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Era forte e era frágil: 20 anos do suicídio do “novo Redondo”, Mirko Saric

Antes de seu golaço em um 4-0 no Racing em 1999

Republicação revista e atualizada dessa nota de 2018 

“Não encontro sentido na minha vida”. Talvez seja essa a frase mais marcante para diagnosticar uma pessoa com depressão. No futebol argentino, ela foi dita por um jovem talento com potencial de ídolo máximo da seleção. Há 20 anos, Mirko Saric cometeu suicídio e expôs a questão sobre o peso emocional e fragilidade de sentimentos na vida de um jogador. 

Neto de imigrantes croatas (Šarić seria a grafia original do sobrenome e sua pronúncia, algo como “Xáritch”, mas aos argentinos Saric virou “Sarítch” mesmo), ele nasceu em Buenos Aires no dia 6 de Junho de 1978, enquanto a Argentina vencia a França na primeira fase da Copa do Mundo. Desde cedo demonstrou muita vontade de ser jogador. Como morava no bairro Flores, vizinho ao tradicional bairro sanlorencista de Boedo e que anos depois viria a abrigar o novo estádio do próprio San Lorenzo, entrou com 9 anos para as categorias de base do clube– inicialmente, como centroavante.

Com 18 anos, após vencer já como volante o campeonato argentino de aspirantes de 1995-96, estreou profissionalmente no Ciclón. Foi no dia 22 de dezembro de 1996, pelo campeonato Apertura, ao substituir o ídolo Néstor Gorosito. 

“Sempre teremos presente sua mágica canhota, aquele porte de craque e, sobretudo, o sorriso de bom garoto que te iluminava o rosto” foram algumas palavras que o San Lorenzo dedicou hoje a Mirko

Apesar da derrota por 2-0 para o Unión de Santa Fe, aquele volante alto chamou a atenção do então treinador Carlos Aimar. O San Lorenzo atravessava um período de transição entre os campeões de 1995 com os jovens da base que viriam a ter êxito em 2001. Essa transição ficaria sob responsabilidade de Oscar Ruggeri, campeão da Copa do Mundo de 1986 que, presente ainda como veterano jogador na campanha que encerrou em 1995 o jejum de 21 anos dos cuervos na elite, iniciava em 1998 sua carreira de treinador. Mirko, após ter sido relegado pelo antecessor de Ruggeri (Alfio Basile), passava a ser uma referência entre os jovens e ganhava muitas oportunidades especialmente na Copa Mercosul. 

No dia 18 de fevereiro de 1998, jogou sua primeira partida como titular no Nuevo Gasómetro, contra o Gimnasia LP (vitória adversária por 1-0). Exatos seis meses depois, em 18 de agosto de 1998, marcou seu primeiro gol pelo San Lorenzo, na vitória por 4-0 contra o Colo-Colo pela Copa Mercosul. Naquela competição, o Ciclón chegaria até as semifinais (foi eliminado pelo vice campeão Cruzeiro), algo que animou a torcida então carente de títulos internacionais. 

No início de 1999, destacando-se nos torneios de verão, seu passe foi avaliado em nove milhões de dólares e o Real Madrid demonstrou muito interesse no “Novo Redondo”, mas o presidente sanlorencista disse que só venderia Mirko por treze milhões. Porém, durante um aquecimento no jogo contra o Rosario Central, Saric sofreu sua primeira contusão, ao ser atropelado por um veículo inusitado: o carro maca, o que lhe provocou um profundo corte no joelho. Recuperou-se, mas um nível abaixo do que vinha demonstrando.

Subindo degraus ao estrelato, em produção para a revista El Gráfico em 1998

Gente próxima viria a declarar que ele se afundava profundamente quando as coisas já não saíam como queria. “Por aí um insulto das pessoas por um passe errado era um martírio em forma de labirinto, do qual lhe custava uma enormidade encontrar a saída”, ventilou seu verbete no Diccionario Azulgrana – livro publicado em 2008 com perfis de cada jogador dos primeiros 100 anos do San Lorenzo.

