Publicado originalmente em 21 de novembro de 2019, no embalo da final entre o River e o arquirrival tricolor
River e Fluminense jamais se enfrentaram em competições da Conmebol até hoje, apesar de diversos pontos de proximidade entre ambos: são dois clubes mais estereotipados como grã-finos no Rio e em Buenos Aires, a ponto de uma simbiose intensa se observar em dado momento na virada dos anos 30 para os 40.
O ano de 1908 foi o primeiro em especial a ambos, com o título estadual do Fluminense ao passo que o River, ainda longe de ser o Millonario (e sim uma equipe ainda do humilde bairro de La Boca) conquistou a segunda divisão, tornando-se o primeiro dos futuros “cinco grandes” (grupelho que viria a formar com o rival Boca, o San Lorenzo e a dupla Racing e Independiente) a adentrar na elite argentina. A segundona, afinal, havia sido criada ainda no século XIX, antes da fundação de todos os grandes. O clube foi campeão ostentando a Banda Roja, sua icônica listra diagonal vermelha, mas só viria a readota-la em 1932; em suas primeiras temporadas na elite, a camisa principal foi uma tricolor em desenho similar à do Fluminense, mas em vermelho, branca e preto – a cor das listras finas a separar as grossas.
Flu e River voltaram a ser campeões no mesmo ano em torneios alusivos a 1936, 1937, 1941 (no Estadual e no Argentino), com muitos dos personagens em comum na dupla. Depois, seria preciso aguardar até 1975. Após conquistas contínuas com La Máquina nos anos 40 e a sucessora La Maquinita nos 50, o Millo amargou um jejum de dezoito anos, finalizado no mesmo ano em que os cariocas inauguravam a sua própria Máquina. O desjejum em Núñez foi em alto estilo, faturando-se tanto o Torneio Metropolitano como o Torneio Nacional. O mesmo ocorreria em 1980: Tricolor campeão estadual, River campeão de Metro e Nacional.
Em contraste, o ano seguinte de títulos em comum foi o de 1999, ano de conquista millonaria no Apertura… enquanto os cariocas sorriam amarelo com a terceira divisão brasileira. Algo próximo do inverso de 2012, com os argentinos levantando a segunda divisão ao passo que as Laranjeiras festejavam não só um Estadual mas também seu quarto e último Brasileirão. O outro ano digno de nota é o de 2002, com os troféus no Estadual e no Clausura.
Vale desde já destacar que o técnico uruguaio Ondino Viera, comandante das conquistas estaduais de 1936, 1937, 1941 (e de 1940), não chegou a treinar o River no período de 1935-37, informação muito difundida. O treinador millonario era o húngaro Emerich Hirschl. Eis, por fim, quem defendeu a dupla:
Jenő Medgyessy: no Brasil, ficou mais conhecido como Eugênio Marinetti, imigrando da sua Hungria ao Brasil ainda nos anos 20. Veio do Botafogo para comandar o Fluminense no biênio 1927-28, só logrando um Torneio Início. Após passar também por clubes mineiros e paulistas, foi trabalhar em 1933 na Argentina – ano em que comandou parte da campanha campeã do San Lorenzo antes de, em atrito com os comandados, assumir o Racing. Ele em seguida assumiu o River em 1934, sem tirar o endinheirado elenco da irregularidade de um quarto lugar, não permanecendo para a temporada seguinte.
Juan Arrillaga: figura no Quilmes (defendeu como cervecero a seleção e o escalamos para o time dos sonhos desse clube), o meia-direita foi um dos reforços pontuais que o Gimnasia LP teve na celebrada excursão que fez da equipe de La Plata a primeira não-europeia a bater tanto Real Madrid como Barcelona na casa da dupla (sim!), em 1931. Terminou reforçando em seguida o River, sendo opção em vinte partidas na conquista argentina de 1932, a primeira dos millonarios no profissionalismo. Já estava de volta ao Quilmes quando foi requisitado pelo Fluminense, onde permaneceu no biênio de 1934-35, antes de voltar ao ex-clube. Fora de forma, nunca se aclimatou e despediu-se sem títulos.
