Hoje a Escócia decidirá em plebiscito se, após 400 anos, separa-se da união com a Inglaterra. Trata-se de uma terra fundamental ao futebol argentino, apesar da decadência atual. Os primórdios do esporte bretão entre os hermanos estão diretamente atrelados à comunidade escocesa na Argentina. A importância da nação do uísque, gaita de foles, Nessie e kilts também vai além, tendo marcos na passagem de Maradona pela seleção e ainda hoje reluz em camisas de um gigante, o Independiente.
Das Highlands veio Colin Bain Calder, sócio-fundador e primeiro presidente do Rosario Central, clube criado ainda em 1889 (anos mais tarde, em homenagem a Calder, o time adoraria as cores azul e amarelo por serem as do brasão de Dingwall, povoado de origem do dirigente). Em 1891, houve um torneio argentino inaugural – a comunidade britânica na Argentina, muito mais numerosa ali do que no Brasil, criou o campeonato nacional de futebol mais antigo do mundo fora do Reino Unido. E os primeiros campeões foram integralmente compostos por imigrantes escoceses, com os nomes das equipes contendo referências diretas às raízes: Saint Andrew’s e Old Caledonians.
Santo André, com sua cruz em forma de X marcando a bandeira nacional, é o santo padroeiro da Escócia, chamada de Caledônia pelos antigos romanos. Os dois dividiram o título – curiosamente, o primeiro campeonato escocês encerrou-se naquele mesmo ano e também com o título dividido, entre Dumbarton e Rangers. Na Argentina, porém, hoje está mais aceito por mídia e historiadores que o Saint Andrew’s foi o único campeão, pois venceu o Old Caledonians em jogo-extra; só que a partida não valia formalmente o título, e sim com quem ficariam as medalhas, pois a AAFL não tinha receita para pagar por duas coleções.
A AAFL era a Argentine Association Football League, que não teve sucesso em produzir uma nova edição do campeonato para 1892 e se extinguiu. Uma nova AAFL foi fundada em 1893 e desde então o torneio é disputado ininterruptamente.
A atual AFA (Asociación del Fútbol Argentino) considera-se sucessora desta segunda AAFL e oficialmente não reconhece o torneio de 1891, razão pela qual a Copa Centenário (clique aqui) foi realizada em 1993 e não em 1991. E a nova AAFL também teve influência escocesa direta; seu fundador é considerado “o pai do futebol argentino”: Alexander Watson Hutton, imigrante entusiasta da prática esportiva nos colégios que dirigia, primeiro no próprio Saint Andrew’s (os primeiros campeões eram de escola de mesmo nome) e depois no Buenos Aires English High School, cujo time participou do certame. Watson Hutton atuou nele como árbitro.
Mas a BAEHS só viraria potência na virada do século, com seu primeiro título vindo em 1900. Antes, o primeiro bicho-papão foi o Lomas Athletic, cujos escoceses William Leslie e Willie Stirling foram artilheiros do campeonato. Leslie, já pelo Quilmes, chegaria a jogar a primeira partida da seleção argentina, em 1902, marcando gol.
Em 1901, o time do colégio de Watson Hutton passou a chamar-se Alumni. O clube, pouco sustentável financeiramente, deixaria o futebol dez anos depois após enorme sucesso nos campos: venceu dez títulos. Até hoje, só “os cinco grandes” – Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo – o ultrapassaram. O Vélez conseguiu seu décimo título no ano passado, exatamente cem anos depois que a extinção do departamento de futebol do Alumni foi oficializada, em assembleia de 1913.
E o Alumni, naturalmente o celeiro da seleção na época (a Argentina já chegou a entrar em campo com oito dos onze jogadores sendo do clube) esteve cheio de jogadores de origem escocesa. Um foi o próprio filho de Alexander Watson Hutton: Arnoldo Watson Hutton, nascido já em Buenos Aires. Artilheiro do campeonato de 1910, Arnoldo era descrito como cerebral e potente ao mesmo tempo, dono de chute demolidor, chegando à seleção por méritos próprios. Veio ao Alumni após formar-se em medicina em Edimburgo.
