“Que maneira de começar, por favor! Estreei em abril de 1994 e uns meses depois fomos à série B. Tudo bem, era algo que se enxergava vir, o clube não estava bem. O rebaixamento tomava mais como torcedor, para mim era um momento duro, triste, muito triste, sobretudo porque vir do meu pai que havia ganhado tudo e eu começar e ir ao descenso não era um começo muito auspicioso, digamos”, relembrou em 2011 Juan Sebastián Verón à revista El Gráfico. Sim: La Brujita começou a carreira do pior modo possível, como que desonrando o sobrenome aclamado primeiramente em função de Juan Ramón Verón, líder do Estudiantes tri da Libertadores entre 1968-70. Mesmo os críticos daquele time concordam: sem precisar de artimanhas, Verón pai era um craque também, talvez o único ali. Hoje La Bruja faz 75 anos.
O apelido de La Bruja (“A Bruxa”), herdado pelo filho com o diminutivo Brujita (“Bruxinha”, claro) começou ainda nas divisões de base do Estudiantes e nada tinha a ver com mágica na bola: se Sebastián era facilmente reconhecível em campo pela cabeça raspada, Ramón chegou a ser cabeludo, característica que, somada ao nariz grande, rendeu a alcunha. Logo o apelido ganharia o sentido evidente da música que seria entoada ao ponta: “si ve una Bruja montada en una escoba, ese es Verón, Verón que está de joda“, traduzível para “se vês uma Bruxa montada em uma vassoura, esse é Verón, Verón que bota para foder”; depois, a expressão chula joda seria atenuada para “moda”. Inicialmente irritado, Ramón depois se acostumou em ser La Bruja. “O que menos imaginava é que o apelido ia transcender tanto tempo”, comentou em 2017, em referência ao filho ter virado La Brujita.
Órfão de mãe aos 11 anos, vitimada por pneumonia, Verón criou-se praticamente sozinho, amparado por uma tia. Seu pai foi tentar ganhar a vida em Corrientes e a cada dois ou três meses é que voltava a La Plata. Uma grande ironia familiar é que o pai de Ramón e avô de Sebastián era torcedor exatamente do Gimnasia LP, embora não fanático e pouco entendedor de futebol propriamente; era para Ramón ter ido a Corrientes junto, mas bateu o pé para permanecer na base alvirrubra. O pai não aprovava muito a ideia. Nem tanto pelo coração gimnasista, e sim por considerar futebol como atividade de vagabundo, a ponto de só vir a saber da carreira juvenil do filho quando este precisou pedir-lhe sua autorização em uma inscrição. O velho foi convencido após emissários do clube frisarem que Verón podia também realizar outras atividades nas instalações, como nadar.
Torcedor do Boca na infância, Ramón chegara ao Estudiantes após contatar um ilustre espectador dos jogos de rua em que participava – era Juan Delgado, ex-jogador pincharrata. Embora tenha sido autorizado a prosseguir, sentiu que seu pai só foi aceitar genuinamente a carreira esportiva ao ver o sobrenome aparecer pela primeira vez no jornal, ironicamente em função de um clássico juvenil com o Gimnasia. Inicialmente um meia-armador, Verón subiu ao time adulto já como ponta-esquerda para não concorrer com Eduardo Flores. A estreia veio na rodada final do campeonato de 1962, onde o Boca precisava ganhar para garantir, justamente em concorrência com o River, seu primeiro título em oito anos. “Foi um desastre. Nos ganharam de 4-0. A cancha explodia, nós não estávamos acostumados com isso. Ficávamos olhando a plateia. Foi uma estreia apressada, daí voltamos a jogar na base”.
Desceu alguns degraus para a equipe sub-19, ou La Tercera, como se diz na Argentina. Cheio de futuros campeões da Libertadores, aquela Tercera logo foi apelidada de La Tercera que Mata. Ao fim de 1964, Verón voltou a ser aproveitado pelo time principal e conquistou a titularidade em 1965, após a chegada do mentor dos tricampeões da América: o técnico Osvaldo Zubeldía. Foi em 1965 que seus primeiros dez gols na elite saíram inclusive seu primeiro no Clásico Platense, vencido por 3-1. Na época, La Bruja ainda precisava conciliar o futebol com um trabalho em frigorífico com o pai, onde ficava das 9 da noite às 3 da manhã. Foi Zubeldía quem, vendo o talento do ponta, pediu que a diretoria desse ao jovem uma remuneração que permitisse-o deixar aquele emprego para focar-se só no futebol. O Estudiantes vinha de campanhas ruins, rondando rebaixamento (escapou em 1962 pelos promedios e, mesmo último em 1963, não caiu por terem cancelado os descensos), e nem mesmo um futuro emblema como Verón escapava de vaias e alguma resistências da torcida alvirrubra. Mas o efeito Zubeldía logo apareceu.