Carlos Santamaría: lateral-direito polifuncional (também sabia jogar na outra lateral e como volante central e seu senso de posicionamento o fez ser improvisado até de centroavante certas vezes) revelado no Platense, foi colega de Arrillaga na conquista de 1932, estando em todas as partidas da campanha. Participou ainda de treze jogos da temporada vitoriosa de 1936 antes de ser aliciado pelo Fluminense – rendendo protestos enérgicos do Millo na época. Pôde integrar ainda em 1936 o título estadual como tricolor, bem como o bi de 1937. Em 1939, voltou ao River, que por sua vez cedeu o nome seguinte.
Esteban Malazzo: colega dos dois homens acima no River de 1932, esse zagueiro/volante permaneceu no River por quase toda a década de 30 (com 19 jogos na campanha de 1932, 17 na de 1936 e todos da de 1937), embora sua participação em campo fosse mais valorizada por colegas e adversários do que efetivamente notada pela plateia – era daqueles jogadores solidários, ocupando a lateral-esquerda. Diferentemente de Santamaría, chegou em 1939 às Laranjeiras sob aval de Núñez após negociação formal encerrar doze anos de serviços prestados. O Sport Illustrado inclusive enalteceu que “por sua eficácia, por sua correção e, sobretudo, por sua lealdade, Esteban Malazzo mereceu do grêmio alvirrubro da capital argentina uma moção de apreço. Não partiu como qualquer um. Antes, ao contrário, foi distinguido até o último momento”, despedindo-se com um banquete do Millo.
Malazzo pôde no Rio participar do bi estadual de 1940-41, em um elenco que tinha cinco argentinos (incluindo o próximo da lista, além de Armando Renganeschi, Américo Spinelli, Vicente Capuano e Ángel Cusatti), mas também foi afetado por uma séria lesão. Em 1942, a federação instituiu apenas dois estrangeiros por equipe e o Tricolor o liberou em prol de Renganeschi e Spinelli. Com mais de 30 anos, encerrou a carreira competitiva.
Luis María Rongo: no River só há dois jogadores com média de gols superior à da lenda Alfredo Di Stéfano. Um é Bernabé Ferreyra, o artilheiro que ajudou a popularizar nacionalmente o clube nos anos 30. Fez oficialmente 187 em 185 jogos e sua contratação foi um recorde mundial por décadas – e só a de Neymar ao PSG voltou a representar um recorde superior ao dobro do recorde anterior. Profissionalizado em 1935, o prata-da-casa Rongo é o outro homem, e calhou de ser contemporâneo de Bernabé. Ainda assim, esse veloz atacante deu sua contribuição no primeiro bicampeonato do clube (onze jogos em 1936, três em 1937), ainda que nesse período também tenha sido emprestado ao Argentinos Jrs.
Seu melhor ano foi de 1938, com o concorrente já em declínio físico; anotou 33 em vinte partidas. Em 1939, veio um recorde ainda não superado de um millonario em um só jogo, ao marcar cinco em 8-0 no Ferro Carril Oeste. Rongo já estava no Peñarol quando o Fluminense requisitou-o com o torneio de 1940 já em andamento. Rongo manteria a média superior a um gol por jogo que já tinha em Núñez (superior à do próprio Bernabé, até), onde deixara 58 gols em 48 jogos: no Brasil, foram 36 em 25, incluindo, tal como no River, o recorde ainda não superado de um tricolor em uma só partida – os seis no 9-0 sobre o São Cristóvão no bicampeonato em 1941. Em 1942, voltou a seu país para defender o Plantese. Já dedicamos este Especial a Rongo.
Didi: em sete anos de Fluminense, entre 1949 e 1956, o pai da folha-seca ganhou somente um título estadual (em 1951), mas também a celebrada Copa Rio de 1952, ano em que começou a construir sua ilibada história na seleção brasileira – que dispensa maiores comentários. Na Argentina, ficou especialmente em alta após desclassificar os hermanos dentro da Bombonera nas eliminatórias à Copa de 1970, com a manutenção de seu bom trabalho à frente da seleção peruana credenciando o desembarque do ex-craque em Núñez ainda em 1970. Didi não solucionaria o jejum de títulos, mas, dos técnicos sem taças no Millo, é provavelmente o mais querido e importante – sendo reconhecido como quem poliu diversos juvenis que em médio prazo liderariam o fim da seca em 1975, ano em que pôde treinar o primeiro título estadual da Máquina Tricolor.