Na página inteira dedicada a Saric, a introdução do verbete a ele dedicado descreve que “o seu foi o exemplo mais puro e conciso de que a vida de um jogador não se concentra só dentro do campo de jogo. Que o ambiente da bola não é, precisamente, um jardim de rosas embriagado com música de violinos. Por mais que se tenha o trabalho mais lindo do mundo e que alguém se remunere bastante bem por correr atrás de uma bola. Ou por desfrutar jogando em estádios cheios e que se tenha acesso a placares algo distantes para o homem comum, esse que não tem fama, nem dinheiro e nem assina autógrafos”.

Nesse período, Mirko começava a demonstrar instabilidades emocionais com atos de indisciplina – inclusive a imprensa explorou muito um caso em que alguns jogadores do San Lorenzo foram acusados de levar garotas para a concentração. Depois de alguns dias, Mirko, na concentração, foi até o quarto do treinador e fez a declaração que paralisou El Cabezón Ruggeri: “Não encontro sentido na minha vida”. 

Com o “mentor” Ruggeri e em campo pelo San Lorenzo na temporada 1999-2000

De imediato, Ruggeri pensou que o jovem meia tinha dúvidas sobre questões táticas, mas no decorrer da conversa notou que era algo muito além do futebol. Ali estava um jovem perturbado com sentimentos que não conseguia resposta. Ruggeri viu naquele momento que a função de técnico ultrapassava a simplicidade de um mero jogo; tampouco conseguia entender como um jovem bonito (“tinha que tirar as novinhas da concentração porque vinham por todos os lados”, afirmaria o treinador já em 2003), com talento e cheio de saúde estava reprimindo emoções e questionando algo tão expansivo de explicações. 

Ruggeri acolheu o pupilo de forma mais fraternal e humana; e entrou em contato com o pai do jogador, ao qual acabou confessando o início de um tratamento psiquiátrico de Mirko Saric. O momento mais simbólico dessa relação entre o treinador e o volante veio na última rodada do torneio Clausura de 1999, onde Saric ainda pôde destacar-se a ponto de ser colocado ao lado de Javier Saviola e Pablo Aimar como uma das maiores revelações do torneio.

Naquela partida, Saric roubou a bola de um jogador do Racing e chutou de fora da área marcando um golaço (o segundo na vitória por 4-0). Na comemoração, Mirko saiu apontando para Ruggeri e deu-lhe um caloroso abraço. Todavia, chamou atenção também o fato de Mirko apontar para sua cabeça, como se quisesse dizer para alguém nas tribunas do Nuevo Gasómetro que ela estava boa.

“Proibido usar água e sabão”, brinca o veterano ídolo Roberto Telch com Raúl Estévez, Leandro Romagnoli, Mirko Saric e Bernardo Romeo, os novos “Cara-Sujas”

Se no torneio Clausura o Boca de Carlos Bianchi não deu margem aos concorrentes (no embalo de um recorde profissional de 40 jogos invictos ainda vigente0, no torneio Apertura o San Lorenzo concorreu seriamente pela taça. Foi no embalo de uma garotada bancada por Ruggeri que rendeu até nota com Roberto Telch, ídolo dos anos 60, marcados no clube pelo irreverente elenco apelidado de Los Carasucias – “Os Cara Sujas”, antiga gíria argentina para moleques e onde também brilhava Narciso Doval, futuro ídolo de Flamengo e Fluminense. Telch, agora grisalho, apresentava os sucessores, em nota com o espirituoso título “Proibido usar Água e Sabão”, em referência àquele carinhoso apelido. 

Em paralelo, pela Copa Mercosul, Mirko se destacou nos jogos contra Corinthians e Palmeiras, porém novamente o Ciclón cairia para uma equipe Brasileira que seria vice campeã (dessa vez o Palmeiras). O irmão dele, Martín Saric, jogava nos juvenis do San Lorenzo (atualmente é até técnico do time de veteranos do clube) e foi negociado com o Sportivo Luqueño do Paraguai no final de 1999. Sua irmã Mariana tinha casado.

