A fama de torcida de massa apaixonada não é o único fator a aproximar Boca e Atlético, que duelam hoje na Bombonera pelo jogo de ida das oitavas-de-final da Libertadores. Muita gente (e não apenas brasileiros e argentinos) passou pelas duas equipes, embora sejam mais numerosos aqueles que cometera, a heresia de defender também o River do que algum grande ídolo em comum. O duelo inclusive remete a alguns anos especiais à história da torcida azul y oro.
O Atlético foi campeão estadual nos seguintes anos em que o Boca também foi campeão argentino: 1931, 1954, 1962, 1970 (Torneio Nacional, no caso do Boca), 1976 (Metropolitano e Nacional), 1981 (Metropolitano), 1999 (Clausura), 2000 (no Apertura, após títulos auriazuis na Libertadores e no Mundial) 2015 (quando o Boca também venceu a Copa Argentina) e 2020. Em 2012, o título xeneize foi o da Copa Argentina. Em outros anos de títulos mineiros do Galo além do mágico 2000, o Boca foi campeão internacional – foi em 1978 (Libertadores), 1989 (Supercopa) e 2007 (Libertadores).
De modo mais contrastante, em 2005 os alvinegros eram rebaixados enquanto os argentinos celebravam bem seu centenário, com um bi na Sul-Americana somado à Recopa e ao Apertura – o passo que em 2006 veio o bicampeonato argentino seguido com o Clausura e o bi na Recopa enquanto o Atlético vencia a segunda divisão. Mas, em 1992, os troféus internacionais foram mútuos. O Atlético faturou sua primeira Copa Conmebol, enquanto o Boca (campeão também no Apertura) ganhou a esquecida Copa Master, competição oficial da Conmebol que reunia os campeões da Supercopa – por sua vez, a extinta competição que reunia os vencedores da Libertadores.
Em 1993, a Conmebol então organizou a Copa Ouro, um quadrangular entre os campeões de 1992 na Copa Conmebol, na Copa Master, na Supercopa e na Libertadores. O Atlético teve o gosto de eliminar o Cruzeiro, mas na decisão deu Boca: 1-0 no agregado, no momento de maior glória do inábil lateral Carlos Mac Allister, autor do gol do título. Os argentinos já haviam prevalecido no triangular-semifinal da Libertadores de 1978, ganhando os dois duelos (2-1 no Mineirão, 3-1 na Bombonera), em invencibilidade prolongada por um 0-0 amistoso em Belo Horizonte em 5 de setembro de 1985. Aquela Copa Ouro foi por longos cinco anos o último título xeneize, até a Era Carlos Bianchi iniciar com tudo no Apertura 1998.
Já o Atlético prefere lembrar dos outros duelos que permearam o encontro. Valeram pela Copa Mercosul do mágico ano 2000 boquense, em novembro, mesmo mês em que o pupilos do Bianchi disputariam o Mundial Interclubes. Assim, Bianchi usou um time misto no primeiro jogo (2-0 para o Galo no Mineirão, em noite de glória do seu argentino, Diego Capria) e um basicamente reserva no segundo (2-2 na Bombonera). O Galo pôde gabar-se ainda assim de ser o primeiro time brasileiro a superar o Boca em um mata-mata continental desde o Santos campeão sobre os argentinos em 1963, e em tempos de freguesia em série de times daqui para os auriazuis: foi preciso aguardar até 2008 para ver outro êxito, do Internacional na Sul-Americana.
Vamos, enfim, a quem passou pelos dois clubes:
Guido Baztarrica: revelado no Atlanta, o meia-direita teve uma sequência irregular de jogos pelo Boca entre 1932 e 1936 – normalmente amistosos. Reserva no título de 1935, seguiu carreira na segundona pelo Argentino de Quilmes. Chegou ao Brasil vindo já do Peñarol campeão uruguaio de 1944 (encerrando cinco títulos seguidos do rival Nacional, então um recorde no país), aparecendo primeiramente no Fluminense. O primeiro argentino do Atlético, porém, durou pouco, deixando Minas no início de 1946; ele até marcou contra o Cruzeiro no estadual, mas em derrota de 3-2. E os alvinegros terminaram atrás de todos os rivais: a Raposa foi campeã enquanto América e Villa Nova, ambos de poderio maior antes do futebol mineiro virar um duopólio, fecharam o pódio.
