Eduardo Galeano: das origens aos ídolos, escritor uruguaio exaltou o futebol argentino
“Tenho um céu e um inferno… que se alimentam mutuamente. Pode imaginar o que seria de Deus sem o diabo, pobre? Se iría a um fundo de aposentadoria, teria que se aposentar. É como imaginar o River sem Boca ou o Boca sem River”, Eduardo Galeano, 1940-2015.
Galeano foi encantado pelo futebol como desde criança qualquer uruguaio. Paixão compartilhada pelos vizinhos do outro lado do Rio da Prata, já que ambos adotaram o esporte bretão quase ao mesmo tempo. Apesar da rivalidade, Eduardo Galeano, falecido nesta segunda-feira (13), dedicou belos textos aos argentinos no livro “Futebol ao Sol e a Sombra”.
Desde as primeiras trocas de passe dos ingleses ao lado dos manicômios (por isso chamados de loucos pelos argentinos), o livro conta sobre a chegada do futebol a Buenos Aires e a Montevidéu através dos trabalhadores expulsos da Europa. Nas margens do rio, “o futebol, assim como o tango, cresceu a partir dos subúrbios, Um esporte que não exigia dinheiro e podia ser jogado sem nada além da pura vontade”.
Tal como a música, o futebol também assimilou o estilo milongueiro dos dois países, algo que chamou atenção de Galeano. Ele ainda ressaltava que, enquanto outros intelectuais olhavam o esporte com desprezo por tratá-lo como um “ópio do povo”, a história de clubes como o Argentinos Juniors e o Chacarita homenageavam trabalhadores mortos e oprimidos.
Uruguai x Argentina
Como hincha da celeste olímpica, Galeano exaltou a seleção uruguaia bicampeã nos Jogos em 1924 e 1928 e campeã mundial em 1930, que derrotou a Argentina duas vezes, no confronto de jogadores como Scarone e Stábile. Apesar da rivalidade, o escritor também dedicou parágrafos a jogadores e equipes do futebol no país vizinho.
Sobre o paraguaio Arsenio Erico, que brilhou nos primeiros anos de profissionalismo pelo Independiente e até hoje tem o recorde de gols na Argentina (escrevemos sobre o jogador há duas semanas: clique aqui), ele o chamou de “grande feiticeiro que tinha molas secretas para saltar mais alto e superar os goleiros de cabeça”.
Chamou de “uma das melhores equipes de futebol de todos os tempos” a Máquina do River Plate nos anos 40. Ficou maravilhado pelo futebol liderado por Labruna, Loustau, Muñoz, Carrizo, Pedernera e Moreno. Aos três últimos, dedicou até trechos inteiros do próprio livro.
“O público batizou de A Máquina aquela equipe lendária pela precisão de suas jogadas. Era um elogio duvidoso. Eles não tinham nada a ver com a frieza mecânica. Aqueles eram desses raros jogadores que se deleitavam jogando, e de tanto prazer se esqueciam de chutar a gol. Mais justa era a torcida quando os chamava de Cavalheiros da Angústia, porque aqueles gozadores faziam seus devotos suar em bicas, antes de conceder-lhes o alívio do gol”.
Outro millonario elogiado por Galeano foi Di Stéfano, sucessor de Pedernera no River daquela época. Ainda que tenha jogado no Real Madrid “embaixador da ditadura do general Franco”, o escritor lembrou, com descrição poética, que o argentino naturalizado espanhol esteve entre os maiores de todos os tempos.
“O campo inteiro cabia nas suas chuteiras. A cancha nascia de seus pés, e de seus pés crescia. De arco a arco, Alfredo Di Stéfano corria e corria pelo gramado: com a bola, mudando de rumo, mudando de ritmo, do trotezinho cansado ao ciclone incontido. (…) Na saída do estádio, era carregado pela multidão. Di Stéfano foi o motor de três equipes que maravilharam o mundo: River Plate, Millonarios de Bogotá e Real Madrid”.
Um mundial da ditadura, outro de Maradona
Eduardo Galeano se notabilizou principalmente pelo trabalho como historiador e analista político da América Latina. Algo claro mesmo num livro sobre futebol e inevitável ao falar sobre a Copa do Mundo de 1978. Ele foi breve ao falar dos gols de Kempes e companhia no primeiro título albiceleste, e preferiu falar sobre os horrores que a ditadura tentava maquiar e esconder.
