lusa e no Tricolor, a defesa era guarnecida por alguém que brilharia em General Severiano. Se nesse ano de 2025 a Placar elegeu Mauro Galvão e Wilson Gottardo para a zaga do time botafoguense dos sonhos, a mesma revista, com júris formados por gerações antigas, fez do argentino Basso (votado pelo ex-colega Nilton Santos, por Zagallo, Armando Nogueira e Sandro Moreyra, dentre outros alvinegros ilustres) um dos zagueiros escolhidos em eleições de 1982 e de 1994. E isso que ele sequer chegou a vinte partidas em sua única temporada no Rio. Confira em nota publicada em 2017 e republicada em 2022.

O San Lorenzo campeão duas vezes em 1972. O técnico Lorenzo é o penúltimo em pé entre os homens de macacão. O primeiro sentado é Telch, o quinto é Ayala e o sexto sentado é o veterano Sanfilippo, de volta do Bangu e do Bahia

100 anos do maior jogador europeu do futebol argentino: Ángel Zubieta, mais jovem estreante da seleção espanhola

Na ligação entre a defesa e o ataque do título de 1946, havia um refugiado. Se hoje o drama aflige diferentes partes da África, do Oriente Médio e da Ucrânia, era na ocidental Espanha que uma guerra civil fez nos anos 30 diversos cidadãos se dispensarem pelo mundo. O San Lorenzo virou “o time dos espanhóis” ao abrigar a maioria dos jogadores exilados do fascismo de Franco, embora somente El Vasco Zubieta ainda seguisse em Boedo para ser testemunhado por um Francisco de dez anos de idade na volta olímpica de 1946. Confira em nota publicada em 2018.

40 anos do primeiro bi anual argentino

Depois de 1936, a Argentina voltou a coroar dois campeões por ano a partir de 1967, ao criar os Torneios Metropolitano e Nacional; futuramente, viria a era de Apertura e Clausura, torneios renomeados em 2012 para Inicial e Final. A dobradinha dos dois principais títulos do calendário foi raras vezes conquistada e a primeira delas coube ao San Lorenzo de 1972. Com o detalhe do bicampeonato anual seguido dar-se em pleno 17 de dezembro, em que um Jorge Mario Bergoglio já eclesiástico comemorava conjuntamente seus 36 anos de idade. Confira em nota publicada pelos quarenta anos do bi, em 2022.

85 anos de José Sanfilippo, ex-Bangu e Bahia, maior artilheiro do San Lorenzo

Sanfilippo era, no histórico bicampeonato de 1972, o único remanescente do título de 1959 – inclusive, já estava até aposentado, após deixar o Bahia, onde pudera ser o ídolo que não conseguira em tempos fortes do Bangu. Da mesma geração de Franscisco, El Nene completará em breve 90 anos, no próximo mês. Conheça-o nessa nota publicada em 2020. De outros componentes do título de 1972, já dedicamos especiais também ao volante Roberto Telch, aos atacantes Rodolfo Fischer (futuro Botafogo e Vitória) e Rubén Ayala (autor do gol do título mundial do Atlético de Madrid) e ao treinador Juan Carlos Lorenzo, muito mais do que apenas o técnico das primeiras Libertadores vencidas pelo Boca.

Aleluia! A América é enfim erguida por Kannemann para o San Lorenzo

Meia década do último título argentino do San Lorenzo, nas luvas abençoadas pelo Papa

O primeiro título após Jorge Mario Bergoglio virar o Papa Francisco veio já no semestre seguinte ao conclave. Isso já seria um sinal (?), mas o Torneio Inicial de 2013, comemorado na antevéspera do aniversário de 77 anos de Sua Santidade, teve outros condimentos: o campeão havia escapado por muito pouco do rebaixamento um ano antes, punindo no lugar o Instituto da revelação Paulo Dybala; e precisou superar uma rodada final que por coincidência das mais incríveis opôs em dois duelos diretos os quatro times que tinham chances de título. Nela, sobressaiu-se uma atuação iluminada do goleiro Sebastián Torrico, bem ajudado também pelas traves. Relembre nessa nota de 2018, quando a volta olímpica completou cinco anos.

O Papa é Copa: 10 anos da canônica Libertadores do San Lorenzo

O epílogo do filme Os Dois Papas permitiu, a um roteiro marcado pelo drama, uma licença poética com alívio cômico. Francisco e Bento XIV, Papa e Papa Emérito, assistiam as seleções de seus respectivos países decidirem a Copa do Mundo de 2014. Não deu para a Argentina naquele julho da Copa das Copas. Mas deu para o CASLA, em agosto do mesmo ano, deixar de ser o Club Atlético Sem Libertadores da América para voltar a ser tão somente o Club Atlético San Lorenzo de Almagro. Nos dez anos da conquista da primeira Libertadores do único grande argentino que ainda não a tinha, contamos até como a imprensa apurara que sua torcida não titubeava em escolher a glória eterna ao título mundial da nação em plena casa rival.

Se aposenta o ídolo, começa a lenda: Leandro Romagnoli, maior campeão do San Lorenzo

Enquanto que José Sanfilippo se permitiu brilhar em fim de carreira no Bahia, Leandro Romagnoli, ironicamente filho de torcedor assumido do rival Huracán, negou três (ou mais) vezes o Tricolor para ganhar a América. O clube do Papa tem em El Pipi o ídolo maior, cuja carreira foi relembrada nessa nota de 2018, quando Romagnoli pendurou as chuteiras.

Romagnoli, o filho pródigo: único jogador no San Lorenzo vencedor da Copa Mercosul 2001 (esquerda), Sul-Americana 2002 (centro) e Libertadores 2014 (direita)

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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