Roque Valsecchi: na Argentina, o meia-esquerda ficou mais conhecido por deflagrar uma briga generalizada em partida juvenil contra o Lanús. Os desdobramentos da confusão geraram as primeiras duas mortes noticiadas ligadas a briga de torcedores na Argentina. Ele defendeu o time adulto entre 1941 e 1944, salvo um empréstimo ao Platense em 1943, pois nunca se firmou. Ainda em 1944, chegou ao Brasil para defender o Botafogo. Mas estava defendendo o Temperley na segundona argentina quando chegou ao Atlético no início de 1948. Só foi utilizado em amistosos, disputando o estadual pelo rival América – sendo inclusive campeão, na primeira conquista do Coelho desde o deca seguido de 1917-26.
Paulinho Valentim: simplesmente o brasileiro mais querido do Boca. Após dois anos de carreira semiprofissional no interior fluminense, apareceu em 1954 no Atlético Mineiro. Presente em meio ao ciclo do pentacampeonato estadual (então a maior série do Galo) comemorado entre 1952 e 1956 e desposando a célebre Hilda Furacão, trocou de manto alvinegro ao ser fichado pelo Botafogo em 1956. Com mais vitrine nos gramados cariocas, chegou à seleção em 1959 – e ao Boca em 1960. Se consagrou como o maior artilheiro do clube em Superclásicos válidos pelo campeonato argentino. Ao todo, foram 129 gols em 196 jogos até o início de 1965 e participação em dois títulos argentinos por um time que havia vencido apenas um desde 1944, além do vice na Libertadores de 1963. Valentim tentou seguir carreira no São Paulo, mas se reinstalaria para sempre em Buenos Aires, onde faleceu em 1984, sendo velado no Boca. Já lhe dedicamos este Especial.
Manuel Fleitas Solich: se notabilizou primeiro como volante por seu Paraguai nos anos 20, reforçando o Boca em 1927 – quando o amadorismo no futebol argentino já era algo de fachada. Brilhava como líder em campo até sofrer uma inoportuna fratura em setembro de 1930, em meio à campanha do que foi seu primeiro título argentino. Em 1931, os xeneizes se juntaram aos clubes mais populares e escancaram o profissionalismo em uma liga rebelde, depois convalidada como oficial. El Brujo pôde participar de dois jogos de um novo título para o Boca, mas já não era o mesmo e no decorrer do torneio passou ao Racing. Viria ao Brasil como treinador, na esteira de seu sucesso à frente de seu Paraguai natal, ao qual conduzira ao primeiro título guarani na Copa América – sobre o Brasil, em 1953. Brilhante em um Flamengo tri estadual nos anos 50, chegou a ser sondado para dirigir os brasileiros na Copa de 1958 e acertou na sequência com o Real Madrid. No Atlético, esteve entre 1967 e 1968, ofuscado pelo pentacampeonato do arquirrival.
Roberto Saporiti: revelado pelo Independiente, nunca se firmou no ataque do Rojo e seguiu carreira nos anos 60 fora dos holofotes – primeiramente nas divisões inferiores da Argentina e depois no modesto Racing de Montevidéu. No Atlético Mineiro, foi um reforço fugaz em 1968, utilizado somente em amistoso de pré-temporada contra o Bangu, em fevereiro. Os cariocas ganharam e o argentino voltou ao time uruguaio. Saporiti notabilizou-se muito mais em comissões técnicas: treinou o vistoso Talleres quase campeão nacional em 1977 e em seguida foi assistente de César Menotti na seleção vencedora da Copa de 1978. Seu outro grande momento foi no primeiro título do Argentinos Jrs na elite, em 1984. Assumiu o Boca no segundo semestre de 1987, sucedendo justamente Menotti. Mas foi um desastre: uma única vitória e três derrotas que incluíram um 6-0 para o Racing acelaram o fim do seu passo na Bombonera.
Gaúcho: no Brasil, ele ficou mais ligado ao Flamengo. Campeão da Copa do Brasil em 1990 e artilheiro da Libertadores 1991, foi na sequência emprestado ao Boca apenas para as duas partidas que decidiriam a temporada argentina de 1990-91. O clube mais popular da Argentina chegava a um jejum doméstico de dez anos, mas o brasileiro parecia não entender o desespero que tomava a torcida. Foi visto como alguém sem empenho naqueles duelos contra o Newell’s, que terminou campeão. O atacante reabilitou-se no primeiro título brasileiro pós-Zico na Gávea, em 1992. Reforçou o Atlético em 1994, na famigerada “Selegalo” com o amigo Renato Gaúcho, Éder, Neto, Adilson Batista e outras estrelas que não engrenaram juntas: o estadual foi perdido e a campanha semifinalista no Brasileirão mascarou que o time dependeu de uma generosa repescagem entre os últimos da primeira fase para chegar tão longe. Gaúcho, gradualmente na reserva de Reinaldo Rosa, rumou à Ponte Preta. Já lhe dedicamos este outro Especial.
