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60 anos sem Ennis Hayes, o primeiro grande “bad boy” do futebol argentino

A El Gráfico é a mais prestigiada e longeva revista esportiva argentina, publicada desde 1919. Em um país futbolero, natural que seu maior enfoque seja o futebol. Mas nem sempre foi assim. Nos primórdios, era uma revista sobre atualidades variadas, tanto que apenas em 1922 colocou pela primeira vez um jogador de futebol na capa (o goleiro Américo Tesorieri, do Boca). Naquele contexto, coube a Ernesto Hayes ser o primeiro jogador mencionado pela revista, ainda em 1919. Mais conhecido como Ennis Hayes, ele faleceu há exatos 60 anos. Há poucas semanas falamos de seu irmão Harry Hayes, o maior artilheiro do Rosario Central (clique aqui). Se Ennis tinha desvantagem nas comparações, possuía também luz própria, que relembraremos agora.

Os irmãos Hayes nasceram em uma família britânica que trabalhava na Central Argentine Railway, a ferrovia financiada pelos súditos vitorianos que daria origem em 1889 ao Rosario Central. Ennis também trabalharia nela. Em anos de amadorismo no futebol, recebia dinheiro como empregado do setor elétrico. Nascido em 1896 (para algumas fontes, no dia 5 do mês 10; para outras, no dia 10 do mês 5), na bola ele não era tão prodígio como Harry, aproveitado com apenas 13 anos pela primeira vez no time adulto. Mas também começou cedo em jogos competitivos: foi com 16 anos incompletos, em 1912. Em menos de três anos, em 18 de julho de 1915, já estreava pela seleção argentina.

O início foi atribulado: logo em 1913, fora suar pelo Embarcadero (atual Gimnasia y Esgrima local, hoje um clube voltado ao rúgbi), pois o Rosario Central havia sido expulso da liga rosarina, na qual seria readmitido no ano seguinte. De 1914 a 1917, então, Ennis Hayes e os auriazuis conseguiram um tetracampeonato na liga. Somando-se ao título de 1908, o Central chegava à quinta conquista, igualando-se às cinco já obtidas pelo arquirrival Newell’s, então o maior campeão. Simbolicamente, a nova dominação se fez sentir quando o clássico foi retomado em 1914: no último jogo da liga, os rubronegros levaram de 5-0 com Ennis marcando um dos gols naquele 11 de outubro.

Mas seu grande ano foi 1916. Nos primórdios do futebol argentino, o campeonato argentino era restrito à Grande Buenos Aires e La Plata, apesar do nome. Mas a liga rosarina tinha força reconhecida, fornecendo já diversos jogadores à seleção, como o próprio Ennis em 1915. Assim, os campeões “argentino” e rosarino travavam um tira-teima, a Taça Carlos Ibarguren, para definir moralmente o campeão nacional. O grande time do país da época era o Racing, heptacampeão argentino de 1913-19.

Penúltimo agachado no Rosario Central em 1919: Francisco Furlong, Patricio Clarke, Octavio Díaz, Rodolfo Mulhall, Jacinto Perazzo e Florencio Sarasíbar; Antonio Blanco, Ernesto Guaraglia, Harry Hayes, Ennis Hayes e Antonio Miguel

Os blanquicelestes ganharam a Ibarguren quase todas as vezes que a disputaram, menos uma: a pela temporada 2015, em finais travadas em março e abril de 1916, ambos em Buenos Aires. E os centralistas levaram não só aquela taça e a liga rosarina, como outros troféus naquele ano: as etapas nacionais da Copa Honor e a Copa Competencia, competições que envolviam clubes das associações argentina, rosarina e uruguaia. O Independiente foi o adversário derrotado nas duas finais nacionais.

