EspeciaisExterior

Em dez dias, o River já bateu o Real em Madrid e a Juventus em Turim. Com gols brasileiros!

Ontem, Real Madrid e Juventus protagonizaram uma final europeia de alto nível no País de Gales. Partida que remete a tempos em que a disparidade econômica em relação às potências sul-americanas não existia como hoje e a força das leis do passe imperava. Nesse passado, o River era capaz de contratar jogadores da seleção brasileira, incluindo quem havia vencido a Copa do Mundo. E era capaz de bater na casa adversária tanto os merengues como os bianconeri – cujos respectivos astros principais, Alfredo Di Stéfano e Omar Sívori, haviam sido revelados pelos millonarios. Voltemos a 1961.

A brasilidade foi uma exceção ao River, que nunca foi de ter muitos tupiniquins. Chegou a negociar com Toninho Cerezo no início dos anos 80 e com outro Toninho, El Bíblico, no início dos 90. O mais famoso foi o técnico Didi, no início dos anos 70. Nos anos 30, foi ídolo Aarón Wergifker, filho de imigrantes russos que por acaso nasceu em São Paulo e cresceu em Buenos Aires. Mas só nos anos 60, foram sete brasucas em Núñez. Dois deles, em 14 de junho, anotaram os três gols em um 3-2 sobre o Real Madrid – que, para completar, não perdia em casa para estrangeiros havia oito anos. E um outro brasileiro fez dois em um 5-2 na Juventus, em 24 de junho.

A última equipe não-espanhola a bater o Real em Madrid também era argentina: o Independiente, que em 1953 aplicou um inapelável 6-0 sobre os blancos, que haviam acabado de contratar Di Stéfano. Naquele mesmo ano, o Rojo havia fornecido todo o seu quinteto ofensivo à seleção, algo inédito. E a partida acabou sendo histórica por outros motivos, por render a primeira vitória sul-americana sobre a Inglaterra: falamos aqui. Daquele ataque, Osvaldo Cruz seria campeão brasileiro pelo Palmeiras em 1960 (com dois gols na final). E Ernesto Grillo seria vice da Liga dos Campeões para o próprio Real Madrid, pelo Milan, marcando gol na final de 1958.

Outro nome daquele Independiente foi o do volante José Varacka, único remanescente a se fazer presente na derrota seguinte madrilenha a forasteiros, já convertido em zagueiro do River em 1961 – falamos dele há uma semana, quando fez 85 anos. Entre um jogo e outro, o Real, que em 1953 ainda tinha menos títulos espanhóis que o vizinho Atlético de Madrid, embalou como a grande força continental. Já na Argentina, o River tanto emendava seu primeiro tricampeonato nacional (1955-56-57) como iniciava sua mais longa seca, os dezoito anos sem troféus entre 1957 e 1975. Já o país vizinho, outrora a terceira força no continente, se catapultava a campeão mundial na Suécia.

Benítez, Joya (peruanos), Davoine (uruguaio) e Gómez Sánchez (peruano); Edson, Paulinho (brasileiros) e Sasía (uruguaio): Superclásico estrangeiro. À direita, Delém com Almeyda e Ortega

A seleção brasileira, que tanto era goleada pelos hermanos nos anos 40, era quem agora dava as cartas no clássico. Em 1959, os canarinhos por bem pouco não venceram em plena Buenos Aires a Copa América, até hoje havendo reclamação de que um gol que daria a vitória sobre a campeã Argentina (e o título aos brasileiros) foi injustamente anulado – o árbitro interpretou que a bola não passara da linha. Em 1960, o Brasil atropelou os rivais na Copa Roca, com um 4-1 em pleno Monumental de Núñez. Esse boom chamou a atenção dos cartolas argentinos. Vários clubes de lá trataram de importar tupiniquins, com a dupla principal Boca e River encabeçando o movimento pelo fútbol espetáculo.

