Elementos em comum entre Vasco e Racing

A princípio, o time carioca mais semelhante à trajetória do Racing seria o Botafogo e não o Vasco. Já entre os outros alvinegros do Rio de Janeiro e os alvicelestes de Avellaneda não há tantos pontos em comum, mas eles existem entre o primeiro time argentino campeão mundial e o primeiro clube brasileiro campeão sul-americano – fatos que ensejaram elogios mútuos nas redes sociais dos oponentes dessa quinta-feira pela Libertadores.

Para começar, embora não sejam rigorosamente os pioneiros, se gabam de ser os primeiros times a colher êxito mediante jogadores além do círculo fechado que marcava o aristocrático football dos primórdios do século passado. O Racing foi o primeiro clube argentino fundado fora da comunidade britânica a ser campeão nacional, em 1913, encerrando mais de vinte anos de domínio dela. O E o Vasco se orgulha dos títulos estaduais nos anos 20 com jogadores negros.

Rechaçando certos clubes de camisa vermelha, La Academia e o Expresso da Vitória foram campeões em torneios alusivos aos anos de 1949 e 1950 (argentino e estadual). Os clubes repetiram a dobradinha em 1958 (idem, com os cruzmaltinos levantando também o Rio-São Paulo), 1966 (argentino e Rio-São Paulo) e 1988 (Supercopa Libertadores e estadual).

Há ainda o caso do ano de 2001, em que Romário e colegas faturaram em janeiro o Brasileirão válido pelo ano anterior e postergado após uma tragédia (felizmente, sem fatalidades) em São Januário. Ao fim do ano, Diego Milito festejou um título redentor, que encerrava jejum racinguista de 35 anos na elite argentina.

Scarone como técnico vascaíno: foi dele o primeiro gol do Racing na elite argentina

Curiosamente, a comemoração por aquele Apertura 2001 também quase ficou também para o ano seguinte, e por fatores ainda mais dramáticos: por conta dos protestos populares contra a crise argentina e repressão policial a causar algumas mortes, a rodada final foi transferida a março de 2002, com exceção aos postulantes ao título, que jogaram ainda em 27 de dezembro. Contamos aqui.

Ao menos três pessoas defenderam as duas equipes – curiosamente, nenhuma delas argentina. Carlos Scarone foi um dos maiores jogadores do futebol uruguaio. O apelido de manya (a leitura é “mândja”, não “mânia”) para o Peñarol teve origem em Scarone, descontente como jogador do time aurinegro, adorado por seu pai. O meia-atacante, misturando espanhol e o italiano patriarcal, se levantou contra seu velho sob o argumentação de que não continuaria a “mangiare mierda“. E seguiu carreira de sucesso pelo rival Nacional e na seleção celeste, ainda que sua figura depois tenha sido ofuscada pelo irmão caçula Héctor Scarone, ainda melhor na técnica e no currículo, estando em todo o “tricampeonato mundial” das Olimpíadas de 1924 e 1928 com a Copa de 1930.

Entre a saída do Peñarol e a ida ao Nacional, Scarone esteve brevemente no Racing, em 1911, precisamente o ano de estreia do clube na elite argentina. O uruguaio foi fugaz, logo voltando a seu país, mas foi histórico: foi dele o primeiro gol do time na primeira divisão, em empate em 1-1 com o San Isidro. Scarone ainda teria uma outra breve passagem pelo futebol argentino, pelo Boca, em 1916.

Ele chegou ao Vasco em 1938, como treinador. A mídia chegou inclusive a confundi-lo com Héctor, seja usando expressamente o nome do irmão ou por saudar ocasionalmente a chegada do “tricampeão” (Carlos deixara a seleção ainda antes daquele ciclo, em 1922) à Colina. Estreou com tudo, em um 6-1 no America, quando esse duelo tinha aura de clássico – afinal, os rubros tinham na época o dobro de títulos dos alvinegros. Mas não pôde ir além de um quarto lugar no estadual daquele ano, trabalhando até a quinta rodada do campeonato de 1939, após empate em 1-1 com o Madureira.

Os grandes momentos de Silva no Vasco e de Villanueva no Racing

Além da falta de resultados (sempre atribuído por ele ao azar, rendendo-lhe o apelido de “técnico mala suerte“), contribuiu para o desgaste de Scarone as reiteradas crises entre federações nacionais decorrentes do constante aliciamento que o treinador fazia em visitas à terra natal, de onde tirou Segundo Villadóniga do Peñarol; e à própria Argentina, de onde limpou o Ferro Carril Oeste, que perdeu Bernardo Gandulla, Raúl Emeal, José Agnelli e José Dacunto – sempre em transferências atacadas como irregulares pelos clubes de origem, a ponto do famoso Gandulla e colegas só puderem estrear mediante interdito proibitório, sendo poupados por cautela para prevenir perda de pontos nos tribunais. Falamos aqui.

