Não há grande pudor politicamente correto na Argentina para apelidos no futebol. Muitos das alcunhas que torcedores usam com orgulho para o próprio clube eram originalmente ofensas pesadas dos rivais: bosteros para o Boca, canallas para o Central, leprosos para o Newell’s, quemeros para o Huracán, pincharratas para o Estudiantes, triperos para o Gimnasia LP… Para os jogadores, incluindo dos mais consagrados, não é diferente.
Messi é La Pulga pela baixa estatura; Labruna era El Feo pelos dentes tortos; Enrique García era Chueco, “desengonçado”… Narigudos viram Pipas (como Raúl Estévez, ex-Botafogo, e Jorge Higuaín, pai de Gonzalo Higuaín, por sua vez apelidado de Pipita), altos, magros e esguios tornam-se Flacos (como Menotti e Schiavi), calvos são chamados de Bochas (Humberto Maschio e Ricardo Bochini), cabeçudos são Cabezones (Omar Sívori, Oscar Ruggeri), os de pele escura são Negros mesmo que tenham raiz indígena em vez de africana (Oscar Ortiz, Héctor Enrique, Hugo Ibarra) e os de origem árabe, Turcos (Antonio Mohamed, Omar Asad, Claudio Husaín)…
O San Lorenzo contou com um atacante nos anos 60 chamado Victorio Francisco Casa. Falecido ontem, recebeu o apelido nada sutil de El Manco pela tragédia que brecou sua carreira. Casa era o ponta-esquerda de celebrada linha de ataque que o clube teve no início daquela década: Los Carasucias (literalmente “Os Cara-Sujas”, gíria para moleques), jovens que encantavam pela irreverência em campo; uma espécie de Meninos da Vila do bairro de Boedo. No Brasil, o mais célebre deles foi Narciso El Loco Doval, ídolo de Flamengo e Fluminense nos anos 70.
Na Argentina, o mais celebrado é Héctor El Bambino Veira, que também esteve no Brasil, mas naufragou no Corinthians (em 1976): bastante carismático, foi eleito o maior ídolo sanlorencista na ocasião do centenário do clube, em 2008. Completavam a linha Fernando El Nano Areán e Roberto La Oveja (“a ovelha”, em alusão aos cabelos cacheados) Telch. Aprontavam bastante, nos gramados e fora. Casa já narrou a seguinte: “fomos em excursão e na Alemanha nos separaram. [O técnico] Barreiro mandou Doval dormir com [Alberto] Mariotti, Veira com Coco Rossi e a mim com [Rafael] Albrecht. Os mais bagunceiros com os mais sérios. A mim, me disse: ‘você, siga sempre Rafael'”.
“El Chiche [apelido de Barreiro] passava revista às onze da noite, nós simulávamos que já estávamos adormecidos e ele, então, ia se deitar. Às doze não ficava ninguém no hotel! Uma noite, Albrecht me disse: ‘olhe, Casita, quantas luzes, deve ser lindo, não?’. E aí arrancamos. Deixamos Doval porque já estava adormecido; saímos Coco Rossi, Rafael [Albrecht], Veira e eu. Às seis da manhã, quando voltamos, Barreiro estava na porta do hotel. Entrou o tucumano [Albrecht] e não lhe disse nada; passou Coco Rossi e tampouco. Entro eu e me grita: ‘ah, você também, é?’. Não pude me conter e lhe respondi: ‘você não me disse que seguisse sempre Rafael? Bem, o segui'”.
Casa chegou ao San Lorenzo aos 15 anos, vindo do Deportivo Norte, de sua Mar del Plata natal. Entrou no time principal aos 19, em 1962. “Era um ponta-esquerda de antologia, atrevido, vertiginoso”, diz o Diccionario Azulgrana sobre ele. “Tinha toda a desenvoltura necessária para converter-se em um ídolo do futebol argentino e ocupar com letras de molde um lugar na história da seleção”, afirma Julio Macías em seu Quién es Quién en la Selección Argentina, onde Casa esteve em 1964.
Naquele ano, sem jogar, integrou com o colega Telch o elenco da Copa das Nações, organizada pelo Brasil. A Albiceleste saiu campeã, inclusive impondo um 3-0 (com dois de Telch) em Pelé & cia dentro do Pacaembu – foi o título internacional mais expressivo da Argentina até 1978. Casa enfim jogou pelo país em novembro. Não deu sorte: Paraguai 3-0, em Assunção. Mas o pior viria meses depois.
Em 11 de abril de 1965, deveria ocorrer a primeira rodada do campeonato argentino daquele ano. Mas foi suspensa por chuvas fortíssimas. Casa então aproveitou a folga para sair com amigos, chegando a convidar Telch, que teria outros compromissos. Estacionou seu Valiant II em local restrito frente à Escola de Mecânica da Armada, a ESMA, tristemente célebre como centro de tortura dos mais mortíferos da ditadura de 1976-82 (hoje, é um museu dos direitos humanos). Um sentinela o advertiu, mas Casa não ouviu e, de repente, passou a ser metralhado. “O braço ficou pendurado no volante. Me salvou a vida um taxista, curiosamente torcedor do San Lorenzo, que passava por ali e me levou ao hospital Pirovano”, contou.
