Os dolorosos e contestados revezes seguidos do Palmeiras para o Boca nas Libertadores de 2000 e 2001 enganam: no retrospecto do duelo, são sete vitórias brasileiras, incluindo um 6-1 pela própria Libertadores, na fase de grupos em 1994; e só três argentinas – curiosamente nenhuma naqueles encontros, todos empatados (resultado mais comum: onze vezes). Hora de relembrar similaridades entre os oponentes desta quarta-feira pela Taça Libertadores da América de 2018.
Para começar, vamos mesmo aos inícios, com o perdão da redundância: as duas equipes são marcadas pela origem italiana, com o apelido boquense xeneize derivando de zeneise, “genovês” no dialeto da Ligúria, que exportou uma comunidade expressiva ao bairro de La Boca. No fim do século passado, os dois ficaram marcados por uma década perdida nos anos 80, com um ano de 1986 especialmente doloroso – o Boca viu o rival faturar a primeira tríplice coroa argentina (de quebra, foi a primeira Libertadores e o primeiro Mundial do River…) e o Palmeiras perdeu o Estadual para a Inter de Limeira.
A seca doméstica encerrou com a chegada da Parmalat, em meses próximos: os argentinos quebraram jejum nacional de onze anos em dezembro de 1992 (o maior de sua história no campeonato argentino) e os paulistas, um jejum geral desde 1976, também o maior da história, em junho de 1993. Curiosamente, a história do encontro Boca x Palmeiras começou no Parque… São Jorge.
No estádio corintiano é que ocorreu o primeiro duelo, em amistoso realizado em 3 de fevereiro de 1935 como informal tira-teima entre o campeão argentino e o campeão paulista de 1934. Ficou no 1-1, em um dos últimos jogos que os auriazuis alinharam como dupla de zaga os brasileiros Moisés e Bibi, exatamente o setor cornetado do time recém-campeão.
A reação da diretoria foi trazer outro brasuca para a defesa, mas dessa vez tratava-se de Domingos da Guia, que viria a ser um dos maiores ídolos xeneizes. Além de pai do maior ídolo palmeirense, Ademir da Guia.
Além do ano de 1934, as duas equipes foram campeãs conjuntamente em torneios relativos aos seguintes anos: 1920, 1926, 1940 e 1944 (Argentino e Estadual em todos), 1965 (Argentino; Rio-São Paulo), 1969 (Argentino e Copa Argentina; Brasileiro), 1976 (dois Argentinos; Estadual), 1993 (Copa Ouro; Estadual, Rio-São Paulo e Brasileiro), 1998 (Argentino; Copa do Brasil e Mercosul), 1999 (Argentino; Libertadores), 2000 (Argentino, Libertadores e Mundial; Rio-São Paulo e Copa dos Campeões), 2003 (Argentino, Libertadores e Mundial; Brasileiro Série B), 2008 (Argentino e Recopa; Estadual), 2012 (Copa Argentina; Copa do Brasil) e 2015 (Argentino e Copa Argentina; Copa do Brasil).
O completíssimo site estatístico Historia de Boca contém todos os 21 encontros entre os dois clubes – a maioria, curiosamente, não no estádio próprio deles, variando-se entre Pacaembu, Morumbi e até Maracanã, Centenário (Montevidéu), San Martín de Mar del Plata e no Enio Tardini de Parma (em outro 1-1, em 1993, em torneio amistoso promovido na cidade da patrocinadora comum Parmalat). Nosso foco será relembrar quem passou pelas duas equipes. Vamos aos nomes:
Santiago Narvaja: volante revelado pelo Instituto de sua Córdoba natal na virada dos anos 20 para os 30, estava no Nacional (hoje Argentino) de Rosario quando o Boca contratou-o em 1932. Defendeu a azul y oro ao longo de apenas três meses – estreou no início de março e já não jogou após maio. Novamente no Nacional, fez pela equipe rosarina uma excursão por Rio de Janeiro e São Paulo em março de 1934, rendendo uma passagem pelo então Palestra Itália. Atuou em sete partidas entre abril e junho na campanha campeã estadual de 1934, sem se eternizar apesar do título, embora a estadia lhe rendesse um filho brasileiro; na sequência, o Nacional o emprestou ao Talleres. Ainda reapareceu na liga argentina por Argentinos Jrs e Chacarita, entre 1936 e 1939, voltando à Córdoba em 1940 virando outra vez a casaca: para defender o Belgrano.