Comparou o regime militar de Videla ao nazista, pois não muito longe do Monumental de Núñez funcionava o Auschwitz argentino no centro de tortura e extermínio da Escola Mecânica de Armada, no tal bairro de Núñez, além dos presos políticos que eram lançados vivos ao fundo do mar.
“5 mil jornalistas de todo o mundo, um faustoso centro de impensa e televisão, estádios impecáveis, aeroportos novos, um modelo de eficiência. Os jornalistas alemães mais veteranos confessaram que o Mundial de 78 lhes recordava as Olimpíadas de 1936, que Hitler tinha celebrado, com toda pompa, em Berlim”.
Já sobre 1986, Galeano se rendeu a Diego Armando Maradona. O astro que decidiu a Copa no México ao derrotar a Inglaterra e, na final, a Alemanha, também conta com um longo capítulo próprio em “Futebol ao Sol e a Sombra”. Lembrava do futebol fora de série, e de como isso afetou o supercraque envolvido em polêmicas e vícios.
“Jogava melhor do que ninguém, apesar da cocaína, e não por causa dela. Estava esgotado pelo peso da própria personagem. Maradona carregava uma carga chamada Maradona que fazia sua coluna estalar. Suas pernas doíam, não podia dormir sem comprimidos. Quando Maradona foi, finalmente, expulso do Mundial de 94, os campos de futebol perderam seu rebelde mais clamoroso. E perderam também um jogador fantástico.
Momentos ruins
Nem só em elogios apareceu a Argentina na obra do uruguaio. Galeano também criticava a violência entre hinchadas e barrabravas argentinos, além de repudiar atos e gritos de preconceito, como os proferidos contra os torcedores do Boca Juniors devido à origem humilde.
Mas também o futebol argentino em si já proporcionou momentos de “indigestão” ao escritor. Ele lembrou do jogo entre Argentinos Juniors e Racing, em 1989, que levou quarenta e quatro cobranças de pênaltis para ser decidido, o que fez o público sair mais cedo.
Ele também lembrou do Argentina 0 x 5 Colõmbia de 1993, em Buenos Aires, num inesquecível jogo em que os visitantes chegaram muito vaiados mas sairam ovacionados do Monumental de Núñez, num show comandado por Valderrama, Perea, Asprilla e Rincón. Falamos a respeito neste Especial.
Futebol ao Sol e a Sombra foi lançado em 1995, e por mais que tenha sido atualizado, não pode falar tão bem sobre Lionel Messi. Algo que Eduardo Galeano tratou em entrevistas sobre La Pulga.
“Inclusive inventei uma teoria, que fiz chegar a ele através do técnico da Seleção: assim como Maradona leva a pelota presa ao pé, Messi leva a bola dentro do pé. O qual é um fenômeno físico inverossímil. A frase chegou até ele, e se vê que ele gostou, porque me mandou uma camiseta de presente. Cientificamente é impossível. Mas é a verdade!”.
O argentino mais ídolo
Galeano era torcedor do Nacional, gigante mundial cujo artilheiro máximo foi o argentino Atilio García, também o goleador máximo do futebol uruguaio e que acabou defendendo a seleção celeste. Falamos mais desse mitológico atacante dos anos 30 e 40 neste outro Especial. Assim o escritor relatou um confronto de García contra o Boca Juniors:
“Recebeu a bola, enfrentou uma selva de pernas, abriu espaço pela direita e engoliu o campo ‘comendo’ rivais. Atilio estava acostumado a picaretadas. Lhe davam com tudo, suas pernas eram um mapa de cicatrizes. Naquela tarde, a caminho do gol, recebeu trancaços duros de Angeletti e Suárez, e ele se deu ao luxo de evita-los duas vezes. Valussi lhe puxou a camisa, o agarrou por um braço e lhe deu um chute e o corpulento Ibáñez se plantou à frente em plena corrida, mas a bola fazia parte do corpo de Atilio e ninguém podia parar esse redemoinho que derrubava jogadores como se fossem bonecos de pano, até que por fim Atilio se desprendeu da bola e seu disparo sacudiu a rede. O ar cheirava a pólvora. Os jogadores do Boca cercaram o árbitro: lhe exigiam que anulasse o gol pelas faltas que ELES haviam cometido“.