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Especial Eurocopa – argentinos da seleção francesa

Das seleções europeias, a França, que amanhã receberá a Eurocopa, é historicamente a mais multicultural. Já na Copa de 1938, havia um negro (Diagne) e um árabe (Ben Bouali). Se a presença de descendentes dos povos explorados se intensificou desde os anos 90, já havia em tempos mais embranquecidos dos Bleus um contingente não-gaulês: naquele mesmo mundial, a seleção continha sangue italiano (Di Lorto, Zatelli), germânico (Mattler, Heisserer, o austríaco Jordan) ou eslavo (Kowalczyk, Povolny). Além de Diagne, nascido na Guiana Francesa, havia outro sul-americano, o uruguaio Cazenave. Argentinos não só não foram exceção na época como já haviam aparecido bem antes e foram convocados mesmo quando não tinham raízes francesas.

Afinal, argentinos já praticavam futebol na França muito antes do advento da Lei Bosman, mesmo quando não possuíam origem gaulesa. Os primeiros usados pela seleção tinham sangue italiano e jogaram já nos anos 10, quando o foot ainda era amador. Foram os irmãos Paul e Félix Romano, que praticavam no Étoile de Deux Lacs. Paul, provavelmente nascido Pablo, foi o primeiro argentino nos Bleus, em 1911, por três partidas. Já Félix jogou só uma vez pela seleção, em 1913. Félix, porém, teria carreira mais conhecida: defenderia também a seleção italiana após ir jogar no Torino. Na Itália, ele virou Felice Romano. É o único sul-americano que jogou por dois países europeus.

Por ironia, o jogador dos Bleus e da Azzurra jamais foi da Albiceleste. Ele e o irmão emigraram cedo à Europa, sem registros de terem praticado futebol na Argentina. Ela e a França se encontraram a partir de 1930, já a partir do primeiro jogo dos hermanos em Copas do Mundo, vencido por 1-0. Também se enfrentaram na Copa de 1978, em Buenos Aires: rendeu o primeiro gol de Michel Platini em Copas, mas os europeus acabaram eliminados ali ainda na primeira fase. As demais partidas foram todas amistosas, rendendo ao todo seis vitórias sul-americanas (a última, um 2-0 no Vélodrome de Marselha em 2009), três empates e só duas derrotas.

Como os Romano, André Chardar desenvolveu a carreira já na França, principalmente no Sète, jogando algumas vezes nos anos 30 pelos gauleses. Também nos anos 30, Miguel Ángel Lauri, neto de um francês de sobrenome Larroi grafado com equívoco na imigração argentina, jogou uma vez pela França. Ao contrário dos anteriores, Lauri foi adquirido do futebol argentino, onde La Flecha de Oro (era veloz e loiro) brilhou no superataque do Estudiantes de 1931: explicamos aqui.

Félix Romano, Trezeguet comemorando 1998 e Maupay

Lauri também defendera a terra natal, na Copa América de 1935. Jogou pela França em 1937, no embalo do último título francês do Sochaux. Poderia ter ido à Copa de 1938, sediada na França, mas ainda em 1937 ele voltou ao Rio da Prata para defender o Peñarol. Curiosamente, aquele ataque do Estudiantes teve outros dois que jogaram pela Argentina e por uma seleção europeia: Enrique Guaita (campeão da Copa de 1934) e Alejandro Scopelli defenderam ambos a Itália.

Helenio Herrera foi o argentino seguinte nos Bleus. De argentino, ele só teve documentos de identidade: filho de espanhóis, cresceu na colônia francesa do Marrocos. Como jogador, defendeu algumas das forças parisienses pré-PSG: o Red Star (esteve no último título do clube fundado por Jules Rimet, a Copa da França de 1942) e o Stade Français, hoje voltado ao rúgbi. Sua grande contribuição ao futebol deu-se como técnico, especialmente no Atlético de Madrid, no Barcelona e, principalmente, na Internazionale. Foi nessa função que esteve na seleção francesa, em 1947, ainda no início da nova carreira, ao mesmo tempo em que treinava o futebol do Stade Français. Também treinaria Espanha e Itália enquanto acumulava o mesmo cargo no Barça e na Inter, respectivamente.

Nos anos 60, houve os três seguintes. Em 11 de março de 1962, estrearam juntos o meia Ángel Rambert e o ponta-direita Héctor de Bourgoing, em derrota de 3-1 para a Polônia na qual o gol francês foi de De Bourgoing. Formado no Lanús (cidade que por sinal deve seu nome ao franco-argentino que era proprietário da área), Rambert foi protagonista do maior momento do Lyon no século XX, antes dos lioneses sonharem com a era Juninho. Ganhou os primeiros troféus expressivos do clube, as Copas da França de 1964 e 1967: detalhamos no especial dedicado ao clube.

Ángel Rambert também é pai de Sebastián Rambert, que por sua vez defendeu a Argentina nos anos 90, quando brilhou no Independiente. No Lyon, o pai fez dupla no título de 1964 com o atacante Néstor Combín, emigrado ainda adolescente à França; fez os gols daquele título e brilharia também no futebol italiano, por Juventus, Torino (falamos aqui) e Milan – sua imagem empapada em sangue no mundial de 1969, ao retornar à Argentina para enfrentar o Estudiantes, ajudou a afugentar os europeus da disputa: saiba mais.

Ángel Rambert, Héctor de Bourgoing e Néstor Combín. Os dois últimos, da Copa de 1966

Combín iria à Copa do Mundo de 1966 acompanhado de De Bourgoing. Como Lauri, ele também defendeu antes a Argentina natal, ainda como jogador do modesto Tigre. Em 1957, venceu a Copa América como reserva de Omar Corbatta e foi campeão argentino no River, mas acabou de fora da Copa do Mundo de 1958. Na França, fez carreira sólida no Bordeaux e no Nice, clube que vivera nos anos 50 seu auge com uma maciça participação argentina – assunto do qual trataremos posteriormente.

Dedicamos a De Bourgoing este outro Especial. Os argentinos Bleus seguintes, na realidade, são hermanos no passaporte, pois nasceram na França. David Trezeguet tem origem francesa distante (de um bisavô). Nasceu por acaso em Rouen quando o pai Jorge, de carreira arruinada na Argentina após um antidoping positivo, jogava no clube local – mostramos aqui. David cresceu na Grande Buenos Aires a ponto de torcer pelo River, formar-se no Platense e falar espanhol portenho. Jogou contra a Argentina uma vez, já no fim da carreira, em 2007. Perdeu de 1-0 em amistoso no Stade de France.

Trezeguet, herói por sinal de outra Eurocopa (a de 2000), comemorou a vitória sobre o Brasil na Copa de 1998 usando um chapéu alviceleste. Sua carreira é conhecidíssima, enquanto Neal Maupay, nascido em Versalhes de pai francês e mãe argentina, ainda desenvolve a sua. Jogador das seleções juvenis franceses, ele tem passaporte argentino e foi formado no Nice.

Outro que poderia ter defendido a França, vale registrar, é Gonzalo Higuaín. Como Trezegol, nasceu por lá, em Brest, quando o pai (também chamado Jorge, apelidado de Pipa – daí o apelido Pipita do filho) defendia o clube local. Mesmo jogando desde 2006 no Real Madrid, Higuaín filho só foi estrear pela Argentina em 2009, após alguma indecisão. Mesmo sem origem francesa, como os Romano, Herrera ou Combín, era sondado pela seleção gaulesa. Sem falar merci, escolheu a Albiceleste.

Pela Argentina: Lauri na Copa América de 1937, De Bourgoing na Copa América de 1957 e Rambert filho em 1994
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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