Outros escoto-argentinos no clube eram os Brown, netos de imigrante que desembarcara junto com a primeira leva de escoceses na Argentina, nos anos 20 do século XIX. Houveram seis Brown na seleção: os irmãos Jorge, Carlos, Alfredo, Ernesto e Eliseo (listados aqui por ordem de idade de cada um) e um primo, Juan. Todos eles e o colega Arnoldo Watson Hutton, como muitos outros do clube, praticavam outra tradição de origem moderna escocesa: eram maçons. Sobre os Brown, vale uma rápida apresentação.
É que Jorge, duas vezes artilheiro do campeonato argentino, foi tido como o primeiro jogador-símbolo da seleção, havendo até clube com seu nome. Carlos, ao viajar para estudos nas Escócia, foi convidado a profissionalizar-se lá como jogador, quando receber dinheiro para jogar estava longe de ser cogitado na Argentina. Alfredo foi uma vez artilheiro do campeonato argentino. Ernesto e Eliseo, por sua vez, tiveram cada um marcas que só Maradona superou.
Ernesto ainda tem a de recorde de títulos argentinos, pois esteve nos dez do Alumni (o jogador só tinha 15 anos no primeiro, em 1900) e no primeiro do Quilmes, em 1912. E era o mais velho estreante na seleção, por ter 17 anos e seis meses em 1902. O Dieguito o superou com os 16 anos e quatro meses que possuía em 1977, mas o segundo lugar como estreante mais novo pela seleção principal da Argentina continua sendo Ernesto Brown. Eliseo, por sua vez, foi quatro vezes artilheiro do campeonato argentino, marca que na era profissional ninguém além de Maradona superou ou mesmo igualou. Diego obteve cinco – e, vale dizer, favorecido por tempos de dois campeonatos argentinos ao ano.
Já o primo dos cinco irmãos Brown, Juan, também tem marcas próprias. Como a de ter sido o último remanescente da família na seleção, o único de todos os Brown a jogar contra o Brasil e também o único a disputar a Copa América (precisamente na edição inaugural, em 1916). Ele também é quem mais jogou pela Argentina como jogador do Quilmes.
O próprio Quilmes, afinal, nasceu como outro clube de origem britânica, adotando o branco da seleção inglesa e o azul marinho da escocesa – chegando mesmo nos primórdios a ser restrito a anglo-saxões, motivando a criação do vizinho Argentino de Quilmes (exatamente a primeira equipe a trajar-se com camisa alviceleste no país, antes mesmo da seleção, antes do Racing ou do Atlético Tucumán) justamente para a cidade ter um clube aberto aos latinos. O Quilmes até já vinha aceitando hispânicos, mas foi a equipe que mais herdou boa parte dos ex-jogadores do recém-extinto Alumni. Com muitos Brown no elenco, os Cerveceros ganharam aquele título de 1912. E só voltariam a ser campeões uma outra vez, e mais de sessenta anos depois, em 1978.
O Alumni era tão respeitado que inspirou mais de um uniforme de prestígio: sua vestimenta (camisa com listras horizontais alvirrubras, calções e meias negras) foi adotada integralmente pelo Estudiantes, fundado em 1905. E o Uruguai adotou a icônica camisa celeste com calças e meias negras, cores ausentes na bandeira, para homenagear o River Plate uruguaio, que com essa combinação vencera o Alumni em amistoso de 1908 – a camisa original desse River era parecida com a do adversário. Seria uma homenagem ao feito e talvez também uma provocação aos derrotados, que tanto enchiam a seleção rival.
A camisa alvirrubra do Alumni também foi inspiração para as do Instituto de Córdoba (clube que revelou Kempes, Ardiles e Dybala) e do Talleres de Escalada – sumido desde 1938 da primeira divisão, mas pôde revelar Zanetti, Germán Denis e polir nos infantis Fernando Redondo. O Alumni hoje ainda desfila nos gramados argentinos, mas nos de rúgbi, bem como o San Andrés, clube formado por ex-alunos da escola do Saint Andrew’s.
A partir dos anos 10, o futebol argentino se latinizou e a influência britânica foi sumindo, deixando para trás tempos de jogadores com sobrenomes típicos escoceses, como os de Carlos Buchanan, Walter Buchanan, Guillermo Ross (todos do Alumni), Colin Campbell (Estudiantes de Buenos Aires), Roberto Cochrane (Tiro Federal), Arturo Forrester (Belgrano Athletic, o rival do Alumni), Cándido Maccoubrey (Sportivo Barracas) e Juan Murray (Quilmes), todos usados pela seleção até os anos 20. O zagueiro Eleuterio Forrester, dos anos 30 e grande ídolo do Vélez, foi outro daqueles primeiros tempos. Em 1918, o fim da Primeira Guerra Mundial inspirou o nome do Douglas Haig, campeão da 3ª divisão em 2010. Douglas Haig era um marechal escocês líder das tropas britânicas.