Após a chegada do novo técnico, o Estudiantes deixou os últimos lugares para terminar na 5ª colocação em 1965. Tudo a custo de muita aplicação tática, jogadas ensaiadas (e malícias que alguns se permitiam fazer): “nessa época, os treinadores vinham de traje e nem se trocavam, olhavam o treino de relance. Osvaldo vestiu a camisa, entrou em campo, parava e repetia as jogadas, começou com turnos duplos, que não existiam, nos explicou tudo. Terminamos quintos. Depois de brigar contra o rebaixamento, era uma campanhona. Foi tudo trabalho, trabalho e repetição. Nos fazia olhar onde ia a bola e onde tínhamos que estar”. Verón era justamente o jogador com mais liberdade naquele elenco, sem obrigações em marcar o adversário, embora não a ponto de ser individualista. Esse meio-termo está expresso em seu perfil no livro Quién es Quién en la Selección Argentina, que o descreve como “um talentoso a serviço do coletivo. Dono de uma grande habilidade em velocidade, era capaz de avançar tanto pela direita como pela esquerda e tinha um alto poder de gol (…). Ao mesmo tempo, sabia sacrificar-se para a equipe, embora no Estudiantes fosse o que menos assumia responsabilidades táticas”.
O capítulo seleção deveria ter começado ainda em 1966: o embalo daquele Estudiantes havia levado Zubeldía a assumir a seleção em dezembro. O treinador, porém, só durou um amistoso com a União Soviética, pedindo para sair no início de 1966 sob desgosto de promessas não cumpridas da AFA. O lado bom é que voltou imediatamente ao Estudiantes. O ruim é que os jogadores que levaria foram ignorados nas convocações seguintes, incluindo Verón, que só em 1969 sentiria o gosto da camisa da Albiceleste. Verón havia sido chamado após destacar-se também em excursão pela América Central – na qual chegou a jogar improvisado pelo Alianza de El Salvador contra o Santos de Pelé, onde fez o gol do empate e sofreu o pênalti do gol da virada histórica para o futebol local. Em 1967, ano em que Verón marcou quatorze gols no futebol argentino, enfim o trabalho foi coroado com um título histórico, com direito a um 3-0 sobre o Gimnasia na campanha, com gol dele.
Desde que o próprio rival Gimnasia havia sido campeão de 1929 (ainda antes do profissionalismo), só Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo vinham vencendo o campeonato argentino. O Pincha então derrotou na final por 3-0 um Racing que dali a semanas venceria a Libertadores, com Verón marcando o segundo, após um peixinho seu ter iniciado uma sensacional virada para 4-3 em derrota parcial de 3-1 nas semifinais contra o Platense treinado por Ángel Labruna. “Pela primeira vez era campeão [profissional] um time fora dos cinco grandes. E para os que vinham da base, tantos anos no clube, foi muito emocionante”, descreveu La Bruja. Curiosamente, o título daquele Metropolitano não classificava à Libertadores, cujas vagas eram dadas ao campeão e ao vice do Torneio Nacional. Os alvirrubros não conseguiram o bi, mas estiveram no páreo até a rodada final e, como vices, se credenciaram a La Copa. Verón faria nove gols, incluindo nas três partidas finais contra o Palmeiras.
Os platenses chegaram à final após terem derrubado na campanha tanto Independiente, com Verón marcando em um 4-2 em Avellaneda, como o detentor do título, o Racing – que perdeu por 3-0 com dois gols de La Bruja, que anotou outro gol no jogo-desempate. Outro gol, não: um golaço de bicicleta. Foi esse o lance que originou aquela música em que ele está de joda. O oponente empatou no fim, mas, por ter vencido a outra partida por 2-0, terminou eliminado na semifinal pelo saldo de gols. Após eliminar La Academia, era vez de outra Academia. E não foi fácil: mesmo em La Plata, os alviverdes venciam até os sete minutos finais, quando Verón iniciou uma reação fulminante a partir de um dos maiores golaços da história da Libertadores: ganhou a corrida de Rinaldo e costurou pela lateral-direita ziguezagueando por Ferrari, Ademir da Guia e Osmar até tocar na saída de Valdir antes que Baldocchi também chegasse. Como se não bastasse, no minuto seguinte os argentinos viraram, em gol de Eduardo Flores. No Brasil, porém, o Pincha não jogou bem, restando a Verón marcar o gol de honra no 3-1. Sem saldo de gols pesando de modo imediato, forçou-se o jogo-extra na neutra Montevidéu.