Alfredo González: foi jogador e treinador alviverde. Como jogador, teve seus momentos no Boca, sem deslanchar nos anos 30. Chegou ao Brasil inicialmente pelo Rio de Janeiro, onde defendeu Flamengo (campeão em 1939, finalizando o maior jejum estadual rubro-negro – doze anos), Vasco e Botafogo antes de chegar ao Palmeiras em 1943. Esteve na campanha campeã de 1944, deixando a equipe em 1946. A passagem como treinador viria em 1968, credenciado por ter ganho o carioca de 1966 pelo Bangu, até hoje o segundo e último estadual dos alvirrubros. Como comandante palmeirense, foi vice da Libertadores. Já lhe dedicamos este Especial.
Roque Valsecchi: meia-esquerda marcado na Argentina como involuntário pivô das duas primeiras mortes registradas em um estádio de futebol por lá, ao iniciar ainda pelo time de aspirantes do Boca uma briga generalizada contra o Lanús, sucedida de intervenção policial com tiroteios que vitimaram dois torcedores. No time xeneize adulto, teve idas e vindas por outros clubes, sendo campeão em 1940 e 1944. Antes de realizar apenas duas partidas pelo Palmeiras, em 1950, no Brasil defendera no Botafogo, Atlético Mineiro e América Mineiro, onde foi campeão estadual em 1948 – no primeiro título do Coelho desde o decacampeonato dos anos 20.
Yeso Amalfi: talvez o brasileiro mais internacional antes do futebol globalizado, acabou privado da seleção em tempos em que ir ao exterior privava o jogador de defender seu país. Chegou do São Paulo ao Boca, onde esteve sobretudo em 1948, no tumultuado ano da longa greve de jogadores. Saiu no início de 1949, tendo estadias rápidas por Millonarios (destino de muitos dos grevistas), Peñarol e Palmeiras antes de se enraizar no futebol europeu, sobretudo no francês. No Verdão, foram só quatorze jogos, a maioria amistosos, em 1950, chegando a marcar sobre o Corinthians.
Luis Cardoso: como Amalfi, esse zagueiro só defendeu o Palmeiras quatorze vezes, em 1954. Vinha do Independiente e logo voltou a seu país, defendendo o Boca até fins dos anos 50, tempos de jejum.
Edson: zagueiro do America vice carioca de 1955, chegou à seleção, destacando-se em 0-0 contra a Argentina no estádio do Racing em 1956. Perdeu sequência na amarelinha após a Copa América de 1957, ficando de fora do mundial da Suécia. Esteve no Palmeiras no biênio 1958 e 1959, chegando a enfrentar o Boca (1-1, em 1959). Chegou a reaparecer na seleção ao fim de 1959, na segunda Copa América daquele ano, em que o Brasil foi representado pelo futebol pernambucano – Edson estava no Sport Recife. Em 1960, foi um dos numerosos brasileiros importados pelos xeneizes, ficando conhecido na Argentina por nome e sobrenome, “Edson dos Santos”. Ficou por três anos no Boca e esteve no time que em 1962 encerrou jejum de oito anos, mas lesões impediram êxito individual.
Dino Sani: formou-se no Palmeiras, ingressando da base em 1953. Mas foi no São Paulo que projetou-se nacionalmente, integrando a seleção campeã mundial de 1958. Embora reserva na Suécia, o volante foi importado com credencial pelo Boca em 1961. Teve sua elegância reconhecida, mas o tempo foi breve demais para eternizar-se: dali foi vendido ao Milan campeão da Liga dos Campeões de 1962-63. Em 1984, retornou ao Boca como um dos treinadores do pior ano da história do clube: saiba mais.