Em meio a isso, Mirko Saric reforçou pontualmente a equipe B do San Lorenzo para o campeonato da categoria… e, lesionou-se nele, em jogo contra o time B do River em dezembro. Rompeu os ligamentos do joelho esquerdo e ficaria um bom tempo parado. O jogador foi morar com os pais e sua outra irmã, Mirna. E, já em fevereiro de 2000, escapou ileso de um acidente automobilístico, após seu carro capotar em Buenos Aires. 

Saric enganosamente sorridente e Ruggeri assistindo San Lorenzo x Ferro Carril Oeste em 31 de março de 2000. Quatro dias antes da tragédia

Ontem, sua mãe Ivana reiterou à imprensa que o baque mais duro ao volante foi descobrir que não era seu o filho esperado por uma namorada com quem tinha uma relação conturbada; um caro exame de DNA para a época foi feito a pedido de Ivana, que sabia através de Martín que a moça saía com outros homens. Mirko, que acompanhara toda a gravidez, confiava na paternidade e teria aceito realizar o exame apenas para poder ir à forra com a mãe. A dor se misturou ao receio das potenciais gozações que enfrentaria dos adversários em um meio muitíssimo mais machista do que ainda é hoje – quando não possivelmente até de próprios colegas, que haviam já dado presentes ao bebê.

Ivana revelou ainda que a intuição materna o levou a acordar na madrugada para telefonar ao filho, ciente de que ele não vinha tomando medicamentos de um tratamento iniciado três semanas antes (pouco após uma declaração pública de que poderia se matar). O clique foi o jogador ter mostrado indiferença quanto à lavagem de roupa, embora normalmente fosse cuidadoso com isso, e seus cumprimentos a familiares no fim de semana prévio passaram a ser encarados como um ritual de despedida.

Na conversa telefônica, a mãe procurou ressaltar-lhe de que “tudo tem uma solução na vida, menos a morte”, no que ouviu “por acaso és uma bruxa que lê a minha mente?”. Segundo Martín, o copo transbordou quando Ruggeri optou por não levar Mirko para a partida no Paraguai contra o Cerro Porteño que ocorreria no dia 6 pela Taça Libertadores.

Notas póstumas a Saric na revista El Gráfico (“recordando Mirko”) e no jornal Olé: “era forte e era frágil. Brigava em campo, se derrubava na intimidade”

Na manhã da terça feira de 4 de abril de 2000, a mãe do jogador o chamou várias vezes para tomar café da manhã, e inicialmente chegou a vê-lo dormindo na cama. Ao abrir a porta do quarto uma outra vez, deparou-se com o filho já enforcado com um lençol, num aparelho de ginástica que havia sido presenteado a ele por uma das irmãs. O serviço de emergência médica chegou dez minutos depois, mas já não haveria como salvar a vida do jogador. O corpo do Mirko Saric foi velado em Boedo.

Sua irmã Mirna chegou até a declarar que o clube vetava alguns antidepressivos por receio do exame antidoping e que Ruggeri era o único que o acolhia com carinho. Já o irmão Martín declarou alguns anos depois que nunca mais teve controle emocional para jogar na Argentina, especialmente após ver um boneco enforcado na torcida do rival Huracán e saber de uma declaração de Maradona – “não tenho nada contra Saric, mas quem se suicida é um cagão”. 

Martín fez sua carreira na Europa e América do Norte, foi campeão na Croácia e no Canadá até encerrar a carreira no Sportivo Luqueño em 2011 – e, justiça seja feita, com o tempo Maradona tornou-se mais compreensível com o drama, conforme seu pronunciamento em 2019 após o aparente casca-grossa Julio César Toresani, ex-desafeto, também ser derrotado pela depressão. Mirko, por sua vez, vestiu a camisa do San Lorenzo em 51 partidas oficiais, marcando nelas cinco gols (fez outros dois em amistosos).

