Este sábado de 12 de novembro de 2011 marca o meio século de vida d’El Príncipe. Dois conterrâneos seus, Horacio Vignoles e Zoilo Canaveri, chegaram a defender a Argentina. Muitos outros também fizeram sucesso no lado ocidental do Rio da Prata: Juan Carlos Corazzo, Severino Varela, Walter Gómez, Tomás Rolán, Vladas Douksas, Juan Carlos Mesías, Roberto Matosas, Ricardo Pavoni, Sergio Sapo Villar, Luis Garisto, Juan Ramón Carrasco, Antonio Alzamendi, Carlos Goyen, Nelson Gutiérrez, Luis Malvárez, Rubén Paz, Sergio Manteca Martínez, Sebastián Loco Abreu e Diego Forlán, para ficar apenas entre os que se tornaram ídolos em algum dos cinco grandes. Mas foi Enzo Francescoli Uriarte aquele que chegou a ser alcunhado como El Oriental Más Argentino.
Carismático, refinava o meio-de-campo das equipes por qual passou com seu estilo elegante e cerebral de jogo. Um dos maiores craques do século passado, sua trajetória no futebol argentino – ou melhor, no River Plate, onde é o estrangeiro que mais gols marcou (também é o maior goleador uruguaio na Argentina) – está entre aqueles ciclos de fechamento praticamente perfeito. Um charrua que superou a rivalidade vizinha (a saber: bem maior que a que os argentinos nutrem pelos brasileiros), tendo cativado até torcedores de outros times. Aquele Flaco de olhos esbugalhados e orelhas de abano chegou aos millonarios em 1983, recomendado por ninguém menos que Beto Alonso, outro que entre idas e vindas fechou com glórias a carreira no time de Núñez.
Ele demoraria um pouco a cumprir as altas expectativas em torno dele – fora o principal jogador do Montevideo Wanderers que naquele início de década voltava a se intrometer (tal qual o clube fizera no amadorismo uruguaio) entre Nacional e Peñarol (que, fora a tradição, contavam ainda com verdadeiros timaços na época), e talvez a maior figura do título da Copa América daquele ano, que fez o Uruguai se reigualar à Argentina entre os maiores campeões sul-americanos.
O River não terminou bem no Metropolitano; a campanha que fez inclusive o teria rebaixado caso os promedios, que duram até hoje, não estivessem já programados para aquela temporada. A El Gráfico inclusive se perguntou, em uma de suas capas daquele 1983: “Qual é o verdadeiro Francescoli? Fracasso na Argentina ou ídolo no Uruguai?”.
Ainda sentindo falta da terra natal (logo ele, cuja família se radicaria-se em Buenos Aires de tanto que se acostumou ali), era constantemente um bode expiatório daquele período ruim do River. A transição demorou um ano: o millo somou outro ano sem títulos em 1984, chegando a perder por 3-0 no Monumental a final do campeonato nacional, no primeiro semestre, para o pequeno Ferro Carril Oeste. No segundo semestre, o meia foi o artilheiro do metropolitano, em uma campanha apenas regular da banda roja – o suficiente para que Enzo fosse eleito o melhor jogador da América do Sul.
O Príncipe finalmente triunfou na temporada 1985/86, que extinguiu os dois torneios anuais para instituir na Argentina um campeonato à europeia. O novo técnico, Héctor Veira, avançou Enzo, que passou a ser um camisa 9. O River lutou pela ponta desde o início, embalado pelos gols do uruguaio, premiado ainda em 1985 com o Olimpia de Plata (equivalente argentino da Bola de Ouro brasileira), sendo até o primeiro estrangeiro a recebê-la.
Ele terminaria o certame com nova artilharia, mas o gol mais lembrado que ele marcou no período foi em um amistoso. Não contra outro clube, mas contra uma seleção, e era o temido time da Polônia. Os europeus, em preparação para a Copa do Mundo de 1986, vieram participar do torneio de verão organizado pelos cinco grandes clubes argentinos. Ainda que sem seus principais nomes (Boniek, Smolarek, Żmuda, Młynarczyk), apenas os atacantes Okoński e Baran não seriam confirmados no plantel polaco no México.
Em Mar del Plata, os poloneses venciam por 4-2 o River até os últimos sete minutos, quando Enzo diminuiu. Centurión logo empatou. Uma virada já seria histórica por si só, quando, nos acréscimos, Ruggeri cabeceou para a área um tiro livre pela direita de Alonso, com Francescoli selando espetacularmente a vitória ao matar no peito e emendar de bicicleta para as redes com a direita. Ele fechou seu primeiro ciclo em Núñez de forma dourada: o time foi campeão com cinco rodadas de antecipação em boa parte embalado por seu artilheiro, principal figura da quebra de um tabu de cinco anos sem títulos do clube.
Francescoli foi negociado com o futebol europeu após a Copa do Mundo. Depois de quatro anos de sucesso na França, por Racing Paris e Olympique de Marselha, passou outros quatro no máximo razoáveis na Itália. A temporada de 1993/94, quando esteve no Torino após três temporadas no Cagliari, ficou-lhe marcado não apenas por apenas três gols em um ano na Bota, mas também pela não-classificação à Copa do Mundo dos EUA.