Manuel Fleitas Solich: o paraguaio apareceu na história do Palmeiras inicialmente como adversário, no primeiro jogo internacional palestrino, em 1922, quando os alviverdes receberam o Nacional de Assunção. Caudilho da seleção alvirrubra nos anos 20, rumou ao Boca em 1927, sendo figura seminal no período de transição ao profissionalismo; era o capitão do último título amador do clube, em 1930. El Brujo teve ainda mais prestígio como treinador, vencendo a Copa América por seu país, treinando um Flamengo tri estadual e até o Real Madrid. Nessa função, foi palmeirense no segundo semestre de 1966. Teve bons números (três vitórias para cada derrota), mas sem títulos.
Norberto Madurga: único campeão nacional nos dois. O volante se eternizou no Boca sobretudo pelos dois gols no Superclásico que decidiu o Torneio Nacional de 1969. Era a última rodada e o River, em jejum desde 1957, recebia os auriazuis em um duelo direto pelo título. O empate favorecia o Boca e Madurga fez os gols visitantes no 2-2, no que foi a primeira e única volta olímpica xeneize dentro do Monumental diante do rival. Esteve na seleção que fracassou nas eliminatórias de 1970. No Palmeiras, foi titular no vitorioso Brasileirão de 1972, improvisado como razoável centroavante na suspensão de César Maluco – o argentino esteve entre os dez melhores do torneio na avaliação da Bola de Prat.
Gaúcho: codinome de Luís Carlos Tóffoli, o atacante teve seu momento mais marcante como palmeirense quando foi um “Rogério Ceni do avesso”, defendendo pênaltis dos flamenguistas Aldair e Zinho ao ser improvisado no gol após fratura de Zetti em partida empatada contra o Flamengo pelo Brasileirão de 1988. Havia se formado na própria equipe adversária, onde voltou posteriormente, destacando-se como artilheiro da Libertadores de 1991 e no primeiro título brasileiro pós-Zico, em 1992. Nesse período, foi emprestado ao Boca exclusivamente para as finais da temporada 1990-91, para suprir a ausência de ninguém menos que Gabriel Batistuta, ocupado com a seleção. Foi criticadíssimo e contamos aqui o fracasso da experiência.
Alejandro Mancuso: raçudo na visão da torcida própria e excessivamente violento para a adversária, despontou no Vélez pré-Carlos Bianchi, saindo ao Boca logo antes do vitorioso ciclo velezano iniciado em 1993. Como xeneize, não conseguiu títulos, mas teve bons momentos que o levaram naquele ano à seleção; venceu ali a Copa América e foi à Copa do Mundo no ano seguinte, ainda que sempre na reserva – seu grande momento foi ao marcar um gol sobre o Brasil, em 1-1 amistoso ainda em 1993. Em 1995, foi repassado ao Palmeiras. Também não foi campeão, mas dedicação não faltou: o brucutu volante não resistiu às lágrimas após a dramática eliminação na Libertadores daquele ano (5-1 no Grêmio após ter sofrido 5-0 no Rio Grande). Seguiu carreira em 1996 no Flamengo.
Héctor Veira: foi importado já decadente pelo futebol brasileiro, em 1976. Veio para o Palmeiras e o defendeu em dois amistosos, mas a negociação foi atravessada pelo Corinthians, que ficou com El Bambino. Ele não deu certo como alvinegro, saindo em 1977 ainda antes do redentor estadual daquele ano. Já na Argentina, é um mito. Seu desempenho como meia-esquerda e treinador fizeram-no ser eleito o maior ídolo do San Lorenzo, no centenário em 2008, ainda que já tenha se declarado torcedor do rival Huracán, onde também jogou. Imune a rivalidades, o carismático Veira também esteve nos dois lados de Boca e River: como millonario, foi o jovem técnico campeão da primeira Libertadores e Mundial do clube, em 1986. Como xeneize, fez campanha brilhante no Apertura 1997, a melhor de um vice-campeão dos torneios curtos. Dedicamos-lhe este Especial.
