Poucos duelos entre Brasil e Argentina têm tanto histórico nas competições sul-americanas como Cruzeiro e Racing. Curiosamente, porém, será apenas a primeira vez que esse encontro azul se dará na Libertadores, resolvendo um pouco uma pendência antiga: eles estiveram perto de realizar a final do torneio em 1967, ano de título racinguista, e trinta anos depois, em 1997, quando a América foi cruzeirense. Em ambas, quem não chegou lá caiu por detalhes na semifinal. Vamos lembrar outras similaridades da dupla que não deixou de decidiu por duas vezes o continente, exatamente pelo torneio que reunia os campeões de La Copa: a extinta Supercopa Libertadores, em 1988 e 1992.
De cara, salta a nostalgia conjunta pelos anos 60. Além de obter seus dois últimos títulos argentinos no século XX, que na época lhe deixavam como segundo maior vencedor da competição (e apenas uma conquista abaixo do então líder, o Boca), o Racing levantou sua única Libertadores e o primeiro Mundial do futebol argentino. O Cruzeiro, por sua vez, obteve um pentacampeonato estadual e o primeiro título do futebol mineiro no Brasileiro (segundo a CBF; atleticanos certamente se dividirão entre referir-se como pioneiros por 1971 ou pelo Torneio dos Campeões de 1937), em 1966.
O ano de 1966, aliás, foi especial também para a Academia, campeã argentina no embalo de um então recorde de invencibilidade no profissionalismo argentino: 39 jogos, superados em 1999 pelos 40 do Boca de Carlos Bianchi. E em todos os anos festivos ao Racing na década, a Raposa sorriu junto: 1961 (Argentino; Estadual) e os citados 1966 (onde os mineiros também levantaram o Estadual) e 1967 (também um ano de título estadual aos brasileiros), no qual o Cruzeiro ficou a um ponto da classificação à decisão continental, no triangular-semifinal que favoreceu os uruguaios do Nacional.
Já no sofrimento, as duas equipes estiveram juntas no início dos anos 80. Enquanto os mineiros precisavam suportar um hexa estadual do arquirrival Atlético, os argentinos até rebaixaram foram – tendo de suportar ainda ver o rival Independiente ser campeão nacional na sequência, justo em um clássico. No fim da década, um desafogo quase seguido: o Cruzeiro obteve em 1987 apenas seu segundo título mineiro, e o Racing levantou em 1988 seu primeiro troféu desde 1967, em Supercopa decidida exatamente sobre a Raposa – detalhamos aqui. Em seguida, porém, viu o Rojo ser campeão argentino em 1989, assim como o Atlético retomou a hegemonia mineira até o fim de década.
Em 1990, os dois se reencontraram pela primeira vez na Supercopa, já no mata-mata inicial. Os argentinos avançaram nos pênaltis após cada um vencer o outro por 1-0, mas caíram em seguida para o Olimpia. Em 1992, houve nada menos que quatro duelos; no primeiro semestre, foi pela Copa Master da Supercopa, que reunia os vencedores da Supercopa em jogos únicos no estádio do Vélez. Rubén Paz e Charles marcaram para suas equipes e nos pênaltis deu Cruzeiro 3-1.
No segundo semestre, foi a vez de uma nova final na própria Supercopa, que poderia coroar um novo ressurgimento racinguista, com a Academia tendo o gosto de eliminar o Independiente no mata-mata (no único Clásico de Avellaneda válido pelo continente até hoje). Claudio Turco García e Fernando Teté Quiroz não deixaram de ser grandes ídolos apesar da falta de um troféu, pois na decisão o sonho ruiu já no jogo de ida, com o Mineirão festejando um 4-0 para os anfitriões. Na Argentina, o solitário gol de pênalti do Turco García só garantiu uma vitória insuficiente por 1-0. Foi a festa alviceleste que seguiu do mesmo jeito nas arquibancadas que teria conquistado o comentarista Mauro Cezar Pereira, talvez o mais famoso hincha brasileiro do Racing.
Se em 1967 o duelo alviazul que decidiu a Libertadores foi entre Racing e Nacional, trinta anos depois foi entre Cruzeiro e Sporting Cristal. O time peruano conseguiu em casa reverter para 4-1 o 3-2 sofrido na Argentina na semifinal, um anticlímax para a trajetória de quem havia superado o River detentor do título e o Peñarol. A Academia voltou ladeira abaixo e já em março de 1999 tinha a falência decretada sob a imortal frase “hoje, o Racing deixou de existir”. Nesse contexto, não surpreendeu que o quinto (e até então último) encontro continental, pela Copa Mercosul daquele ano, tenha rendido outro 4-0 para os mineiros – mas em Avellaneda, após um 2-0 em BH ainda pela fase de grupos.