Com isso, seria natural que sua volta ao River, no segundo semestre de 1994, suscitasse dúvidas quanto ao seu rendimento. Que, se houveram, logo se dissiparam. Francescoli, aos 33 anos, iniciou o regresso da forma como terminara antes de sair: artilheiro de um time campeão, e desta vez um campeão invicto (algo então inédito na história do clube e nunca mais igualado). Com direito a um 3-0 em um Superclásico na Bombonera na penúltima rodada, com o U-ru-guayo! marcando um dos gols.
O ano de 1995 lhe seria dourado apenas pela seleção uruguaia, pois na Argentina foi-lhe mais ameno: décimo no Clausura, sétimo no Apertura e uma eliminação nas semifinais da Libertadores em pleno Monumental (o Atlético Nacional conseguiu nos pênaltis uma vaga na decisão contra o Grêmio). Ele já era um grande ídolo do River, mas foi em 1996 que El Enzo de la gente sedimentou seu lugar no panteão do clube, ao qual passara a oferecer dedicação exclusiva após considerar-se aposentado da Celeste depois do título daquela Copa América 1995.
O time cumpriu a sina de só chegar à final da Libertadores em anos terminados em 6, em uma campanha primorosa (até hoje, foi o último de melhor campanha na primeira fase a conseguir faturar o torneio). A decisão foi exatamente contra a equipe batida em 1986, quando Francescoli já estava na Europa: o América de Cali (que, curiosamente, o sondara em 1985).
Contra o time dos futuros ídolos boquenses Óscar Córdoba e Jorge Bermúdez, o River obteve o bicampeonato continental com dois gols de Crespo, um dos vários atacantes bem servidos por Francescoli (Ortega, Salas e Julio Cruz foram alguns outros) naqueles verdadeiros tempos de glória em Núñez – para oferecer o contexto da época, ali o River igualou-se ao Boca Juniors em títulos da Libertadores (os xeneizes tinham então duas e, se seus anos 90 não foram tão perdidos como os 80, foram bastante ofuscados pelos do arquirrival, então o grande time midiático do país), com expectativa ainda de superá-lo em Intercontinentais.
Isto não ocorreu; cada polo do Superclásico argentino seguiu tendo um título mundial por um tempo, pois os millonarios foram bem dominados pela Juventus em Tóquio, ainda que os italianos tenham vencido por apenas 1-0, na partida que marcou o encontro de Francescoli com seu fã mais famoso: o marselhês Zinédine Zidane, cujo pijama dali por diante foi a camisa que recebeu do ídolo (que soubera pouco antes que o francês batizara um filho de Enzo) após o jogo.
Ainda assim, o River Plate acabaria a década como campeón del siglo em parte pelos outros títulos que ainda teria sob seu capitão. Semanas após a decepção em Tóquio, o time papou o Apertura 1996, emendado com o Clausura de 1997. O Apertura seguinte parecia fácil para o Boca Juniors de um Maradona também à beira da aposentadoria. O time da Ribeira, que reunia ainda Caniggia e o iniciante Riquelme, de fato, só conheceria uma derrota, que foi para o Lanús; no jogo contra o River, venceu por 2-1 dentro do Monumental, no que foi justamente a última partida oficial de Diego.
Não bastou. Os millonarios somaram mais vitórias e conseguiram o tricampeonato com apenas um empate, na última rodada, em um 1-1 contra o Argentinos Juniors. Aquele empate no estádio do Vélez, em 21 de dezembro, foi o último jogo oficial de Francescoli, fechando o natal gordo da hinchada millonaria; no penúltimo jogo do uruguaio, quatro dias antes, ele também deu uma volta olímpica: no Monumental, o River venceu o São Paulo na final da última edição da Supercopa Libertadores. Provavelmente nenhum outro atleta do futebol foi campeão no penúltimo e no último jogo da carreira…
Um ano e meio depois, Enzo retornou uma vez mais ao gramado de Núñez, vestindo a banda roja, em 1 de agosto de 1999, no amistoso contra o Peñarol (seu time de infância) que celebrou sua aposentadoria. Marcou duas vezes na vitória por 3-0 presenciada por mais de 60 mil torcedores que incluíam não apenas as das duas equipes – dentre estes, os próprios presidentes argentino e uruguaio, Menem e Sanguinetti -, mas até alguns do Boca.
Outro torcedor ilustre do River, o músico Ignacio Copani, lançou dias antes daquela despedida a homenagem “Inmenzo”, sobre o “nobre cavaleiro” de “branca e colorada armadura” e que deveria chamar-se não Enzo, mas “Imenso”, por sua “eterna habilidade” e “humildade dentro e fora do campo” e a quem “os louros e louvores se apequenam”. A letra ainda continha a súplica de “quero ver-te uma vez mais”, o que foi possibilitado aos mais fanáticos do Príncipe no mês seguinte – quando ele enfim vestiu a camisa do Peñarol, em amistoso de 27 de setembro contra o San Lorenzo na proclamação que os aurinegros fizeram a si próprios de campeões uruguaios do século XX.
A letra, que inclui também o verso “oriental (uruguaio) mais argentino” utilizada na introdução deste especial, pode ser vista aqui. E um vídeo (que fecha com o seu último gol, em cabeceio contra o Colón no Apertura 97, e com aquela bicicleta sobre os poloneses) ao som da música, aí abaixo.
httpv://www.youtube.com/watch?v=9JlCgFZTVM8
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