Baiano: após participar das Olimpíadas de 2000, o coringa volante/lateral-direito rumou ao Las Palmas. O clube espanhol, porém, o emprestou o Atlético Mineiro em meio à temporada europeia de 2001-02. Baiano foi bem, roubando a vaga de Mancini, que teve de ser por sua vez emprestado ao São Caetano. Ironicamente, o Azulão eliminou o próprio Galo nas semifinais do Brasileirão. Mancini voltou, mas o titular em Minas seguiu sendo Baiano até o fim do contrato. Em 2003, destacou-se no Palmeiras campeão da segunda divisão e manteve o bom momento no ano seguinte. O Boca estava à procura de um substituto do ídolo Hugo Ibarra e no início de 2005 importou El Café, como ele foi apelidado na Argentina. Era o ano do centenário xeneize e Baiano teve um início interessante que, segundo ele, não se manteve por reação contra si dos argentinos após o escândalo racial entre Grafite e Leandro Desábato naquela época; os hermanos, por sua vez, contestavam-lhe o excesso de ímpeto ofensivo que ao mesmo tempo desguarnecia a retaguarda. O site Historia de Boca considera-o um “medíocre defensor”. Fato é que ele não deu certo também nos seus times seguintes.
Jonathan Fabbro: chegou ao Boca em 2002 e nunca se firmou. Estava relegado ao time B em meio às campanhas do dourado 2003, ou na equipe reserva que se desleixou no Clausura enquanto os titulares se focavam na Libertadores. Ironicamente, integrou o Once Caldas campeão sobre o próprio Boca na Libertadores seguinte. Ele chegou ao Atlético para a segunda divisão em 2006, mas sequer chegou a cinco partidas. Anos mais tarde, se naturalizou paraguaio, estreando pela Albirroja na esteira das semifinais da Libertadores 2011 com o Cerro Porteño – tendo até breve passagem pelo River em 2013. Mas a carreira ultimamente se ligou mais a notícias policiais do que a esportivas, após ter prisão decretada por abuso sexual no México.
Julio César Cáceres: o paraguaio esteve no segundo semestre de 2005 no Brasil, emprestado pelo Nantes. Foi um oásis no rebaixamento atleticano: enquanto o clube caía, a Placar reconhecia ele como o terceiro melhor zagueiro na eleição da Bola de Prata – perdendo nos critérios de desempate para o conterrâneo Gamarra. No início de 2006, os franceses direcionaram o empréstimo ao River. O único semestre em Núñez não foi um problema para virar a casaca (no caminho inverso ao do compatriota Fabbro) em 2008, faturando pelo Boca a Recopa e o Apertura. E o bom desempenho individual em Minas seguia fresco em 2010, quando ele foi recontratado pelo Atlético. Faturou o estadual, mas durou somente aquele ano.
Mariano Trípodi: atacante prata-da-casa do Boca, foi usado duas míseras vezes, em 2005 (contra o Almagro no Clausura, como um presente a seu aniversário de 18 anos, e em amistoso contra o Olimpia hondurenho). Seguiu para o time B do Colônia e voltou da Alemanha emprestado ao San Martín de San Juan para a temporada de estreia dos verdinegros na elite argentina, em 2007. Mesmo nulo nesse clube, o Santos apostou nele no início de 2008. Já no segundo semestre, começaria a rodar por outros clubes brasileiros, emprestado ao Vitória e, em 2009, ao Atlético Mineiro (só esteve em cinco partidas), até ser vendido em 2010 aos catarinenses do Metropolitano – e seguir carreira por times brasileiros distantes dos holofotes.