Nos anos 40, o Boca teve o zagueiro Luis Laidlaw, que passaria pelo Botafogo, sem êxito duradouro em ambos. E o Newell’s adquiriu, em pacote em 1948, os três únicos escoceses nativos utilizados na era profissional da elite argentina, todos obscuros na própria terra natal e de serviços efêmeros aos rosarinos: o ponta-esquerda Stewart MacCallum (vindo do time galês Rhyl), o meia-direita William Kilpatrick (ex-Dunfermline, Stenhousemuir e Morton) e o centroavante Donald MacDonald, do Kilmarnock.
Desde então, só outro jogador de origens escocesas teve algum destaque: o lateral Carlos Mac Allister, ídolo de Argentinos Jrs e Boca na virada dos anos 80 para os 90. Com retrospecto invicto pela Argentina, El Colorado (era ruivo, como um típico escocês) chegou a ser cotado para a Copa 1994. Mas suas raízes são indiretas: seus antepassados Mac Allister europeus mais próximos eram irlandeses – ramos desse clã escocês se estabeleceram desde o século 13 na Irlanda do Norte e se assimilaram à cultura local.
Atualização em 05-09-2019: nesse dia, Alexis Mac Allister, um dos três filhos de Carlos e igualmente ex-jogador de Argentinos Jrs e Boca, estreou pela seleção argentina. Nesse meio-tempo, publicamos aqui uma nota sobre a carreira do pai, que chegou a ser ministro de esportes na presidência de Mauricio Macri; e publicamos aqui nota sobre outros casos de pai e filho que defenderam o Boca.
Apesar do sumiço, cem anos depois vez ou outra os símbolos escoceses se fazem presentes no futebol argentino. É que o primeiro uniforme do Independiente fazia referência ao Saint Andrew’s. A camisa era branca com um brasão azul com a cruz de Santo André e as iniciais IFC, de Independiente Football Club, e as calças e meias no característico azul-marinho escocês, mantidas nessas cores após a camisa passar a ser vermelha.
Essas origens são resgatadas com alguma frequência em camisas reservas, algumas inclusive em azul-marinho. Foi assim que os rojos decidiram a Intercontinental de 1972 contra o Ajax e tiveram sua última glória internacional, a Sul-Americana 2010, sobre o Goiás. Com a camisa branca, papou a Supercopa 1995 sobre o Flamengo em pleno Maracanã com 100 mil ansiosos por um título para o centenário flamenguista. Essas camisas reservas também reproduzem o antigo brasão.
Atualização em 06-12-2017: nesse dia, dessa vez pela Copa Sul-Americana, o Independiente obteve outro título sobre o Flamengo, novamente no Maracanã – assim, novamente recorreu à camisa reserva branca com o antigo distintivo, tal como em 1995.
Vale contextualizar que até a Segunda Guerra Mundial era a Escócia a seleção britânica mais forte: era a maior campeã do quadrangular anual das quatro nações (o British Home Championship, disputado por cem anos, entre 1884 e 1984) e também detinha mais vitórias do que derrotas no clássico com a Inglaterra – que, se nos anos 50 ultrapassou a vizinha em títulos no quadrangular e ainda sagrou-se campeã mundial em 1966, ainda tardaria até os anos 80 para reverter a desvantagem no duelo direto.
As seleções de Argentina e Escócia, por sua vez, demorariam bastante para se encontrar, mas houve espaço para bastante pompa em amistosos da Albiceleste contra clubes escoceses naquele cenário pré-Segunda Guerra. Com o tempo, os duelos acabaram esquecidos como “não-oficiais”. Mas, para receber o Third Lanark Athletic – o único clube de Glasgow a já ter sido campeão escocês além da dupla Celtic-Rangers – em 24 de junho de 1923, a Argentina pela primeira vez utilizou números no uniforme e até providenciou um solene desfile com gaita de foles.