Com a vitória parcial de 1-0 encaminhada, a oito minutos do fim La Bruja selou o título com outro golaço de uma arrancada sua desde o meio-campo. Incrivelmente decisivo naquelas finais, tal caráter se manteve nas próximas: o ponta, que distribuiu oito gols nas competições domésticas, abriu o placar na decisão do Metropolitano, em agosto, mas o San Lorenzo impediu a tríplice coroa e ganhou de virada. Mas o Mundial não escapou, sendo de Verón o gol de cabeça (mesmo de costas para o gol) em jogada ensaiada de falta logo no início do embate em Old Trafford. O Manchester United havia caído por 1-0 na Argentina e, em sua casa, conseguiu no máximo empatar nos instantes finais. O Estudiantes tornava-se o único sul-americano campeão mundial na casa própria do adversário europeu, ainda que a hostil torcida inglesa (que não fez muita diferença segundo o próprio Verón, com os visitantes acostumados a ambientes piores na Libertadores) impedisse a volta olímpica de The Witch, como a BBC referia-se ao craque, já famoso na Europa. Enfim, não havia mais como ser ignorado pela seleção, estreando em 9 de abril de 1969, em 0-0 amistoso com o Paraguai em Assunção. Por um tempo, porém, foi seu único jogo.
Verón logo levantaria em maio de 1969 sua segunda Libertadores seguida, com assistências decisivas na semifinal e na final. Também fez nove gols pelos torneios domésticos, mas não foi utilizado nas eliminatórias – e a Argentina terminou desclassificada. No segundo semestre ele não impediu (nem contribuiu para, diga-se) o vexame do clube no Mundial contra o Milan, mas marcou dois gols sobre o Santos de Pelé pela esquecida Supercopa dos Campeões Mundiais, em triunfo de 3-1. O erro da seleção foi reforçado em 1970: Verón coroou-se tri da Libertadores, marcando um dos gols nos 3-1 sobre o River na semifinal, fazendo àquela altura do Pincha o maior campeão do torneio – tanto no geral como em títulos seguidos. Em paralelo, deixou o dele em um 4-1 no clássico contra o Gimnasia, além de outros cinco gols entre o Metropolitano e o Nacional. O ponta também fez o segundo gol de um 2-0 parcial sobre o Feyenoord pelo Mundial, admitindo La Bruja que ele e os colegas subestimaram o desconhecido futebol holandês: o oponente conseguiu empatar na Argentina e depois vencer em Roterdã.
Em 22 de novembro de 1970, La Bruja então jogou pela segunda vez contra a Argentina: novamente contra o Paraguai em Assunção, um 1-1 seguido por enfrentamentos não-oficiais contra uma dupla alemã que visitava La Bombonera. Em 30 de dezembro, Verón marcou seu único gol pela Albiceleste, vazendo Sepp Maier em um 4-3 contra o Bayern Munique. Em 4 de janeiro de 1971, esteve no 1-1 contra o Colônia de Wolfgang Overath. Ainda em janeiro, foi a vez de dois amistosos contra a França, caindo mesmo em Buenos Aires por 4-3 no dia 8 e vencendo por 2-0 em Mar del Plata no dia 13. Cansado da desorganização da AFA, Verón deu um consciente adeus à seleção em seguida. Seu Estudiantes ainda chegou a nova final seguida de Libertadores, mas não capitalizava em cima da grandiosa fase. Mal economicamente, aceitou vender seu craque, que esteve para fechar com o futebol mexicano, chegando a atuar em alguns amistosos até sobrevir o desacerto entre os clubes. Seguiu por mais alguns meses em La Plata, anotando dez gols entre Metropolitano e Nacional de 1971, incluindo em um 2-1 sobre o Gimnasia. Ainda atuou no início de 1972, anotando seis vezes.