Em 1960, o Millo levou Paulinho de Almeida, ponta-direita goleador do Flamengo tri estadual seguido entre 1953-55, e que havia marcado gol pelo Brasil sobre a Inglaterra em Wembley em 1956. O clube, que naquele ano quebrara um recorde nacional para contratar Varacka do Independiente, foi vice-campeão a dois pontos do próprio Rojo, mas a pontuação foi enganosa: o concorrente sério ao título foi o Argentinos Jrs, com o River tendo um início péssimo mas saltando posições ao embalar na reta final. Paulinho foi dispensado ao Estudiantes, mas aquele embalo fez o clube insistir.

Em 1961, brasileiros vieram no atacado a Núñez. O River importou do Brasil os flamenguistas Décio Crespo (mais conhecido como Décio de Castro na Argentina) e Moacyr, o são-paulino Roberto e o vascaíno Delém. Estes dois últimos haviam atuado pelo Brasil naquele 4-1 pela Copa Roca, com dois gols de Delém. Já Moacyr era da Copa do Mundo de 1958. Outro brasuca veio do Peñarol campeão da Libertadores no ano anterior: Salvador, ex-Internacional e trocado com os aurinegros pelo peruano Juan Joya, que faria história em Montevidéu.

A importação não se restringiu a brasileiros e o River chegou a ter um quinteto ofensivo totalmente estrangeiro, algo sem precedentes desde que o futebol argentino se abriu da comunidade britânica: o espanhol José García Castro (o Pepillo, ex-Real Madrid) na ponta-direita, o uruguaio Domingo Pérez na meia-direita, Moacyr de centroavante, Delém de meia-esquerda e, na outra ponta, Roberto – que na Argentina ficou conhecido por nome e sobrenome, Roberto Frojuello.

O gol de Delém, empatando em 2-2 com o Real Madrid

Aquele River começou com tudo o campeonato argentino: 5-2 no Lanús (com gol de Roberto), 3-0 fora de casa no Chacarita (dois de Moacyr e um de Roberto), 2-0 no Estudiantes (mais um de Roberto), 1-1 fora de casa com o Independiente (campeão do ano anterior) e Atlanta (que tinha time fortíssimo na época), 1-0 no Vélez e 3-1 fora de casa no San Lorenzo foram, na sequência, os jogos anteriores à pausa do assassino frio portenho de junho. O River então foi manter a forma no verão europeu. Faria dois amistosos na Espanha, intercalados com um torneio de alto nível na Itália, a incluir o Santos de Pelé, Napoli, Internazionale e Roma. O primeiro adversário na excursão foi logo o Real Madrid.

Eram 46 jogos sem perder em casa para estrangeiros, incluindo amistosos – o clube só não foi à final da Liga dos Campeões de 1960-61 pois caíra em confronto caseiro com o Barcelona. Até enfrentar o River em 1961, o Real jogou também contra outra equipe argentina, o nanico Deportivo Español, além de brasileiras que variavam do Cruzeiro gaúcho (que se orgulha de ter segurado o 0-0 em Chamartín) e Bela Vista de Sete Lagoas, passando pelo Sport Recife, Botafogo, duas vezes Vasco e o Santos de Pelé, derrotado por 5-3 no único confronto entre o Rei e Di Stéfano (em 1959). De outros jogos, destaque para dois de 1956: o 13-1 sobre o Sochaux na tarde em que o Real apresentou Raymond Kopa e o incrível 5-5 contra o Honvéd, cujos astros (incluindo Ferenc Puskás) fugiam da intervenção do Pacto de Varsóvia na Revolução Húngara, naquele ano.

Real x River começou com tudo, com quatro gols em 26 minutos. Aos 5, um cabeceio de Roberto abriu o marcador para os visitantes. Di Stéfano virou com gols aos 8 e aos 19 minutos diante do ex-clube. Delém, de pênalti, empatou aos 26. Aos 3 do segundo tempo, Roberto fez seu segundo gol. A partida, agendada como homenagem ao goleiro Juan Alonso (que defendera o Real por onze anos, entre 1949 e 1960), ficou no 3-2. Ele iniciara no gol e no intervalo foi substituído pelo argentino Rogelio Domínguez. E outro goleiro argentino foi sondado: Amadeo Carrizo, que fizera 35 anos na antevéspera e mesmo assim foi pedido diretamente pelo presidente madridista Santiago Bernabéu à sua contraparte riverplatense Antonio Vespucio Liberti, no jantar pós-jogo.