Desde 1988, o Racing só voltou a ser campeão em 2001 e em 2014, ambos no torneio de segundo semestre da elite argentina. Neles, o Cruzeiro também teve direito a pôsteres, pela Sul-Minas no primeiro e pelo Estadual e Brasileirão no outro. Os três que trabalharam nos dois clubes refletem toda essa narrativa. Vamos aos nomes:
Roberto Perfumo: era o camisa 2 daquele festejado Racing multicampeão entre 1966 e 1967. Antes mesmo daquela sequência, ainda em 1966, já tinha bola (e também travas na chuteira, pois sutileza não era seu estilo na marcação…) para ser titular da boa campanha da seleção argentina na Copa do Mundo. Voltou a disputar o torneio em 1974, como capitão e convocado do Cruzeiro. As credenciais de El Mariscal (“O Marechal”) vinham pela participação em três títulos mineiros seguidos, em tempos bastante valorizados dos estaduais, é bom ressaltar; e por uma campanha que já havia garantido a Raposa no quadrangular final do Brasileiro naquele 1974 – onde o time terminaria no vice, em agosto.
Em 1982, 1994 e em 2006, Perfumo foi escolhido o melhor zagueiro da história cruzeirense em eleições promovidas pela Placar (será que haverá em 2018, após outros doze anos?). Felizmente, uma das últimas aparições públicas antes da morte acidental em 2016 foi uma homenagem prestada pelo Cruzeiro em 2015, exatamente em visita à Argentina pela Libertadores. Curiosamente, se em 1967 ele “escapou” de enfrentar a Raposa, não deixou de se deparar com ela pelo continente em outras ocasiões, como defensor do River na final de 1976 da Libertadores e como técnico do Olimpia na Supercopa 1992.
Ademir Kaefer: outro símbolo de raça, o volante revelado pelo Internacional e prata olímpico em 1984 e 1988 virou símbolo cruzeirense após praticamente dez anos de clube, entre 1986 e 1995, descontados exatamente por uma estadia no Racing em 1993. Ademir, presente naquele redentor título estadual de 1987, era um velho conhecido da plateia racinguista: esteve presente na maior parte daqueles encontros continentais entre 1988 e 1992, e havia feito sobre o River o gol que abriu a porteira dos 3-0 na final da Supercopa de 1991 – a Raposa havia perdido na ida por 2-0.
Outra figura recorrente naqueles anos era o uruguaio Rubén Paz, mas pelo time argentino. Paz havia sido colega de Ademir no Internacional e intermediou a vinda do brasileiro a Avellaneda em 1992 (após a Copa Master e antes da Supercopa). Ali, a imagem de raça foi substituída pela lentidão, rendendo o cruel cântico “Ademir, te tenés que ir“. Quando começava a se adaptar, voltou a Minas a tempo de erguer a primeira Copa do Brasil do Cruzeiro, ainda em 1993. Obteve pelo continente também a Copa Ouro em 1994 e a Copa Master da Supercopa em 1995, sempre pela Raposa; na Supercopa 1992, esteve impedido de atuar pelo time argentino por já ter sido relacionado pelo Cruzeiro a uma partida.
Após nossa matéria, o portal Superesportes publicou entrevista com Ademir, na qual ele detalha as desventuras da passagem pelo Racing que minaram seu desempenho e mesmo afeto pelo clube: Clique.
Alexander Viveros: se Perfumo foi ídolo em comum e Ademir conseguiu fazer história ao menos em um lado, Viveros foi nos dois um reserva pé quente. Lateral-esquerdo do Deportivo Cali vice da Libertadores em 1999, apareceu primeiro no Cruzeiro, em 2000. Participou da cardíaca final da Copa do Brasil vencida sobre o São Paulo, substituindo Juan Pablo Sorín no decorrer do jogo.
Sem se firmar, foi emprestado em 2001 ao Fluminense no primeiro semestre e (mesmo campeão da Copa América, no único título da sua Colômbia) ao Racing no segundo, onde novamente apareceu nas estatísticas do jogo do título como um dos reservas usados, no redentor empate com o Vélez (substituindo Maxi Estévez aos 40 do segundo tempo) a livrar a Academia de um jejum nacional de 35 anos. Por uma torcida já satisfeita com empenho, o colombiano foi reconhecido por demonstra-lo quando entrava, sendo um 12º jogador na campanha. Regressou a Minas em 2002, mas continuou fora de titularidade, sendo ao fim do ano negociado com o Boavista português.
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