Com os mercados da Itália e da Espanha já fechados, o Pincha então negociou-o com o Panathinaikos, o vice europeu da época e treinado pela lenda Ferenc Puskás. Ganhou o campeonato de 1971-72, mas o distante futebol grego privou-o de vez de novas oportunidades na seleção. Juan Sebastián Verón já estava na barriga da esposa de Ramón e por pouco não nasceu em Atenas. O casal decidiu voltar a La Plata, onde La Bruja havia sido convidado pelo ex-colega Carlos Bilardo para reforçar o elenco, agora treinado por El Narigón – que por sua vez fez aniversário ontem. Verón pai tinha a intenção de ficar por seis meses, que viraram um ano. Verón filho, por sua vez, nasceu em março. O pai conheceu-o na manhã do dia 8 para à tarde marcar o segundo gol alvirrubro em 3-3 com o Gimnasia. Sim: La Brujita veio ao mundo em dia de Clásico Platense… La Bruja, por sua vez, esteve perto de aumentar a lenda. Sem ser campeão desde a Libertadores de 1970, o Estudiantes vinha novamente rondando o rebaixamento, mas em 1975 saltou para vice-campeão do Torneio Nacional.
A taça terminou com o River, sendo ainda recordada uma defesa milagrosa de Ubaldo Fillol em cabeceio à queima-roupa de Verón (autor de onze gols no ano, incluindo dois em um 3-1 sobre o Independiente tetra da América) em duelo direto na penúltima rodada. O oponente ganhou de 1-0, isolou-se na liderança e manteve-a no jogo seguinte. O ponta não ficou para a Libertadores de 1976, passando a vestir e ser adorado por outra torcida alvirrubra: a do Junior de Barranquilla. Nem tendo Heleno de Freitas o clube caribenho conseguira ser campeão colombiano. A primeira vez veio com Verón e uma colônia argentina que incluía o goleiro Juan Carlos Delménico (último vira-casaca de Newell’s e Rosario Central) e o volante Eduardo Solari, pai do ex-técnico do Real Madrid. Incluía também o treinador José Varacka. O caráter especial da conquista também se deveu a uma curiosa circunstância: Varacka não ficou até o fim. Coube a Verón exercer a função de jogador-treinador, convencido por Carlos Bilardo e por Osvaldo Zubeldía, que na época também trabalhavam na Colômbia, respectivamente no Deportivo Cali e no Atlético Nacional.
Após uma breve passagem pelo Cúcuta em 1979, Verón exerceu em 1980 uma terceira passagem pelo Estudiantes, com cinco gols sem o mesmo sucesso coletivo das outras estadias. Em 1981, já aparecia na segunda divisão, no time treinado por Oscar Malbernat, o capitão daquele Estudiantes tri da América – era o Argentino de Quilmes, o mais antigo clube latino do país (daí o nome). Autor de três gols pelo Mate, Verón inclusive figurou no último clássico com o Quilmes realizado em algum campeonato argentino, naquele ano, o penúltimo a contar com o Argentino na segundona. Depois, restou ao veterano defender por quatro anos a Juventud Unida Madariaga, na liga municipal de La Plata. Só capitulou, porém, após sofrer uma fratura na tíbia em uma partida. La Bruja então dedicou-se inicialmente ao cargo de técnico juvenil, trabalhando inclusive com Juan Sebastián e Martín Palermo, mas não sentiu-se à vontade para embalar uma carreira séria de técnico para além de um trabalho na Guatemala, já no fim dos anos 90 – época em que Sebastián já fazia os Verón serem só o segundo caso de pai & filho pela seleção.
Desde 2000, Verón é remunerado pelo Estudiantes para emprestar sua imagem para publicidades país adentro, bem antes de sua família se tornar só a terceira e última a ter duas gerações campeãs da Libertadores (após Roberto e Gustavo Matosas e Néstor e Jorge Gonçalves, todos pelo Peñarol). La Bruja, afinal, é muito mais que apenas o pai de La Brujita, inclusive literalmente. Além de outros filhos, inclusive uma, Alejandra, que torce pelo Gimnasia por influência materna (“e um de seus filhos é doente pelo Gimnasia, mas o mais jovem é Estudiantes. Vem e me diz: ‘vovô, eu sou do Pincha‘ e o outro avô quer morrer, hahaha”), Ramón tem nada menos que dezoito netos. “Tenho a equipe titular e também o banco completo”, gargalhou na entrevista fornecida em 2017 à El Gráfico da qual tiramos as suas aspas nessa nota.
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