Luis Artime: como Rongo, foi outro artilheiro dos mais implacáveis do futebol argentino, e em tempos de maior preocupação retranqueira no esporte. Sem técnica tão apurada, tinha um oportunismo e faro sobrenaturais: um Gerd Müller argentino. Revelado no forte Atlanta da virada dos anos 40 para os 50, deixara nesse clube 50 gols em 67 jogos. Com a artilharia do campeonato de 1961, reforçou o River no ano seguinte. Manteve a rotina goleadora, com 70 gols em 80 jogos em três anos de Millo, calhando de defendê-lo em meio aos dezoito anos de jejum em Núñez. Em paralelo, deixava 24 gols em 25 jogos pela seleção, sendo por décadas o maior artilheiro da Albiceleste. Ainda se consagraria no Palmeiras, Independiente e Nacional, liderando em 1971 os primeiros títulos do Tricolor na Libertadores e no Mundial. Um ano depois, passou a vestir outra camisa tricolor. Mas o Flu foi o único clube onde não se deu bem, já veterano e com uma introversão incompreendida pelos cariocas. Já dedicamos este Especial a Artime.
Hugo de León: após erguer Libertadores e Mundial por Grêmio e Nacional nos anos 80, defendeu sem o mesmo êxito cariocas e argentinos. Chegou com cartaz ao River para ser um ilustre reserva do time campeão da temporada 1989-90. Já era um treinador iniciante quando apareceu no Fluminense, em uma rápida estadia como técnico em 1997, pouco após o clube ser confirmado na primeira divisão apesar do primeiro rebaixamento em campo. O fim da história é conhecido…
Darío Conca: o personagem da imagem que abre a matéria torcia pelo Boca, mas não recusou um chamado do River ainda como juvenil. Profissionalizado em 2002, nunca teve maiores chances no time adulto, sendo sucessivamente emprestado. Assim parou no Brasil, inicialmente no Vasco antes de ser repassado no início de 2008 ao Fluminense. O resto é a história conhecida que dispensa maiores apresentações: vice de Libertadores, fuga espetacular de rebaixamento, reconquista do Brasileirão como melhor jogador do torneio, críticas por sua ausência na seleção argentina e venda estratosférica ao emergente mercado chinês – ainda que não brilhasse tanto em uma segunda passagem, entre 2014-15.
Manuel Lanzini: promessa do River profissionalizada em 2010, foi emprestado ao Fluminense após o rebaixamento millonario em 2011. O meia chegou a despertar algum xodó, mas não ficou até o fim do título brasileiro de 2012, voltando a Núñez após um ano. Participou do primeiro título do River após o retorno à elite, o do Torneio Final de 2014, embora terminasse vendido aos Emirados. Desde 2015 no West Ham United, virou jogador da seleção principal enfim em 2017 e teria ido à Copa de 2018 não fosse uma lesão em plena concentração na Rússia.
Juan Cazares: o equatoriano reforçou o River ainda como juvenil em 2010, sem tomar parte da temporada do rebaixamento – só estreou no time adulto em dezembro de 2011, um semestre após a queda. Mas ficou mais relegado ao sub-20, onde foi campeão e destaque da Libertadores da categoria em 2012. Não bastou para ganhar lugar na equipe principal: em março de 2013, acertou um retorno ao Barcelona de Guayaquil, onde se formara. Foi o primeiro de sucessivos empréstimos negociados pelo River, que enfim o vendeu em 2016 ao Atlético Mineiro sem nunca realmente aproveitar o meia-atacante. Cazares rodou o sudeste brasileiro, chegando ao Fluminense exatamente nesse abril de 2021 após ter trocado o Atlético pelo Corinthians no ano passado.
Faixa-bônus: um dos comandados por Hugo de León no malfadado Brasileirão de 1997 foi o atacante Toninho dos Santos, já eleito para o pior time tricolor possível em eleição de torcedores. Ele havia construído uma carreira artilheira na Concacaf, recebendo o apelido de El Bíblico. O prestígio por lá rendera-lhe testes no River em 1993, mas Toninho só vestiu a camisa oficial para fotos, terminando desaprovado pelo técnico Daniel Passarella e rumando ao Colo-Colo.
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