Jorginho Paulista: como palmeirense, esteve na seleção campeã mundial sub-17 em 1997, mas o lateral-esquerdo ficou na sombra de Júnior no time adulto. Seu melhor momento veio no Vasco campeão brasileiro e da Mercosul em 2000 (onde virou “Jorginho Paulista”, na companhia do Jorginho mais famoso, o lateral-direito ex-Flamengo, seleção e Bayern Munique). Os cruzmaltinos ainda realizaram uma primeira fase com 100% de aproveitamento na Libertadores de 2001, ainda que em seguida tenham sido eliminados com duas derrotas pelo futuro campeão Boca, que se interessou por Jorginho. Ficou só no segundo semestre de 2001, sem render.
Baiano: revelado pelo Santos, o lateral-direito projetou-se no Palmeiras campeão da segunda divisão em 2003 e manteve o bom momento no ano seguinte. O Boca estava à procura de um substituto do ídolo Hugo Ibarra e importou El Café, como ele foi apelidado. Era o ano do centenário xeneize e Baiano teve um início interessante que, segundo ele, não se manteve por reação contra si dos argentinos após o escândalo racial entre Grafite e Leandro Desábato naquela época; os hermanos, por sua vez, contestavam-lhe o ímpeto ofensivo que por outro lado desguarnecia a zaga. O site Historia de Boca considera-o um “medíocre defensor”. Fato é que ele não deu certo também em outros times.
Ricardo Gareca: atacante formado na base do Boca, era ídolo em meio à crise intensa vivia naquele time treinado por Dino Sani em 1984. Fazia muitos gols no River e exatamente por estar servindo à seleção, por exemplo, ausentou-se da pior goleada sofrida pelos auriazuis, o 9-1 contra o Barcelona naquele mesmo ano. A adoração acabou quando os problemas salariais fizeram-no romper o contrato e rumar ao River no início de 1985, atraindo ódio boquense eterno. Chegou ao Palmeiras no ano do centenário credenciado pelo ótimo desempenho de treinador no Vélez, que só fez decair após a saída de El Tigre. Não conseguiu fazer milagre com o fraquíssimo elenco alviverde e foi dispensado em pouco tempo, vindo a reafirmar seu valor ao reerguer a seleção peruana. Dedicamos-lhe este Especial.
Pablo Mouche: atacante esforçado do Boca vice da Libertadores de 2012, esteve como xeneize em versões caseiras da seleção. Apesar do currículo, não foi exatamente um ídolo, mas o cartaz (reforçado por gol no Fluminense) o fez chegar com expectativa no pacotão de argentinos importado pelo Palmeiras de Gareca. Como a maioria deles, não vingou, especialmente após a saída do treinador compatriota: 22 jogos, só 2 gols e sucessivos empréstimos.
Fernando Tobio: outro do pacote argentino de Gareca, de quem havia sido pupilo naquele Vélez da virada da década. Como Mouche, o zagueiro não vingou como palmeirense e foi continuamente emprestado, condição em que passou dois anos no Boca, de 2015 a 2017. Ali, retomou a boa regularidade e obteve dois títulos no campeonato argentino e outro na Copa da Argentina.
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Um detalhe interessante: Mancha Verde e La 12 tinham uma certa "amizade" antigamente (a sede da MV em Buenos Aires ficava em La Boca, e até hoje tem camisa da Mancha exposta em bares e locais xeneizes), amizade essa que cessou com Mauro Martin e seu "nunca hicimos amistades". A ver como vão se portar as duas torcidas nessas próximas semanas, vai ser interessante.