O antigo estádio do River na esquina Alvear e Tagle, inaugurado no mês anterior ano como primeira cancha riverplatense na fina zona norte portenha, viu um 1-1 honroso com o Third Lanark: os hermanos venciam até os 44 minutos do segundo tempo. Ainda naquele contexto, mesmo o modesto Motherwell falou grosso, em 2 de junho de 1928: 3-0 no antigo estádio do Boca, sobre uma seleção argentina formada pelos jogadores que não haviam embarcado às Olimpíadas de Amsterdã.
A Escócia também está marcada na carreira do ícone máximo do futebol argentino: foi contra ela que Maradona marcou seu primeiro gol pela Argentina, em um 3-1 em 1979 dentro de Glasgow (Leopoldo Luque fez os outros), época em que os escoceses tinham a mais forte seleção britânica – entre 1974 e 1998, só se ausentaram de uma Copa do Mundo, a de 1994, ao passo que a Inglaterra se ausentou de simplesmente três (1994 também, além de 1974 e 1978), ambos cenários que atualmente parecem impensáveis.
E foi contra a mesma Escócia que Dieguito iniciou sua trajetória de técnico na Albiceleste. Curiosamente, também no Hampden Park, em amistoso em 2008 – outra vitória, 1-0, gol de Maxi Rodríguez, na última vez em que as duas seleções se encontraram.
Além desses dois duelos marcantes à cronologia maradoniana, Argentina e Escócia se enfrentaram outras duas vezes. O primeiro de todos os encontros foi um 1-1 na Bombonera em 1977, gol de Passarella, em jogo que crucificou o defensor Vicente Pernía por expulsão (perderia a Copa 1978 e só seu filho Mariano iria a um mundial, pela Espanha, em 2006). O outro duelo não foi menos desagradável à Albiceleste: derrota de 1-0 em Glasgow em amistoso pré-Copa em 1990.
De forma inversa, alguns argentinos também marcaram o futebol escocês. Caniggia é o único convocado de lá pela seleção: já no ocaso da carreira, com a Scottish Premier League ainda com algum prestígio (o futebol local havia ido à Euro 1996, à Copa 1998 e quase havia ido à Euro 2000, ficando perto de eliminar fora de casa a rival Inglaterra na repescagem), Cani teve certo destaque no Rangers o suficiente para ser desenterrado por Marcelo Bielsa em 2002 e acabar indo ao Mundial da Ásia.
Antes de ser redescoberto por Bielsa, o veterano astro já havia ido bem no Dundee – onde até foi colega de outro argentino ex-seleção, Luis Alberto Carranza (ex-Racing, Boca, Independiente e San Lorenzo e que jogou ainda por Quilmes e um clube chamado Alumni). Caniggia teve estrela nos clássicos: pelo Dundee, vazou o Dundee United e, na Old Firm, deixou o dele no dérbi que rendeu o título da Copa da Liga Escocesa de 2002-03.
Após a saída de Caniggia, o Dundee inclusive encheu-se de argentinos para a temporada 2001-02: além do próprio Betito Carranza, também Juan Sara, Fabián Caballero, Walter del Río, Alberto Garrido e Lucas Gatti (filho do mitológico goleiro Hugo Gatti) estiveram no momento em que esse clube até adotou uma camisa alviceleste como reserva.
Dado extrafutebolístico: se a Escócia optar pelo sim à independência, ela virá exatamente no ano em que se completam 700 da batalha de Bannockburn (a da cena final do filme Coração Valente), que marcara em 1314 a primeira independência escocesa junto à Inglaterra. Essa independência durou até 1603, com a união das coroas após o rei escocês Jaime VI, parente mais próximo da rainha Elizabeth I (que, sem filhos, falecera naquele ano), assumir o vazio trono vizinho, mas mantendo o centro político em Londres.
Abaixo, especiais relativos a diversos tópicos levantados na nota:
Futebol e Rugby – Parte 3: o Club San Andrés
Futebol e Rugby – Parte 4: o Asociación Alumni
100 anos sem o multicampeão Alumni
105 anos da estreia da camisa alviceleste na seleção
100 anos do primeiro título do Quilmes e o fim de uma era
Familiares na Seleção Argentina – Parte 1: os Brown
Familiares na Seleção Argentina – Parte 8: Pais & Filhos (II)
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