Ennis brilhou especialmente na Copa Honor. A campanha começou já nas quartas-de-final, no clássico com o Newell’s. O arquirrival foi massacrado por 7-0 com dois daquele provocador meia-esquerda. Se Harry Hayes era reconhecido pelo cavalheirismo e sobriedade, Ennis era o malicioso – a expressão de seu rosto em todas as ilustrações dessa matéria demonstra bem.

De corpo esguio, tinha muitos recursos para fintar adversários (era um obstinado pela tática, sendo por isso chamado de “jogador científico” na época) e já havia demonstrado isso em um clássico no ano anterior, no qual driblara três rubronegros para chegar à grande área, livrando-se depois do goleiro e entrando com bola e tudo – essa partida fora outra goleada, um 6-0 que ainda teve outro gol dele.

Nas semifinais, Ennis somou quatro no pobre Argentino de Quilmes, também abatido por 4-0. E na decisão fez o gol da vitória por 1-0 sobre o Independiente, aos 37 minutos de jogo. Nesse embalo, Ennis jogou naquele ano quatro de suas onze partidas pela Argentina, incluindo participação na primeira Copa América, ao lado do irmão Harry. O torneio se realizou na Argentina em julho, mas o Uruguai terminou campeão. O troco veio em outubro: os hermanos surraram os charruas com um 7-2, a maior goleada do clássico do Rio da Prata. Ennis marcou duas vezes.

Outra imagem de 1919, mas da seleção argentina: novamente penúltimo agachado, novamente ao lado do irmão Harry (ao meio)

O sucesso, porém, não parecia satisfazê-lo. Episódios de indisciplina ou desejos de humilhar se tornaram crescentes. Como quando esmurrou o árbitro em jogo contra o Racing pelas semifinais da Copa Competencia de 1917, algo que lhe rendeu uma punição a princípio perpétua mas logo comutada: logo em 1918 ele voltou a atuar mais quatro vezes pela Argentina, após uma única partida pela seleção em 1917 (pela Copa América, em outro clássico com o Uruguai, o único oponente que enfrentou pela Albiceleste).

Se após aquela punição Ennis segurara as mãos, não fez os mesmo com os pés. Em 1919 e em 1920, respectivamente contra o Gimnasia y Esgrima de Rosario e contra o Belgrano de Rosario, sentou na bola após driblar diversos adversários e ficar com o gol vazio. Chegou a ser reprimido pelo próprio pai; contra o Belgrano, gerou o incidente gerou confusão que encerrou prematuramente a partida.

Mas não foi por isso que ele recebeu a primeira menção de um jogador de futebol na revista El Gráfico. Foi tão somente como autor do gol de honra em derrota por 4-1 para o Uruguai em 18 de julho de 1919, ano em que a revista surgiu. Aquela foi justamente sua última partida pela seleção. Foi atrapalhado por novo cisma na liga rosarina; o Central, em 1920 e em 1921, disputara um campeonato dissidente e, com isso, boicotado pela seleção. Quando as ligas se reunificaram, os canallas não demonstraram força e amargaram um 4º lugar em 1922, sua pior colocação.

Ennis ainda seria campeão em 1923, marcando 21 gols, seu melhor retrospecto em um ano. Em 1925, porém, saiu pelos fundos para jogar no Tiro Federal. Mesmo assim, foi campeão. Pendurou as chuteiras em uma volta ao Central em 1927. Ficou na reserva, mas pôde despedir-se como campeão mais uma vez. Ao todo, foram 134 gols em 167 partidas registradas pelos auriazuis, números que fazem dele o segundo maior goleador do clube, abaixo apenas do irmão Harry. Ennis só está atrás do irmão também como artilheiro canalla no clássico rosarino, no qual marcou nove vezes. Acumulou mais de uma dezena de títulos regionais, sendo um dos maiores campeões do tão esquecido amadorismo argentino.

A cara marrenta de Ennis no Rosario Central em 1923 e no obituário feito pela El Gráfico, em 1956 – “duelo” em castelhano significa luto

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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