Eram outros tempos: o River é quem contrataria para 1962 o goleiro oponente Rogelio Domínguez. Delém, com oferta do Atlético de Madrid, também foi retido em Núñez. Adiante, os millonarios e seus brasileiros participaram do torneio italiano e continuaram muito bem, invictos embora não tenham chegado na final. Na fase de grupos, ganharam de 3-1 do Napoli no San Paolo, com gol de Delém. Depois, Moacyr fez o gol do empate com a Internazionale no San Siro. Com melhor saldo no grupo, a Inter avançou à final, quando foi derrotada por 4-1 pelo Santos. 

Roberto dá a vitória ao River no Bernabéu. O goleiro do Real é argentino: Rogelio Domínguez. E seria comprado pelo River meses depois. Outros tempos…

A partida contra a Juventus foi valendo o bronze. Em um raro gol, Varacka abriu o marcador já com dois minutos. Aos seis, o jogo parecia definido, com Moacyr assinalando o 2-0. O brasileiro ampliaria a surra para 3-0 já aos cinco minutos do segundo tempo. Mas a Vecchia Signora, que no ano anterior tornara-se o primeiro clube a faturar a dobradinha italiana (títulos no campeonato e na copa na mesma temporada), reagiu com gols-relâmpago. O argentino Sívori e Nicolè descontaram para 3-2, com gols aos 18 e aos 21 minutos. A resposta também viria a galope, com Juan Carlos Sarnari e Domingo Pérez anotando o 5-2 ao marcarem aos 40 e aos 41 minutos.

Carrizo; Rodríguez, Ramos Delgado, Echegaray; Varacka, Schneider; Pérez (Villagarcía 45´), Moacyr, Pepillo, Delém (Sarnari 45´) e Roberto (Rojas) foi a escalação vitoriosa no Santiago Bernabéu. Para a partida no então Comunale de Turim (atual Stadio Olimpico Grande Torino), ligeiras mudanças, incluindo mais dois brasileiros: Décio Crespo jogou no lugar do futuro ídolo santista Ramos Delgado e Salvador, no de Schneider. No ataque titular, Pepillo deu lugar a Sarnari. E se o River tivesse ido à final contra o Santos? Um jogo de meses depois, em 6 de janeiro de 1962, dá pistas: River 2-1.

Outros meses depois, Juventus e Real Madrid se enfrentariam pela primeira vez na Liga dos Campeões. E foi de um argentino, o astro Sívori, o gol da primeira derrota madridista em casa na competição. Os italianos devolveram no Bernabéu a derrota sofrida em Turim, forçando uma terceira partida, na qual os espanhóis prevaleceram – para adiante perderem novamente para lusófonos, os do Benfica de Eusébio. A ironia é que o River não manteria o embalo europeu. Simbolicamente, no retorno ao campeonato argentino, perdeu de 1-0 em pleno Monumental para o Gimnasia LP.

O Millo ficaria só em terceiro em 1961, a nove pontos do campeão Racing, em tempos nos quais a vitória só valia dois pontos. Apesar dos gols de Roberto e Moacyr naquela bela turnê, só Delém vingaria como ídolo a ponto de radicar-se até o fim da vida em Buenos Aires – e coordenar com mão e olhos de ouro a fortíssima categoria de base riverplatense nos anos 90, polindo desde Ariel Ortega a Andrés D’Alessandro, até ser demitido pelo desastroso presidente José María Aguilar. Falamos aqui.

Versão atualizada deste outro Especial, que possui a listagem completa dos 46 jogos de invencibilidade do Real contra estrangeiros em Madrid.

River no Bernabéu: Ramos Delgado, Carrizo, Schneider, Varacka, Rodríguez, Ovejero (goleiro reserva) e Etchegaray; Pérez, Pepillo, Moacyr, Delém e Roberto. À direita, lance contra Sívori

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

doze − dois =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.