A Armada se responsabilizou e bancou seu tratamento nos Estados Unidos, de onde retornou com um braço mecânico. 45 dias depois da tragédia, ele estava de novo em campo, para a comoção de todo o bairro de Boedo. Não foi o primeiro caso – o último gol do título do Uruguai na final da Copa de 1930 contra os argentinos foi de Héctor Castro, também apelidado de El Manco: já não tinha a mão direita, amputada por serra elétrica. Castro chegou a jogar no Estudiantes em 1932 (marcando até gol em um 6-1 no clássico com o Gimnasia, maior goleada no clássico de La Plata até os 7-0 de 2006!).
Os adversários não se sensibilizaram tanto com Casa: sua reestreia foi perdida por 0-2 para o Banfield. Marcadores duros, como o racinguista Roberto Perfumo (futuro cruzeirense) não se furtavam de lhe dar carrinhos “normalmente”. “Quando os driblava, me diziam ‘manco filho da…’”, declarou. Os próprios colegas também não se continham: pegavam seu braço mecânico para usá-lo como cabide ou escondiam-no em lugares dos mais inacessíveis nos vestiários. Casa até abdicaria da ferramenta: “não podia aguentá-lo, pesava como 5 quilos. Era um peso morto que me deixava de cama”.
Em entrevista à El Gráfico mês passado, Veira disse que “ele não conhecia muito Buenos Aires, passou pela ESMA, lhe deram voz de alerta, se assustou porque pensou que era um assalto, e quando girou o carro, lhe balearam. O Valiant que dirigia tinha 21 balas, 21! Foi um milagre que saísse vivo”.
Segundo o próprio Casa, “estacionei meu carro atrás do campo do Defensores de Belgrano. Íamos dois casais, estávamos escutando um bolero. (…) Apenas desliguei o motor, senti um ruído como de balas. Olhei e não tinha mais o braço direito. Ficou agarrado no volante. Saí do carro e fui até a esquina. Ninguém parava. Por aí, apareceu um táxi. O taxista era torcedor do San Lorenzo, me reconheceu e me disse ‘suba, garoto, como não vou te levar?!’. Cheguei no Piravano, o médico deu uma olhada e me quis tranquilizar. ‘Não é nada’. Como não é nada? Abri o paletó e vi sangue por todo o corpo. Eu não sentia nada. Havia sido uma rajada de PAM disparada desde a ESMA. Dizem que me haviam dado o alerta, eu não escutei nada. No Pirovano me salvaram a vida, mas o braço direito perdi para sempre”.
Na dita entrevista mês passado, o colega Veira afirmou também que “Casita era um fenômeno, nunca vi uma pessoa com tanta moral. Já havia perdido o braço, e ele mesmo se zombava. Nos dizia ‘vocês, passem-me bandagem nos pés. (…) Foi um dos jogadores mais valentes que conheci. Se se derrubava sobre o braço bom, não acontecia nada, mas se caía do lado do amputado, ficava em carne viva. O doutor Insaurralde tinha preparado um garrafão de merthiolate e lhe passava, nós dizíamos ‘no próximo domigo, ele não vem’. E em dois dias, estava de volta. Lhe custava afirmar-se mas não se entregava nunca. Seu regresso foi comovedor”.
O bom humor consigo mesmo veio já naquela reestreia contra o Banfield. Antes de sair dos vestiários com os colegas, Casa disse a eles “deixem que os laterais eu cobro”. Apesar disso, Casa compreensivelmente não rendeu como antes, mas nunca deixou de ser considerado um ídolo. Jogou até 1966 no CASLA, totalizando 72 jogos e cinco gols, um deles no clássico contra o Huracán, anotado em um 4-2 em dezembro de 1965, já após perder o braço. Depois, passou pelo Platense, onde só jogou no time reserva; pelo incipiente futebol dos EUA, no Washington Whips; pelo Quilmes de Mar del Plata (ironicamente, clube mais dedicado ao basquete); e parando no Loma Negra de Olavarría.
“Casa era o mais hábil, o único que fazia gols incríveis naquele ataque do San Lorenzo! Um dia, Casa passou por três, por quatro, cinco defensores, e desde a mesma linha chutou a bola lentamente. Como se estivesse jogando bilhar. (…) Nem bem perdeu o braço, todos queriam ajuda-lo. Hoje, ninguém se lembra dele”, reclamou já nos anos 70 o antigo colega Doval, o primeiro Carasucia a falecer, em 1991. Há dois anos, morreu Areán. Na Mar del Plata natal, Casa partiu perto dos 70 anos, idade que completaria em 28 de outubro deste 2013.
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