Walter Machado da Silva, o “Silva Batuta”, ainda é o único brasileiro artilheiro do campeonato argentino. Participante da Copa de 1966, Silva (referido na Argentina como Machado da Silva) chegou a Avellaneda já rodado em times grandes – era ex-Corinthians, Flamengo, Santos e até Barcelona. Chegou no início de 1969, com o Racing ainda lembrando de modo fresco o título mundial erguido em fins de 1967, sem ter imagem atrelada a vexames e jejuns como se impregnaria com o passar dos anos. O time havia mantido o embalo, terminando o Nacional de 1968 na liderança, perdendo-o somente após um triangular final com os outros co-líderes. Não se desconfiava que, após aquele mundial, uma nova taça só viria em 1988, com rebaixamento incluso no período.

Silva veio para o torneio seguinte àquele Nacional: o Metropolitano de 1969. Curiosamente, já conhecida Avellaneda, cidade em que, ainda pelo Flamengo, jogara um amistoso contra a própria seleção argentina em 1966 – marcando o gol rubro-negro em honroso empate em 1-1 no estádio do Independiente. Chegou a ser expulso em plena estreia, contra o Los Andes, mas a impressão que ficou foi outra, a de um atacante refinado capaz de marcar cerca de vinte gols em trinta partidas. Chegou a marcar oito vezes em espaço de seis jogos, incluindo um no Clásico de Avellaneda, em empate em 2-2.

Naquele Metropolitano, as equipes foram divididas em dois grupos, com os dois melhores de cada avançando às semifinais. O Racing liderou o seu com sobras no embalo da artilharia do brasileiro: foram 35 pontos de 44 possíveis, enquanto os líderes do outro grupo ficaram nos 30 (a vitória valia 2 pontos na época, vale frisar). Assim, a Academia teve vantagem do empate na semifinal em jogo único. Preferiu retrancar-se e foi punida, sofrendo a três minutos do fim o único gol da ocasião, marcado pelo ascendente Chacarita, que adiante seria campeão pela primeira e única vez ao golear por 4-1 o River.

Villanueva com Simeone no Racing e quando mais tempo usou a camisa do Vasco: na apresentação

Falamos aqui da carreira argentina do Batuta, que ainda seguiu pelo início do Torneio Nacional de 1969 – seu sucesso chegou a render uma consulta de Narciso Doval, na dúvida se aceitava a proposta do Flamengo. Fato é que Doval aceitou, e fato é que Silva logo embarcou também ao Rio de Janeiro, com a saudade falando mais alto, ainda que para jogar no Vasco embora fosse assumido torcedor flamenguista – curiosamente, o treinador que o importou para a Colina fora Tim, o mesmo que levara Doval à Gávea. Se Silva chegara a um Racing de prestígio, na época era a Cruz de Malta quem estava atrelada a seca, pendente desde 1958.

Com grande profissionalismo, o reforço liderou o desjejum, sendo o protagonista de um título redentor já em 1970 por uma equipe que não era favorita: o Botafogo tinha jogadores recém-campeões da Copa do Mundo e o Flamengo vencera a Taça Guanabara. Silva marcou nove vezes, sendo o artilheiro vascaíno e terceiro no geral. A imagem que ficou foi ele terminando carregado pela torcida, e não pelo declínio repentino em um time que em seguida terminaria na lanterna do Brasileiro. O atacante chegou inclusive a ser emprestado ao Botafogo em 1971. Ficou na Colina até 1972, em declínio por um time que até foi campeão do terceiro turno do estadual (e terceiro colocado no geral), mas mais no embalo do reforço Tostão.

O outro a passar pelos dois foi o chileno José Luis Villanueva. Com meio gol por jogo pela Universidad Católica, foi importado pelo Racing em meados de 2005 e inicialmente manteve a imagem de goleador: marcou seis vezes nas sete rodadas finais do Apertura. Na pausa de verão, marcou inclusive em amistoso contra o Independiente para dar a vitória de virada no último minuto em Mar del Plata. Mas logo revelou-se um bonde, com mais um único gol pelo time. No Vasco, em 2008, foi ainda pior: recomendado por Darío Conca, ex-colega na Católica, fez só cinco jogos de janeiro a maio e uma só vez foi titular (em amistoso contra a seleção dos Emirados Árabes…), sem marcar gols.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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