9 de abril de 2000. Emoção da família Saric diante de homenagens da torcida do San Lorenzo, antes de duelo com o Boca pelo Clausura

Em janeiro de 2002, por ocasião do título azulgrana na própria Copa Mercosul, a primeira taça continental do clube, Clarín imaginou como a final contra o Flamengo poderia estar sendo acompanhada em outros planos pelo ex-jogador Narciso Doval, morto havia cerca de dez anos e que jogou nos dois; pelo ex-treinador Juan Carlos Lorenzo, falecido dois meses antes; e por Saric, dentre outros. As palavras destinadas a ele foram essas: “Mirko Saric assiste com melancolia. Lembra quando, há um semestre, a maioria desses jogadores lhe dedicava o Torneio Clausura na intimidade do vestiário. Seus olhos brilham. Mas Mirko não se quebra, e fala para si mesmo: ‘e pensar que eu poderia estar aí. No lugar de Walter (Erviti), ou de Pablo (Michelini). Mas bem, estou aqui. E quero que ganhem, velho. Vamos, pô, não falhem comigo. Quero que me dediquem outro título, o melhor de todos, o mais valioso, beleza?”.

Clique aqui para conhecer outros jogadores argentinos de origem croata, alguns com passagem pela seleção. Abaixo, o aconselhamento tocante feito pelos amigos da Trivela na nota que dedicaram ao caso de Toresani:

Caso você sofra de depressão ou possui algum entrave ligado à saúde mental, procure ajuda. Também o faça se você se sentir depreciado, com a autoestima baixa, desesperançoso com a vida e/ou se isolar das relações sociais. Não hesite em buscar auxílio ou o atendimento com um profissional – por exemplo, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de sua cidade ou região, ligado ao SUS, ou mesmo na Unidade Básica de Saúde mais próxima. Você também pode procurar o CVV, o Centro de Valorização da Vida. O canal realiza apoio emocional e prevenção ao suicídio. Através do número 188, atende gratuitamente pessoas que desejam conversar, sob total sigilo.

O contato também pode ser feito pelo site oficial, por e-mail ou mesmo por Skype. Quando você pede ajuda, você: “é respeitado e levado a sério; tem o seu sofrimento levado em consideração; fala em privacidade com as pessoas sobre você mesmo e sua situação; é escutado; é encorajado a se recuperar”. E se você conhece alguém em uma situação de risco, não deixe de procurar essa pessoa e de oferecer ajuda. O Ministério da Saúde também possui uma página em que orienta como identificar, agir e prevenir o suicídio. Reconheça os sinais, conforme a indicação da Superinteressante e do Ministério da Saúde:

“Frases ou publicações nas redes sociais que falem de solidão, culpa, apatia, autodepreciação, desejo de vingança ou hostilidade fora do comum; isolamento, não atendendo a telefonemas, interagindo menos nas redes sociais, ficando em casa ou fechadas em seus quartos, reduzindo ou cancelando todas as atividades sociais, principalmente aquelas que costumavam e gostavam de fazer; preocupação com sua própria morte ou falta de esperança, com sentimento de culpa, falta de autoestima e visão negativa de sua vida e futuro; diminuição ou ausência de autocuidado; aumentar o uso de álcool ou drogas, mudanças drásticas de peso, dirigir perigosamente; perguntas sobre métodos letais, como facas, armas ou pílulas; enaltecer e glamourizar a morte; desfazer-se de objetos pessoais e dar adeus”. 

Vale ressaltar que, embora não seja a maioria das pessoas doentes que cogita ceifar a própria vida, os transtornos mentais são um fator de risco ao suicídio. Em compensação, há sempre uma saída. O avanço da medicina ligada à saúde mental é significativo e a atenção dada pelo sistema público de saúde ao tema cresceu nos últimos anos.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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