Luiz Alberto: zagueiro revelado pelo Flamengo na virada do século, participando inclusive da Copa das Confederações de 1999, não teve na Gávea o reconhecimento como o do colega Juan. Após experiências europeias no Saint-Étienne e na Real Sociedad, rodou o Brasil emprestado pelos bascos: ao Internacional na temporada europeia 2002-03 e ao Atlético na seguinte. Foi titular em uma campanha promissora no Brasileirão, ofuscada ao fim pela perda da vaga na Libertadores e pelo título do rival Cruzeiro. Chegou a Buenos Aires em fevereiro de 2010, valorizado pelo bom momento internacional do Fluminense, onde fora bivice da LDU na Libertadores e na Sul-Americana. Mas calhou de pegar uma fase terrível do Boca. Só durou cerca de um mês e meio, deixando a péssima campanha no Clausura após uma derrota na Bombonera para o Rosario Central, que brigava contra o rebaixamento (que ocorreria mesmo) e não vencia o duelo auriazul na casa adversária havia cerca de vinte anos.
Damián Escudero: filho de Osvaldo Escudero, ex-jogador do Boca e ex-colega de Maradona no mundial sub-20 de 1979, El Pichi formou-se no Vélez mesmo e, como o pai, também venceu um mundial sub-20 (o último da Argentina, em 2007). Já no quinto ano de carreira é que chegou à Bombonera. Padeceu do mesmo momento ruim vivido por Luiz Alberto no clube, além da concorrência com os intocáveis Riquelme e Palermo nas posições ofensivas. Foram só 15 jogos de agosto de 2010 a janeiro de 2011, quando, mesmo sem demonstrar alto nível, cavou empréstimo ao Grêmio. Em 2012, o empréstimo foi repassado ao Atlético, onde o argentino foi razoável (e campeão estadual) a ponto de a diretoria pleitear uma compra definitiva. A negociação não avançou e Escudero foi reutilizado no Boca uma única outra vez, na pré-temporada de 2013 – para ser vendido ao Vitória antes de defender também Vasco e Cuiabá.
Jesús Dátolo: integrante do Banfield que pôde estrear na Libertadores em 2005, rumou ao último Boca campeão da Libertadores, em 2007. A vitrine maior rendeu a chegada à seleção principal e ao Napoli, mas não bastou por um lugar na Copa de 2010. Já estava no Espanyol quando reforçou a cada vez mais comum panelinha argentina no Internacional em 2012. Em 2013, rumou ao Atlético Mineiro recém-campeão da Libertadores. Teria seus bons momentos, sendo peça importante na conquista da Copa do Brasil em 2014, embora a fragilidade física impedisse um êxito mais duradouro da sua passagem. No início de 2017, a sucessão de lesões pesou para ser repassado ao Vitória.
Lucas Pratto: profissionalizado pelo Boca, só foi utilizado em duas partida pelo time adulto. Passou até pelo futebol norueguês até começar a maturar-se como artilheiro na Universidad Católica e no último Vélez campeão. Veio ao Atlético em 2015 e virou sucesso instantâneo ao manter aquela boa fase, faturando o estadual e a Bola de Prata no Brasileirão na campanha vice-campeã nacional. Em 2016 (ano da imagem que abre essa matéria, junto a Dátolo), tornou-se o primeiro jogador a servir a seleção argentina como atleticano, em meio à campanha finalista da Copa do Brasil. Calculou mal uma transferência ao São Paulo em 2017, perdendo terreno na seleção e passando longe de ir à Copa de 2018. Ano que a torcida do Boca prefere não lembrar do que Pratto pôde fazer…
Junior Alonso: mais um paraguaio nessa lista, Alonso apareceu primeiramente no Boca, emprestado pelo Lille em janeiro de 2019 para ser firmar-se como titular na conquista da Superliga de 2019-20. Com a longa pausa do futebol argentino em função da pandemia, seguiu carreira no Atlético, que o comprou junto ao clube francês.
Menção honrosa, ou não: em 1998, uma trapalhada da diretoria atleticana chegou a trazer dois argentinos como grandes reforços para a temporada. Um era Héctor Almandoz, do Vélez campeão de tudo entre 1993-94, e o outro era seu ex-colega naquele clube, Alejandro Mancuso. Mancu já estava no Boca naquele período de 1993-94. Não se eternizou como ídolo, mas foi a partir dali que chegou à seleção, embarcando à Copa de 1994 para ser reserva do astro Fernando Redondo. A partir de 1995, o volante começou a peregrinar pelo futebol brasileiro, sendo bem reconhecido por Palmeiras e Flamengo. Sem lugar no Independiente, ele foi recepcionado em Minas e apresentado oficialmente, mas só vestiu o uniforme de treino do Atlético: sem acerto salarial, a camisa alvinegra que vestiria seria a do Badajoz, na Espanha, que juntava uma colônia argentina. Contamos neste outro Especial dedicado a Mancuso.
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